continua/benjamin/rua de mão única/infância berlinense: 1900
Oh, coluna da vitória, tostadinha, polvilhada
com o açúcar invernal dos dias da infância.1
1 A epígrafe resultou de alguns versos escritos por Benjamin sob o efeito do haxixe, reproduzidos na íntegra por G. Scholem no posfácio à edição de Berliner Chronik [Crônica Berlinense], Frankfurt/Main, 1970, p. 132.
<Palavras prévias>
(...)
(...) Procurei, pelo contrário apoderar-me das imagens nas quais se evidencia a experiência da grande cidade por uma criança da classe burguesa.
Não me custa acreditar que tais imagens estão destinadas a ter um destino muito próprio. Elas não estão ainda presas a formas pré-definidas como aquelas que se oferecem há séculos, com referência ao sentimento da natureza, às recordações de uma infância passada no campo. Pelo contrário, as imagens da minha infância na grande cidade talvez estejam predestinadas, no seu núcleo mais íntimo, a antecipar experiências históricas posteriores.
Panorama imperial
No Panorama Imperial não havia música, (...). Havia um efeito insignificante, de fato perturbador,
que a mim me parecia superior à música. Era um toque de campainha, que
soava poucos segundos antes de a imagem desaparecer num salto, para,
depois de um intervalo, aparecer a seguinte. E de cada vez que ela soava, a
melancolia da despedida impregnava os montes até ao sopé, as cidades com
as suas janelas cintilantes, as estações com o seu fumo amarelado, as vinhas
até a mais ínfima folha. Convencia-me de que era impossível esgotar dessa vez o esplendor da paisagem. E depois vinha o propósito, nunca cumprido,
de voltar no dia seguinte. Mas antes de eu me decidir toda a construção, da
qual apenas um tapume de madeira me separava, estremecia; a imagem
vacilava na sua pequena moldura para desaparecer rapidamente da minha
vista, deslocando-se para a esquerda.
As artes que aqui perduraram morreram com o século XX.
(...)
O telefone
A explicação pode estar na construção dos aparelhos ou na memória – mas o certo é que o ruído das primeiras conversas telefônicas ecoa no meu ouvido de modo muito diferente das atuais. Eram ruídos noturnos. Nenhuma musa os transmitia. A noite de onde vinham era a mesma que antecede qualquer verdadeiro nascimento. E era a voz de um recém-nascido aquela que cochilava nos aparelhos. Nesse exato momento o telefone tornou-se o meu irmão gêmeo. Pude assistir à superação das humilhações dos seus primeiros anos. Pois, numa altura em que os lustres, os guarda- fogos e as palmeiras de interior, os consoles, as mesinhas redondas e as balaustradas das varandas, que antigamente se destacavam nas salas de entrada, já estavam havia muito envelhecidos e esquecidos, o aparelho, qual herói lendário isolado no desfiladeiro da montanha, deixando para trás o corredor, fazia a sua entrada real nas salas aligeiradas e mais claras, habitadas por uma geração mais nova. Para esta, ele era o consolo da solidão. Para os desesperados que queriam deixar este mundo imperfeito, ele brilhava com a luz da última esperança. Partilhava a cama com os abandonados. Agora que todos esperavam pela sua chamada, a voz estridente que lhe viera do exílio soava mais quente e abafada.
Muito poucos dos que usam o aparelho conhecem a devastação que o seu aparecimento causou no seio das famílias. O toque que soava entre as duas e as quatro, sempre que um colega meu desejava falar comigo, era um sinal de alarme que punha em perigo não apenas a sesta dos meus pais, mas também a época em pleno centro da qual eles se lhe entregavam. Em regra seguiam-se divergências de opinião com a companhia, para já não falar das ameaças e imprecações que o meu pai soltava contra os serviços de reclamações. Mas as suas verdadeiras orgias vinham-lhe da manivela, à qual se entregava durante minutos, até se esquecer de si. A sua mão transformava-se então num dervixe dominado pelo transe. O meu coração palpitava, tinha a certeza de que nesses casos a funcionária corria sérios riscos de apanhar uma bofetada pelo seu desleixo.
Nesse tempo, o telefone lá estava, desfigurado e enjeitado, entre o cesto da roupa suja e o gasômetro, num canto do corredor das traseiras, a partir do qual o seu toque ampliava os sobressaltos da casa de Berlim. E quando eu, a muito custo senhor dos meus sentidos, lá chegava depois de muito tatear ao longo daquele tubo escuro para pôr fim à rebelião, arrancando os dois auscultadores, pesados como halteres, e metendo a cabeça entre eles, ficava sem apelo nem agravo entregue à voz que falava do outro lado. Nada podia atenuar o poder com que ela atuava sobre mim. Impotente, deixava que ela me anulasse a noção do tempo, dos meus propósitos e deveres. E tal como o medium obedece à voz que, do lado de lá, o domina, eu me rendia à primeira proposta que me chegava através do telefone.
(...)
Tiergarten7
7 Grande parque no centro de Berlim.
Não há nada de especial em não nos orientarmos numa cidade. Mas perdermo-nos numa cidade, como nos perdemos numa floresta, é coisa que precisa de se aprender. Os nomes das ruas têm então de falar àquele que por elas deambula como o estalar de ramos secos, e as pequenas vielas no interior da cidade mostrar-lhe a hora do dia com tanta clareza quanto um vale na montanha. Aprendi tarde essa arte; ela preencheu o sonho cujos primeiros vestígios foram os labirintos nos mata-borrões dos meus cadernos. Não, os primeiros não, porque antes deles houve um que lhes sobreviveu. (...) Desde cedo percebi que há qualquer coisa de especial nesse parque labiríntico; percebi-o pelo terreiro largo e banal que em nada deixava adivinhar que aqui, a poucos passos do caminho dos fiacres e carruagens, dormita a parte mais preciosa do parque.
Chegou-me cedo um sinal disso. (...)
Mais tarde descobri novos recantos; sobre outros vim a saber mais coisas. Mas nenhuma moça, nenhuma vivência, nenhum livro foram capazes de me dizer alguma coisa de novo sobre este. (...) Os seus passos ecoavam no asfalto que pisava. O gás que iluminava o pavimento lançava sobre este chão uma luz ambígua. As pequenas escadas, os alpendres sustentados por colunas, os frisos e as arquitraves das villas do Tiergarten, tudo isso era pela primeira vez por nós tomado à letra. Acima de tudo as escadas, ainda as mesmas, com as suas vidraças, se bem que no interior das habitações muita coisa tivesse mudado. Sei ainda os versos que, depois da escola, preenchiam os intervalos dos batimentos do meu coração quando fazia uma paragem ao subir a escada. Surgiram-me de uma luz difusa que vinha da vidraça onde uma mulher, pairando como a Madonna da Capela Sistina, saía do nicho com uma grinalda nas mãos. Aliviando com os polegares as correias da pasta nos ombros, li: “O trabalho é a honra do cidadão / A bênção é o prêmio do esforço”. Lá em baixo, a porta fechava-se com um suspiro, como um fantasma que descesse ao túmulo. Lá fora talvez chovesse. Uma das vidraças coloridas estava aberta, e eu continuava a subir a escada ao ritmo das gotas.
Entre as Cariátides e os Atlantes, os putti e as Pomonas que nessa altura olhavam para mim, os que mais me atraíam eram os daquela estirpe poeirenta dos senhores dos umbrais, que guardam a entrada na existência ou numa casa. Porque esses sabem da arte da espera. Por isso, era-lhes indiferente esperar por um estranho, pelo regresso dos antigos deuses ou pela criança que, trinta anos antes, passara pelos seus pés de pasta às costas. Sob o seu signo, o velho bairro ocidental de Berlim transformava-se no lugar antigo de onde sopram os ventos de poente para os navegantes que sobem lentamente o Landwehrkanal com os seus barcos carregados das maçãs das Hespérides, para irem atracar junto à Ponte de Hércules. E, tal como na minha infância, lá estavam a Hidra e o Leão de Nemeia nos arbustos que cercam a Grande Estrela.9
9 “Grande Estrela”: Großer Stern, praça que resulta da confluência de ruas no Tiergarten, e que é uma réplica da Place de l’Étoile em Paris.
Atrasado
O relógio no pátio da escola parecia estar danificado por culpa minha. Marcava a hora “atrasado”. E ao corredor chegava, vindo das salas de aula por onde eu passava, o murmúrio de misteriosas conversações. Do lado de lá das portas, professores e alunos eram amigos. Ou então ficava tudo em silêncio, como se esperassem alguém. Imperceptivelmente, levei a mão à maçaneta da porta. O sol banhava de luz o ponto onde me encontrava. E eu, para entrar, profanei o meu dia ainda a nascer. Ninguém parecia conhecer- me, nem mesmo ver-me. Tal como o diabo ficou com a sombra de Peter Schlemihl10, também o professor reteve o meu nome no começo da aula. Eu já não ia ser chamado. Trabalhei com os outros em silêncio até o toque da campainha. Mas não havia nisso nada de reconfortante.
10 Protagonista da história do escritor romântico Adelbert von Chamisso (1781-1838) Peter Schlemihls wundersame Geschichte, que vende a sombra ao diabo (tradução portuguesa: A História Fabulosa de Peter Schlemihl, trad. e ensaio de João Barrento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2005).
Livros para rapazes
Os meus preferidos vinham da biblioteca da escola. Eram distribuídos nas primeiras classes. O diretor de turma dizia o meu nome, e o livro começava o seu trajeto sobre as carteiras, uns passavam-no ao seguinte, ou então pairava sobre as cabeças até chegar àquele que o tinha pedido, neste caso eu. As folhas traziam as marcas dos dedos que as tinham virado. O cordão que rematava a encadernação e sobressaía em cima e em baixo estava sujo. Mas a lombada é que teve de suportar mais maus-tratos, e por isso as duas capas estavam desencontradas e o topo de corte do livro formava escadinhas e terraços. Mas das suas folhas pendiam, como o verão tardio dos ramos das árvores, os ténues fios de uma rede na qual em tempos, quando aprendi a ler, me deixei enredar.
O livro estava em cima de uma mesa demasiado alta para mim. Eu tapava os ouvidos enquanto lia. Mas já tinha ouvido contar histórias assim em silêncio. Não as do meu pai, isso não. Mas às vezes, no inverno, quando estava à janela no quarto aquecido, o redemoinho de neve a cair lá fora me contava histórias em silêncio. É verdade que nunca consegui perceber bem o que ele me contava, porque muita coisa nova se metia sem parar e em grande quantidade entre a matéria já conhecida. Mal eu me tinha ligado mais intimamente a um grupo de flocos, percebia que ele tinha de me entregar a um outro que de repente o invadia. Mas agora tinha chegado o momento de seguir no redemoinho das letras as histórias que me tinham fugido à janela. As terras distantes que nelas encontrava envolviam-se, como os flocos, em jogos familiares umas com as outras. E como a distância, quando neva, já não nos leva para longe, mas para dentro, Babilônia e Bagdá, Akko e Alasca, Tromsö e o Transvaal estavam todas dentro de mim. O ar ameno dos calhamaços que a impregnava insinuava-se, com o seu sangue e o seu verniz, tão irresistivelmente no meu coração que este permanecia para sempre fiel a esses volumes usados.
Ou seria uma fidelidade a outros, mais velhos e mais difíceis de encontrar? Àqueles livros maravilhosos que só me era dado voltar a ver uma vez em sonhos? Que títulos tinham? Eu não sabia, só sabia que eram livros há muito desaparecidos, que eu nunca mais tinha encontrado. Mas agora estavam num armário que eu, ao acordar, sabia nunca ter visto antes. No sonho, o armário parecia-me antigo e bem conhecido. Os livros não estavam arrumados de pé, mas deitados, e no canto das tempestades. Trovejava neles. Se abrisse um, seria levado ao seio da trovoada, onde um texto instável e encoberto se nublava, prenhe de cores. Eram cores borbulhantes e fugidias, que iam sempre dar a um roxo que parecia vir das entranhas de um animal abatido no matadouro. Inomeáveis e pesados de sentido como essa cor roxa eram os títulos, cada um dos quais me parecia mais estranho e ao mesmo tempo mais familiar do que o anterior. Mas antes de me poder apoderar de qualquer um deles já estava acordado, sem ter nem sequer tocado em sonhos nos meus velhos livros de rapaz.
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