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    12.2.25

    drummond/corpo/continua

     

    ANDRADE, Mario Drummond de. 1902-1987. Poesia Completa. / Carlos Drummond de Andrade. (conforme as disposições do autor) Fixação de textos e notas de Gilberto Mendonça Teles. Introdução de Silviano Santiago. Biblioteca Luso-brasileira / Série Brasileira. / Boitempo, 1968 • 1973 • 1979 / Repertório Urbano. 1a tiragem da primeira edição, 2002  Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 2003.

     

    Canção de Itabira

     A Zoraida Diniz

    Mesmo a essa altura do tempo,
    um tempo que já se estira,
    continua em mim ressoando
    uma canção de Itabira.


    Ouvi-a na voz materna
    que de noite me embalava
    ecoando ainda no sono,
    sem que faltasse uma oitava.


    No bambuzal bem no extremo
    da casa de minha infância,
    parecia que o som vinha
    da mais distante distância.


    No sino maior da igreja,
    A dez passos do sobrado,
    A infiltrada melodia
    Emoldurava o passado.


    Por entre as lajes de Penha,
    os lábios das lavadeiras
    o mesmo verso entoavam
    ao longo da tarde inteira.


    Pelos caminhos em torno
    da cidade, a qualquer hora,
    ciciava cada coqueiro,
    essa música de outrora.


    Subindo ao alto da serra
    (serra que hoje é lembrança)
    na ventania chegava-me
    essa canção de bonança.


    Canção que este nome encerra
    e em volta do nome gira.
    Mesmo o silêncio a repete,
    doce canção de Itabira.

    Mudança

    O que muda na mudança,
    se tudo em volta é uma dança
    no trajeto da esperança,
    junto ao que nunca se alcança?

    O ano passado

    O ano passado não passou,
    continua incessantemente.
    Em vão marco novos encontros.
    Todos são encontros passados.

    As ruas, sempre do ano passado,
    e as pessoas, também as mesmas,
    com iguais gestos e falas.
    O céu tem exatamente
    sabidos tons de amanhecer,
    de sol pleno, de descambar
    como no repetidíssimo ano passado.

    Embora sepultos, os mortos do ano passado
    sepultam-se todos os dias.
    Escuto os medos, conto as libélulas,
    mastigo o pão do ano passado.

    E será sempre assim daqui por diante.
    Não consigo evacuar
    o ano passado.

    [...]

    Lição

    Tarde, a vida me ensina
    esta lição discreta:
    a ode cristalina
    é a que se faz sem poeta.
    [...]
    Eu, Etiqueta 
    Em minha calça está grudado um nome
    Que não é meu de batismo ou de cartório
    Um nome... estranho.
    Meu blusão traz lembrete de bebida
    Que jamais pus na boca, nessa vida,
    Em minha camiseta, a marca de cigarro
    Que não fumo, até hoje não fumei.
    Minhas meias falam de produtos
    Que nunca experimentei
    Mas são comunicados a meus pés.
    Meu tênis é proclama colorido
    De alguma coisa não provada
    Por este provador de longa idade.
    Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
    Minha gravata e cinto e escova e pente,
    Meu copo, minha xícara,
    Minha toalha de banho e sabonete,
    Meu isso, meu aquilo.
    Desde a cabeça ao bico dos sapatos,
    São mensagens,
    Letras falantes,
    Gritos visuais,
    Ordens de uso, abuso, reincidências.
    Costume, hábito, permência,
    Indispensabilidade,
    E fazem de mim homem-anúncio itinerante,
    Escravo da matéria anunciada.
    Estou, estou na moda.
    É duro andar na moda, ainda que a moda
    Seja negar minha identidade,
    Trocá-la por mil, açambarcando
    Todas as marcas registradas,
    Todos os logotipos do mercado.
    Com que inocência demito-me de ser
    Eu que antes era e me sabia
    Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
    Ser pensante sentinte e solitário
    Com outros seres diversos e conscientes
    De sua humana, invencível condição.
    Agora sou anúncio
    Ora vulgar ora bizarro.
    Em língua nacional ou em qualquer língua
    (Qualquer principalmente.)
    E nisto me comparo, tiro glória
    De minha anulação.
    Não sou - vê lá - anúncio contratado.
    Eu é que mimosamente pago
    Para anunciar, para vender
    Em bares festas praias pérgulas piscinas,
    E bem à vista exibo esta etiqueta
    Global no corpo que desiste
    De ser veste e sandália de uma essência
    Tão viva, independente,
    Que moda ou suborno algum a compromete.
    Onde terei jogado fora
    Meu gosto e capacidade de escolher,
    Minhas idiossincrasias tão pessoais,
    Tão minhas que no rosto se espelhavam
    E cada gesto, cada olhar
    Cada vinco da roupa
    Sou gravado de forma universal,
    Saio da estamparia, não de casa,
    Da vitrine me tiram, recolocam,
    Objeto pulsante mas objeto
    Que se oferece como signo dos outros
    Objetos estáticos, tarifados.
    Por me ostentar assim, tão orgulhoso
    De ser não eu, mas artigo industrial,
    Peço que meu nome retifiquem.
    Já não me convém o título de homem.
    Meu nome novo é coisa.
    Eu sou a coisa, coisamente. 
    Passatempo

    O verso não, ou sim o verso?
    Eis-me perdido no universo
    do dizer, que, tímido, verso,
    sabendo embora que o que lavra
    só encontra meia palavra.

    Os Amores E Os Mísseis

    Pensando em todos aqueles
    que, no mundo inteiro, se
    reúnem para lutar contra a
    produção e a disseminação
    de armas nucleares.


    Anarda, sou de ti cativo,
    mas deploro este amor pungente.
    Pouco importa ele esteja vivo,
    se há mísseis sob o sol cadente.

    Já não posso, Almena, ofertar-te
    nem o beijo nem a canção.
    Mísseis cobrindo toda parte
    acinzentam meu coração.

    Márcia gentil, para um momento,
    considera as nuvens difíceis.
    Novas más perpassam no vento:
    em lugar de mil flores, mísseis.

    Ouve, Nerina, meu queixume:
    como te amar, cheia de graça?
    Em meu peito esmorece o lume,
    com os mísseis vem a desgraça.

    Ai, Eulina, abro mão — que pena —
    de teus encantos mais suaves.
    Extinguiu-se a vida serena,
    mísseis assustam homens e aves.

    Nise, Nise, que em áureas horas
    minha doçura foste, hoje és
    condenada à morte, e choras,
    pois há mísseis sob teus pés.

    Não peço, Glaura, teus afagos,
    que amanhã serão pó tristonho
    entre bilhões de crânios vagos:
    negam os mísseis todo sonho.

    Tirce amada, volve-me o rosto
    e despreza meus madrigais
    redolentes ao luar de agosto.
    Grasnam os mísseis: Nunca mais.

    Meiga e bela Marília, o Arconte
    taciturno olha para mim.
    Na áspera linha do horizonte,
    eis que os mísseis decretam: Sim.

    Sim, pereça todo prazer
    e das amadas toda a glória.
    Com seu satânico poder,
    os mísseis enterram a História.

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