• tacet: Carlos Drummond de Andrade (em 70 no presente...)

    4.10.23

    Carlos Drummond de Andrade (em 70 no presente...)

     Assim vai (?) o Mundo

    Ultratelex a Francisco

     [...]

    Veja as infinitas coleções
    de animais que padecem em todos os chãos e águas da Terra
    e não podem dizer que padecem, e por isso padecem duas vezes,
    sem o suporte da santidade.

    Pior, Francisco: o padecimento deles
    é de responsabilidade nossa — humana? desumana.
    Pois nós os torturamos e matamos
    por hábito de torturar e de matar
    e de tornar a fazê-lo, esporte
    com halalis, campeonatos, medalhas, manchetes,

    ouro pingando sangue.

     [...]

    Lembrar que terrível penúria de amor
    lavra nos corações convertidos em box
    de supermercado de crueldades?
    E penúria logo de amor,
    essa matéria-prima, essa veste inconsútil de sua vida, Francisco?

    Calo-me, santinho nosso,
    mas antes faço-lhe um apelo:
    providencie urgente sua volta ao mundo
    no mesmo lugar, em lugar qualquer,
    principalmente onde se comercia a santa esperança dos homens,
    para ver se dá jeito,
    jeito simples, franciscano, jeito descalço
    de consertar tudo isso. Os bichos,
    por este secretário, lhe agradecem.

    Mal do Século

    Como se não bastasse o mundo de tristezas
    entre céu e terra,
    principalmente em terra,
    vem o agrônomo, descobre
    o vírus da tristeza nas laranjeiras.

     

    Antibucólica 1972

    — Até a clorofila?…

    — Sim, senhor:
    até a clorofila entra na fila
    dos poluidores. Diz-nos um doutor
    de Illinois que, em matéria de monóxido
    de carbono, a graminha é uma parada.

    Aparemo-la então, que em disparada
    a relva, no jardim ou em depósito
    no quarto de dormir (sei lá) é o mesmo
    que automóvel queimando gasolina.

    — A sina, pois, do mundo, é sem remédio?
    Se da fumaça escapo, e rodo a esmo
    pelos parques cisneiros da cidade,
    trato de preparar meu epicédio,
    pois o verde de amigo fez-se inimigo
    e me leva, com toda a falsidade,
    para o último hotel, vulgo jazigo.

    Nó mais, verde, nó mais, que a língua tenho
    (Camões que me perdoe, com seu engenho)
    acidulada e a voz enrouquecida.
    Já tusso, já sufoco, já me vejo
    na horizontal postura inarredável
    só de papar um mísero legume
    ou de alecrim cheirar meigo perfume
    que esconde no seu seio algo terrível.

    Ah, natureza má que me enganavas,
    fingindo-te benigna: vai às favas
    e que as favas te sejam bem letais,
    que de árvores, arbustos, tenras folhas,
    tudo isso que polui, não quero mais
    saber. Não são usinas gigantescas,
    bombas, resíduos mil, restos largados
    à flor das águas em sinistras bolhas
    que corrompem a vida que vivemos.
    É a grama, o capim, leve, ondulante,
    forma que o vento curva a seu talante,
    e que, ao perecer, nos envenena
    o ar, desprendendo o tóxico tremendo.
    É grama, é folha, é rama, ó Tom, é planta,
    são as flores de março… mas que pena.

    Bonito, vegetais; é isso aí?
    Em vez de fotossíntese, vocês
    fotossujeira operam na atmosfera?
    Já era a pura estampa virgiliana
    sub tegmine fagi (leia-se: oiti),
    nos braços de Amarílis ou de Inês?
    Emudece a canção, flauta de cana,
    e foge, pastor meu, dos verdes campos,
    previne os bois, avisa os pirilampos,
    que a coisa não está de brincadeira.

    A poluição, sabe-se agora, é velha
    mais do que o homem. E não será o homem
    freguês da poluição, em vez de autor?
    Por pessimista, rogo, não me tomem,
    nem quero ser tachado de farsista:
    se tudo é poluição, até na flor,
    no vergel, no quintal, seja o que for,
    tratemos com a máxima presteza
    de redigir político tratado:
    teremos cativado a natureza,
    convindo em que convivam lado a lado
    o homem e a poluição fazendo amor.

     

    Entreato de Paz

    As partes conflitantes decidiram

    suspender a matança

    e por entre ruínas e cadáveres

    instaurar a esperança.

     

    A morte, agradecida, pisca o olho:

    — Era um trabalho louco

    Ceifar de ponta a ponta essa Indochina...”

    Vai descansar um pouco?

     

    Em vinte e três artigos e parágrafos

    a sorte se resolve,

    mas quem morreu sem culpa e sem aviso

    esse nunca mais volve.

     

    Neuróticos, descrentes, mutilados

    firma-se o protocolo

    volvem, de saldo, os prisioneiros: medra

    medrosa, flor no solo.

     

    Fraca se torna a força mais turuna,

    incapaz a granada

    de repetir seus feitos conclusivos:

    recolhe-se empatada. 

     

    A guerra não é mais aquela forma

    de consertar o mundo

    ao nosso estilo ou vista filosófica

    ou apetite fundo?


    Alguma coisa mais existe, e barra

    a fúria belicista;

    uma coisa sem nome definido,

    poder que não se avista.

     

    E essa coisa ressurge quando a bomba

    parecia extingui-la

    e ninguém lhe destrói a coice darmas

    a essência tranqüila.

     

    A guerra perde a guerra, e a vida ganha

    direito de viver

    mas amanhã revive a velha história:

    matar para vencer?

     

    Este round, viva a vida! nós ganhamos

    contra o poder da morte.

    A paz, de asas feridas, tão mais débil,

    revela-se a mais forte.

     

    Uma lição se colhe de tudo isto,

    ou nenhuma lição:

    alcançará o homem, bicho estranho, ser,

    de si mesmo irmão?

    Microlira

    Infatigável

    O progresso não recua.
    Já transformou esta rua
    em buraco.

    E o progresso continua.
    Vai abrir neste buraco
    outra rua.

    Afinal, da nova rua,
    o progresso vai compor
    outro buraco.

    Sussurro

    Se não erro
    ao decifrar a voz dos vegetais,
    eis que suspira a muda de pau-ferro
    no silêncio do ser:
    Eu sei que fui plantada
    com música, discurso e tudo mais,
    para alguém no futuro, oferecer
    sem discurso e sem música o prazer
    da derrubada.

    Recomendação


    Neste botânico setembro,
    que pelo menos você plante
    com eufórica
    emoção ecológica
    num pote de plástico
    uma flor de retórica.

    A Grande Manchete


    Aproxima-se a hora da manchete.
    O PETRÓLEO ACABOU.
    Acabaram as alucinações
    os crimes, os romances
    as guerras do petróleo.
    O mundo fica livre
    do pesadelo institucionalizado.

    Atiradores ao lixo
    motores de combustão interna
    e lataria colorida,
    o Museu da Sucata exibe
    o derradeiro carro carrasco.
    Tem etiqueta de remorso:
    “Cansei a humanidade”.

    Ruas voltam a existir
    para o homem
    e as alegrias de estar-junto.
    A poluição perdeu
    seu aliado fidelíssimo.
    A pressa acabou.

    Acabou, pessoal! o congestionamento,
    o palavrão,
    a neurose coletiva.
    A morte violenta entre ferragens
    com seu véu de óleo
    e chamas
    acabou.

    Milhões de arvores meninas irrompem do asfalto
    e da consciência
    em carnaval de sol.
    Dão sombras grátis
    ao papo dos amigos,
    à doçura do ócio no intervalo
    do batente,
    do amor antes aprisionado sob o capô
    ou esmigalhado pelas rodas,
    â vida de mil formas naturais.
    Pessoas, animais,
    confraternizam: Milagre!

    Dura 5 (?) minutos a festa
    da natureza com a cidade.
    Irrompem
    formas eletrônicas implacáveis,
    engenhos teleguiados catapúlticos
    de máximo poder ofensivo
    e reconquistam o espaço
    em que a vida bailava.

    Recomeça o problema de viver
    na cidade-problema?

    De que valeu cantar
    o fim da gasolina de alta octanagem?

    Enquanto não vem a formidável manchete
    vamos curtindo
    outras manchetinhas a varejo.
    Vamos curtindo
    a visão do caos e do extermínio
    na rua, na foto,
    no sono atormentado:
    Mas 400 carros por dia nas pistas
    que encolhem, encolhem, são apenas
    enfumaçadas fita de rangidos.
    Mais loucura, mais palavrão e mais desastre.

    E lemos Ralph Nader:
    a cada 10 minutos
    morre uma pessoa em acidente
    de carro; a cada 15 segundos
    sai alguém ferido
    na pátria industrial dos automóveis.
    Vamos imitá-la?
    Vamos vencê-la em desafio
    de quem mata mais e morre mais?
    Ou vamos ficar apenas
    engarrafados sem garrafa
    no ar poluído e constelado
    de placa, de sinais
    que assinalam o grande entupimento?
    Perguntas estas são mensagem
    também ela espremida na garrafa
    que bóia no alto-mar de ondas surdas
    e cegas
    à espera do futuro que as responda.

    Música de Fundo

    E Aconteceu a Primavera

    I

    [...]

    Primavera que tanto habitas
    a bráctea rósea da buganvília
    (em que jardins à vista ocultos
    sob a fumaça que é nosso azul
    residual?),
    como habitavas, parnasiana,
    o soneto crônico e clássico
    dos poetas consumidores
    de velhos tópicos europeus,
    é forçoso que alguém celebre
    o ímpeto juvenil da Terra
    mesmo poluída, desossada,
    Terra assim mesmo, seiva nossa.

    E te ofereço, Primavera,
    a arvorezinha de brinquedo
    em pátio escolar plantada,
    enquanto lá fora se ensina
    como derrubar, como queimar,
    como secar fontes de vida
    para erigir a nova ordem
    do Homem Artificial.

    Ah, Primavera, me desculpa
    se corto em meio uma floresta
    latifoliada, pois tenho pressa
    de correr na estrada de Santos.
    Não te zangues se já não vês
    em teu perene séquito lírico
    aquele sininho-flor, descoberto
    em longes tempos por George Gardner
    e que soava só no Brasil:
    foi preciso (teria sido?)
    matar o verde, substituí-lo
    pela neutra cor uniforme
    que é uniforme do Progresso.

    Primavera, primula veris,
    em palavra quedas intacta,
    em palavra pois te deponho
    a minha culpa coletiva,
    o meu citadino remorso,
    minha saudade de água, bicho,
    terra encharcada de promessas,
    e visões e asas e vozes
    primitivas e eternas, como
    eterno (e amoroso) é o homem
    ligado ao quadro natural.

    [...]

    II

    [...]

    — Não. Prefiro o Sacré du Printemps
    que transa a primavera mais primeva.  

    [...]

    (Ui, primavera é fogo
    se levada a sério!)

    — Vamos pintar de verde
    as áreas crestadas,
    pôr na parede
    a árvore genealógica,
    comprar um sabiá
    mecânico,
    sortear
    o beija-flor de beijar cimento?

    É primavera, escuta o Burle Marx:
    diz que havia jardins
    em torno das casas,
    havia matas
    a cavaleiro das cidades,
    florestas
    onde o jacarandá e o mogno conversavam
    a conversa de séculos.
    (Fecharam o bico,
    chegado o eucalipto.)

    Broto gentil, a primavera
    será um sonho de sonhar-se
    na fumaça
    no grito
    no sem azul deserto
    das cidades mortas que se julgam vivas?

    ANDRADE, Mario Drummond de. 1902-1987. Poesia Completa. / Carlos Drummond de Andrade. (conforme as disposições do autor) Fixação de textos e notas de Gilberto Mendonça Teles. Introdução de Silviano Santiago. Biblioteca Luso-brasileira / Série Brasileira. / Discurso de Primavera e Algumas Sombras, 1973. -- 1a tiragem da primeira edição, 2002 -- Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 2003.

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