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    12.2.25

    continua/drummond/corpo/entra

     

    ANDRADE, Mario Drummond de. 1902-1987. Poesia Completa. / Carlos Drummond de Andrade. (conforme as disposições do autor) Fixação de textos e notas de Gilberto Mendonça Teles. Introdução de Silviano Santiago. Biblioteca Luso-brasileira / Série Brasileira. / Boitempo, 1968 • 1973 • 1979 / Repertório Urbano. 1a tiragem da primeira edição, 2002  Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 2003.

    As Contradições do Corpo

    Meu corpo não é meu corpo,
    é ilusão de outro ser.
    Sabe a arte de esconder-me
    e é de tal modo sagaz
    que a mim de mim ele oculta.

    Meu corpo, não meu agente,
    meu envelope selado,
    meu revólver de assustar,
    tornou-se meu carcereiro,
    me sabe mais que me sei.

    Meu corpo apaga a lembrança
    que eu tinha de minha mente.
    Inocula-me seu patos,
    me ataca, fere e condena
    por crimes não cometidos.

    O seu ardil mais diabólico
    está em fazer-se doente.
    Joga-me o peso dos males
    que ele tece a cada instante
    e me passa em revulsão.

    Meu corpo inventou a dor
    a fim de torná-la interna,
    integrante do meu Id,
    ofuscadora da luz
    que aí tentava espalhar-se.

    Outras vezes se diverte
    sem que eu saiba ou que deseje,
    e nesse prazer maligno,
    que suas células impregna,
    do meu mutismo escarnece.

    Meu corpo ordena que eu saia
    em busca do que não quero,
    e me nega, ao se afirmar
    como senhor do meu Eu
    convertido em cão servil.

    Meu prazer mais refinado,
    não sou eu quem vai senti-lo.
    É ele por mim, rapace,
    e dá mastigados restos
    à minha fome absoluta.

    Se tento dele afastar-me,
    por abstração ignorá-lo,
    volta a mim, com todo o peso
    de sua carne poluída,
    seu tédio, seu desconforto.

    Quero romper com meu corpo,
    quero enfrentá-lo, acusá-lo,
    por abolir minha essência,
    mas ele sequer me escuta
    e vai pelo rumo oposto.

    Já premido por seu pulso
    de inquebrantável rigor,
    não sou mais quem dantes era:
    com volúpia dirigida,
    saio a bailar com meu corpo.

    [...]

    O Amor e Seus Contratos

    Voltas a um mote de Joaquim-Francisco Coelho

    Nos contratos que tu lavras
    não vi, Amor, valimento.
    Só palavras e palavras
    feitas de sonho e de vento

    Tanto nas juras mais vivas
    como nos beijos mais longos
    em que perduram salivas
    de outras paixões ainda ativas,
    sopro de angolas e congos,
    eu sinto a turva incerteza
    (ai, ouro de tredas lavras)
    da enovelada surpresa
    que põe tanto de estranheza
    nos contratos que tu lavras.

    Por mais que no teu falar
    brilhe a promessa incessante
    de um afeto a perdurar
    até o mundo acabar
    e mesmo depois  diamante
    de mil prismas incendidos,
    amarga-me o pensamento
    de serem pactos fingidos
    e nos seus subentendidos
    não vi, Amor, valimento.

    Experiências de escrituras,
    eu tenho. De que me serve?
    Após sofridas leituras
    de ementas e de rasuras,
    no peito a dúvida ferve,
    se nos mais doutos cartórios
    de Londres, Londrina, Lavras
    para assuntos amatórios,
    teus itens são ilusórios,
    só palavras e palavras.

    As nulidades tamanhas
    que te invalidam o trato
    não sei se provém de manhas
    ou de vistas mais estranhas.
    Serão talvez teu retrato
    gravado em vento ou em sonho
    como aéreo documento
    que nunca mais recompomho.
    São todas  digo tristonho
    feitas de sonho e de vento

    Dezembro


    Oiti: a cigarra Zine:
    convite a praia. Tine
    o sol no quadril, e o míni
    véu, dissolve, do biquíni.

    [...]

    Maternidade

    Seu desejo não era desejo
    corporal.
    Era desejo de ter filho,
    de sentir, de saber que tinha filho,
    um só filho que fosse, mas um filho.

    Procurou, procurou pai para seu filho.
    Ninguém se interessava por ser pai.
    O filho desejado, concebido
    longo tempo na mente, e era tão lindo,
    nasceu do acaso, o pai era o acaso.

    O acaso nem é pai, isso que importa?
    O filho, obra materna,
    é sua criação, de mais ninguém.
    Mas lhe falta um detalhe,
    o detalhe do pai.

    Então ela é mãe e pai de seu garoto,
    a quem, por acaso,
    falta um lobo de orelha, a orelha esquerda. 

     

    Homem deitado

    Não se levanta nem precisa levantar-se.
    Está bem assim. O mundo que enlouqueça,
    o mundo que estertore em seu redor.
    Continua deitado
    sob a racha da pedra da memória.

     [...]

    Flor experiente 

    Uma flor matizada
    entreabre-se em meus dedos.
    Já sou terra estrumada
    é um de meus segredos.


    Careceu vida lenta
    e mais que lenta, peca,
    para a cor que ornamenta
    esta epiderme seca.


    Assino-me no cálice
    de estrias fraternais.
    O pensamento cale-se.
    É jardim, nada mais.

     

    As Sem-Razões do Amor

    Eu te amo porque te amo,
    Não precisas ser amante,
    e nem sempre sabes sê-lo.
    Eu te amo porque te amo.
    Amor é estado de graça
    e com amor não se paga.

    Amor é dado de graça,
    é semeado no vento,
    na cachoeira, no eclipse.
    Amor foge a dicionários
    e a regulamentos vários.

    Eu te amo porque não amo
    bastante ou demais a mim.
    Porque amor não se troca,
    não se conjuga nem se ama.
    Porque amor é amor a nada,
    feliz e forte em si mesmo.

    Amor é primo da morte,
    e da morte vencedor,
    por mais que o matem (e matam)
    a cada instante de amor.

    [...]

    Verdade

    A porta da verdade estava aberta
    mas só deixava passar
    meia pessoa de cada vez.

    Assim não era possível atingir toda a verdade,
    porque a meia pessoa que entrava
    só conseguia o perfil de meia verdade.
    E sua segunda metade
    voltava igualmente com meio perfil.
    E os meios perfis não coincidiam.

    Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
    Chegaram ao lugar luminoso
    onde a verdade esplendia os seus fogos.
    Era dividida em duas metades
    diferentes uma da outra.

    Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
    Nenhuma das duas era perfeitamente bela.
    E era preciso optar. Cada um optou
    conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

    [...]

    O Pleno e o Vazio

    Oh se me lembro e quanto.
    E se não me lembrasse?
    Outra seria minh'alma,
    bem diversa minha face.


    Oh como esqueço e quanto.
    E se não me esquecesse?
    Seria homem-espanto,
    ambulando sem cabeça.


    Oh como esqueço e lembro,
    como lembro e esqueço
    em correntezas iguais
    e simultâneos enlaces.
    Mas como posso, no fim,
    recompor meus disfarces?


    Que caixa esquisita guarda
    em mim sua névoa e cinza,
    seu patrimônio de chamas,
    enquanto a vida confere
    seu limite, e cada hora
    é uma hora devida
    no balanço da memória
    que chora e que ri, partida?

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