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    28.5.25

    continua/Chantal Montellier/Bruxas, minhas irmãs/Sorcières, mes sœurs/continua

    MONTELLIER, Chantal (1947-). Bruxas, minhas irmãs / Sorcières, mes sœurs / Chantal Montellier; prefácio Chantal Montellier; com textos de A Bruxa, de Jules Michelet; tradução Maria Clara Carneiro; 2006. São Paulo: Veneta, 2023.

    Soldados, pajens, valetes amontoados à noite sob duas cúpulas baixas, presos o dia inteiro nas ameias, nos terraços estreitos vivendo um tédio desolador, respiravam e viviam somente pelas escapadas lá embaixo. Não aquelas escapadas para fazer guerras nas terras vizinhas, mas as de caça, de caçada humana. Inúmeras afrontas, ultrajes contra as famílias de servos. Seu senhor sabia bem que tamanha massa de homens sem mulheres só poderia ser pacificada se fosse solta vez ou outra.

    A ideia chocante de um inferno em que Deus emprega almas celeradas, a quem Ele lhes entrega os mais culpados como se fossem brinquedo, um belo dogma da Idade Média, se dava ao pé da letra. O homem sentia a ausência de Deus. A cada incursão se davam provas do reino de Sată, se dava a crer que era a ele a quem se devia dirigir. [...] Havia prazer no ultraje, em espancar e em provocar choro. No século XVII, as senhoras da corte ainda morriam de rir das anedotas contadas pelo Duque de Lorena, sobre como sua tropa, em vilarejos tranquilos, tomava e atormentava todas as mulheres, mesmo as velhas.
    Os ultrajes atingiam principalmente, ao que parece, as famílias relativamente afluentes e distintas dos outros servos; as tais famílias de servos da área administrativa, que surgem já no século XII como chefes do vilarejo. A nobreza os odiava, zombava deles, os arruinava. Não lhes perdoavam sua dignidade moral nascente. Não admitiam que suas mulheres e filhas fossem honestas e sérias. Elas não tinham o direito de serem respeitadas. A honra delas não era delas. Servas de corpo, essa expressão cruel era o tempo todo lançada a elas.
     
    Jules Michelet
    A Bruxa, Livro Primeiro, Capítulo IV: Tentações


    "A lepra é o último nível e o apogeu do flagelo. Mas mil outros males cruéis e menos hediondos assolam todos os cantos. As mais puras e as mais belas foram marcadas por tristes flores, encaradas como evidência do pecado, ou o castigo de Deus. Fez-se, então, o que o amor à vida não conseguira fazer; transgrediu-se as interdições; abandonou-se a velha medicina oficial e a inútil água benta. Recorreu-se à bruxa. Por costume e por temor também, frequentava-se ainda a Igreja; mas a verdadeira Igreja a partir de então era a casa dela, no charco, na floresta, no deserto. Era lá onde os pedidos eram feitos [...] Atitude temerária e condenável que depois se lamentava à noite. É preciso mesmo que ela esteja presente, essa fatalidade nova. Que queime bem esse fogo, que todos os santos percam a força. Mas ora! O processo do Templo e o processo de Bonifácio revelaram a Sodoma escondida sob o altar. Um papa bruxo, amigo do diabo, e carregado pelo diabo, isso muda toda a forma de pensar. Será que foi sem ajuda do demônio que o papa, que não está mais em Roma, mas em sua Avignon, João XXII, filho de um sapateiro de Cahors, conseguiu coletar mais ouro que o imperador e todos os reis? Tal papa, e tal bispo. Guichard, o bispo de Troyes, não teria obtido do diabo a morte das filhas do rei?... Nós não pedimos morte alguma, nós pedimos as coisas mais doces: vida, saúde, beleza, prazer... Coisas de Deus, que Deus nos recusa... O que fazer? E se nós as conseguíssemos pela graça do Príncipe do Mundo?"
     
    Jules Michelet
    A Bruxa, Livro Primeiro, Capítulo IX: Satã médico

    "Mas a grande revolução que as bruxas fazem, a maior contestação ao espírito da Idade Média, é o que se poderia chamar de reabilitação do ventre e das funções digestivas. Elas professaram com coragem: 'Nada de impuro e nada de imundo'. O estudo da matéria foi a partir de então ilimitado, libertado. A medicina se tornou possível [...]. Não faltaram injúrias. Chamaram-nas de bruxas sujas, indecentes, despudoradas, imorais. No entanto, seus primeiros passos nessa direção foram, pode-se dizer, uma feliz revolução no que há de mais moral, a bondade, a caridade. Por uma perversão monstruosa, a Idade Média contemplava a carne em sua representante (maldita desde Eva) - a Mulher - como impura. A Virgem, exaltada como virgem, e não como Nossa Senhora, longe de louvar a mulher real, a havia rebaixado, ao colocar o homem no caminho de uma escolástica da pureza mergulhada na falsidade e na astúcia.
    A própria mulher acabou por admitir o preconceito odioso e se acreditou imunda. Ela se escondia para parir. Ela enrubescia por amar e por oferecer felicidade. Ela, geralmente tão sóbria, em comparação ao homem, ela que é praticamente sempre herbívora e frutívora, que toma tão pouco à natureza, ela que,
    por um regime lácteo, vegetal, tem a pureza dessas tribos inocentes, pedia quase perdão por existir, viver, cumprir as condições de vida. Humilde mártir do pudor, ela se impunha suplícios, ao ponto de querer esconder, anular, quase suprimir esse ventre adorado, três vezes santo, de onde o deus homem nasce, renasce eternamente.
     
    Jules Michelet
    A Bruxa, Livro Primeiro, Capítulo IX: Satã médico
     
    'Imitem, tudo estará bem. Repitam e copiem.' Mas seria esse caminho da verdadeira infância, que vivifica o coração do homem, que lhe faria reencontrar as fontes frescas e fecundas. Nesse mundo que faz da infância e juventude meros dos atributos da velhice, vejo apenas astúcia, servidão, impotência. O que é essa literatura comparada aos monumentos sublimes dos gregos e judeus? Ou diante do gênio romano? É precisamente a queda literária que aconteceu na Índia, do bramanismo ao budismo; uma tagarelice pomposa depois de textos que eram da mais alta inspiração. Os livros copiam os livros, as igrejas copiam as igrejas. E, quando não podem mais copiar, roubam umas das outras. Dos mármores arrancados de Ravena, orna-se a Aix-la-Chapelle. Assim é toda sociedade. Tanto o bispo que é rei de uma cidade quanto o bárbaro que é rei de uma tribo copiam os magistrados romanos. Nossos monges, que achamos originais, estão apenas renovando a villa (como diz muito bem Chateaubriand) em seu monastério. Eles não têm nenhuma intenção de fundar uma sociedade nova, nem de transformar a antiga. Imitadores dos monges do Oriente, eles gostariam, em primeiro lugar, que seus serviçais fossem eles também pequenos monges lavradores, um povo estéril. É apesar deles que a família se refaz, refaz o mundo.
    Quando se vê que esses anciãos envelhecem tão rápido, quando, em um século, caímos do sábio monge São Bento ao pedante Bento de Aniane, sentimos mesmo que essas pessoas não tiveram qualquer participação na grande criação popular que floresce sobre as ruínas [...]"
     
    Jules Michelet
    A Bruxa, Livro Primeiro, Capítulo II: Por que a Idade Média se desesperou

    Jules Michelet (Paris, 21 de agosto de 1798 – 9 de fevereiro de 1874)

    Chantal Montellier

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