• tacet: caminho tarot jodorowsky

    3.4.24

    caminho tarot jodorowsky


    Na época em que fui concebido, sem ser desejado, meus pais se odiavam. Minha chegada instalou entre eles uma relação sufocante. Os nove meses de gestação se converteram para mim numa luta para sobreviver. Isso tudo fez com que eu nascesse impregnado de um terror visceral. A cada instante, eu sentia a ordem: 'Você está proibido de viver. Você é culpado de ter invadido nosso mundo. Você não devia ter resistido ao cordão umbilical que o estrangulava. Para nós, você é um veneno'. Compreendi que era por isso que muitos anos mais tarde, apesar de viver relativamente feliz, de tempos em tempos, talvez a cada nove meses, eu sentia desejos de morrer... Sentia-me dominado pela frieza de minha mãe, que brandindo  uma espada imaginária, como A Justiça, decretava: 'Você não tem o direito de nascer, obedeça a minha ordem: desapareça'. O que eu podia fazer?
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    Para mim, o 'personagem' Deus, ator principal de toda obra sagrada, não podia ter nome, nem forma humana, nem sexo, nem idade. Não podia ser propriedade exclusiva de nenhuma religião. Qualquer denominação ou atributo que lhe dermos, será apenas uma aproximação supersticiosa. Impossível de definir com conceitos ou imagens, inacessível quando perseguido, sendo tudo, é absurdo tentar lhe acrescentar qualquer coisa. Única possibilidade: recebê-lo. Mas como, se é inconcebível, impalpável? Pode-se recebê-lo apenas por mudanças e mutações que ele aporta à nossa vida em forma de clareza mental, felicidade amorosa, capacidade criativa, saúde e prosperidade. Se o imaginamos eterno, infinito e todo poderoso, é unicamente por comparação com aquilo que pensamos de nós mesmos: finitos, efêmeros e impotentes diante dessa transformação que convencionamos chamar de 'morte'. Se tudo é Deus e Deus não morre, nada morre. Se tudo é Deus e Deus é infinito, nada tem limites. Se tudo é Deus e Deus é eterno, nada começa nem nada termina. Se tudo é Deus e Deus é todo poderoso, nada é impossível... Sendo incapaz de nomeá-lo, e de crer nele  n'Ele , posso senti-lo de maneira intuitiva no mais profundo de mim mesmo; posso aceitar sua vontade, essa vontade que cria o universo e suas leis, e imaginá-lo como aliado, aconteça o que acontecer. 'Sou teu... Tenho confiança em ti.' Isso é tudo, não preciso dizer mais nada, as palavras não são um caminho direto, elas o indicam mas não o percorrem. Aceito pertencer a esse mistério incomensurável, entidade sem ser ou não ser, sem dimensão, sem tempo. Aceito me entregar a seus desígnios, e contar que minha existência não seja um capricho, nem uma brincadeira, uma ilusão ou um jogo, mas uma necessidade inexplicável de sua Obra. Saber que essa permanente impermanência faz parte daquilo que meu espírito concebe como projeto cósmico. Crer que sendo uma engrenagem ínfima da incomensurável máquina participo de sua eternidade, que essa mudança que meu corpo chama de 'morte' é a porta que devo atravessar para submergir naquilo que meu coração sente como um amor total, que meu centro sexual concebe como um orgasmo sem fim, que meu intelecto nomeia 'vacuidade iluminada'.
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    Compreendendo assim a unidade divina, origem do criado, nós nos encontramos diante de uma impotência da linguagem racional que, com seu sistema conceitual sempre em busca de diferenças e limites, desejaria compreender, definir, explicar uma realidade onde absolutamente tudo está unido e forma um só corpo. Se aceitarmos o fato de que cada conceito não constitui a realidade, mas é dela um retrato reduzido, aprenderemos a utilizar as palavras não tanto como definições do mundo, mas como símbolos que o representam. 
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    Uma semente contém uma floresta, da mesma forma que o ventre de uma mulher contém a humanidade inteira. O inconsciente individual encerra, dentro do inconsciente coletivo, o passado de toda a raça humana, do planeta e do cosmos. Do ponto de vista iniciático, o continente é sempre menor que seu conteúdo, pois cada átomo contém Deus...
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    (Se partimos da hipótese de que o Tarot é de origem francesa, podemos encontrar mensagens ocultas nos nomes das cartas. Le Bateleur [O Mago] diria 'Le bas te leurre' [O baixo te engana], La Papesse [A Papisa]: 'L'appât pese' [A isca pesa], L'Empereur [O Imperador]: 'Lampe erreur' [Lâmpada erro], Le Pendu [O Enforcado]: 'Le pain dÍl' [O pão devido], Tempérance [Tem- perança]: 'Temps-errance' [Tempo-errância], Le Jugement [O Julgamento]: 'Le juge ment' [O juiz mente], La Maison Dieu [A Casa Deus]: 'L'âme et son Dieu' [A alma e seu Deus].)
     

    JODOROWSKY, Alejandro; COSTA, Marianne (1966- ). O caminho do tarot / Alejandro Jodorowsky e Marianne Costa. Tradução de Alexandre Barbosa de Souza. La Voie du Tarot, 2004. — São Paulo: Editora Campos (Rogério de Campos), 2016. (Selo Chave)

    JODOROWSKY, Alexandre; CAMOIN, Philippe. Tarot de MarseilleAlexandre Jodorowsky e Philippe Camoin. Marseille: CAMOIN.


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