Bertolt Brecht/Poemas 1913-1956/Paulo César de Souza/continua
AOS QUE HESITAM
Você diz:
Nossa causa vai mal.
A escuridão aumenta. As forças diminuem.
Agora, depois que trabalhamos por tanto tempo
Estamos em situação pior que no início.
Mas o inimigo está aí, mais forte do que nunca.
Sua força parece Ter crescido. Ficou com aparência de invencível.
Mas nós cometemos erros, não há como negar.
Nosso número se reduz. Nossas palavras de ordem
Estão em desordem. O inimigo
Distorceu muitas de nossas palavras
Até ficarem irreconhecíveis.
Daquilo que dissemos, o que é agora falso:
Tudo ou alguma coisa?
Com quem contamos ainda? Somos o que restou, lançados fora
Da corrente viva? Ficaremos para trás
Por ninguém compreendidos e a ninguém compreendendo?
Precisamos ter sorte?
Isto você pergunta. Não espere
Nenhuma resposta senão a sua.
NA MORTE DE UM COMBATENTE DA PAZ
À memória de Carl von Ossistscky
Aquele que não cedeu
Foi abatido
O que foi abatido
Não cedeu.
A boca do que preveniu
Está cheia de terra.
A aventura sangrenta
Começa.
O túmulo do amigo da paz
É pisoteado por batalhões.
Então a luta foi em vão?
Quando é abatido o que não lutou só
O inimigo
Ainda não venceu.
NO NASCIMENTO DE UM FILHO
(Segundo poema chinês
de
Su Tung-po, 1036-1101)
Famílias, quando lhes nascer um filho
Façam votos de que seja inteligente.
Eu, que pela inteligência
Arruinei minha vida
Posso apenas desejar
Que meu filho se revele
Parvo e tacanho.
Assim terá uma vida tranquila
Como ministro do governo.
EPITÁFIO PARA GORKI
Aqui jaz
O enviado dos bairros da miséria
O que descreveu os atormentadores do povo
E aqueles que os combateram
O que foi educado nas ruas
O de baixa extração
Que ajudou a abolir o sistema de Alto e Baixo
O mestre do povo
Que aprendeu com o povo.
SÁTIRAS ALEMÃS
A QUEIMA DE LIVROS
Quando o regime ordenou que fossem queimados
publicamente
Os livros que continham saber pernicioso, e em toda parte
Fizeram bois arrastarem carros de livros
Para as pilhas em fogo, um poeta perseguido
Um dos melhores, estudando a lista dos livros queimados
Descobriu, horrorizado, que os seus
Haviam sido esquecidos. A cólera o fez correr
Célere até sua mesa, e escrever uma carta aos donos do poder.
Queimem-me! Escreveu com pena veloz. Queime-me!
Não me façam uma uma coisa dessas! Não me deixem de lado! Eu não
Relatei sempre a verdade em meus livros? E agora tratam-me
Como um mentiroso! Eu lhes ordeno:
Queime-me!
DIFICULDADE DE GOVERNAR
1
Os ministros não cansam de dizer ao povo
Como é difícil governar. Sem os ministros
O grão de trigo cresceria para baixo, não para cima.
Nenhum pedaço de carvão sairia das minas
Se o Chanceler fosse tão sábio. Sem o Ministro da Propaganda
Nenhuma mulher ficaria grávida. Sem o Ministro da Guerra
Jamais haveria guerra. Sim, se o sol se levantara de manhã
Sem a permissão do Führer
É inteiramente discutível, e se o fizesse
Seria no lugar errado.
2
Igualmente difícil é, eles nos dizem
Dirigir uma fábrica. Sem o proprietário
As paredes desmoronariam e as máquinas enferrujariam, dizem.
Mesmo que em algum lugar se fabricasse um arado
Ele nunca chegaria a um campo
Sem as palavras sabidas que o empresário escreve aos camponeses: senão
Quem poderia informá-los que existem arados? E o que
Seria de uma fazenda sem o fazendeiro? Certamente
Semeariam centeio onde já se encontram batatas.
3
Se governar fosse fácil
Não seriam necessários espíritos iluminados como o Führer.
Se o trabalhador soubesse como utilizar sua máquina
E o agricultor soubesse distinguir um campo de uma tábua de fazer macarrão
Não seriam necessário industriais e fazendeiros.
Somente porque todos são tão estúpidos
Precisa-se de alguns tão espertos.
4
Ou é possível que
Governar seja tão difícil
Apenas porque a fraude e a exploração
Exigem algum aprendizado?
NECESSIDADE DA PROPAGANDA
1
É possível que em nosso país nem tudo ande como
deveria andar.
Mas ninguém pode negar que a propaganda é boa.
Mesmo os famintos devem admitir
Que o Ministro da Alimentação fala bem.
2
Quando o regime liquidou mil homens
Num único dia, sem investigação nem processo
O Ministro da Propaganda louvou a paciência infinita do Führer
Que havia esperado tanto para ter a matança
E havia acumulado os patifes de bens e distinções
Fazendo-o num discurso tão magistral, que
Naquele dia não só os parentes das vítimas
Mas também ao próprios algozes choraram.
3
E quando em um outro dia o maior dirigível do Reich
Se desfez em chamas, porque o haviam enchido de gás inflamável
Poupando o gás não-inflamável para fins de guerra
O Ministro da Aeronáutica prometeu diante dos caixões dos mortos
Que não se deixaria desencorajar, o que ocasionou
Uma grande ovação. Dizem que houve aplausos
Até mesmo dentro dos caixões.
4
E como é exemplar a propaganda
Do lixo e do livro do Führer!
Todo mundo é levado a recolher o livro do Führer
Onde quer que esteja jogado.
Para propagar o hábito de juntar trapos*, o poderoso Göring
Declarou-se o maior “juntador de crápulas” de todos os tempos
E para acomodar os crápulas* fez construir
No centro da capital do Reich
Um palácio ele mesmo do tamanho de uma cidade.
5
Um bom propagandista
Transforma um monte de esterco em local de veraneio.
Quando não há manteiga, ele demonstra
Como um talhe esguio faz um homem esbelto.
Milhares de pessoas que o ouvem discorrer sobre as autoestradas
Alegram-se como se tivessem carros.
Nos túmulos dos que morreram de fome ou em combate
Ele planta louros. Mas já bem antes disso
Falava de paz enquanto os canhões passavam.
6
Somente através de propaganda perfeita
Pôde-se convencer milhões de pessoas
Que o crescimento do Exército constitui obra de paz
Que cada novo tanque é uma pomba da paz
E cada novo regimento uma prova de
Amor à paz.
7
Mesmo assim: bons discursos podem conseguir muito
Mas não conseguem tudo. Muitas pessoas
Já se ouve dizerem: pena
Que a palavra ‘carne’ apenas não satisfaça, e
Pena que a palavra ‘roupa’ aqueça tão pouco.
Quando o Ministro do Planejamento faz um discurso de louvor à nova impostura
Não pode chover, pois seus ouvintes
Não têm com que se proteger.
8
Ainda algo mais desperta dúvidas
Quanto à finalidade da propaganda: quanto mais propaganda há em nosso país
Tanto menos há em outros países.
*A palavra alemã Lumpen tem os dois sentidos. (N.T.)
OS MEDOS DO REGIME
1
Um estrangeiro, voltando de uma viagem ao Terceiro
Reich
Ao ser perguntado quem realmente governava lá,
respondeu:
O medo.
2
Amedrontado
O erudito pára no meio de uma discussão e observa
Pálido, as paredes finas do seu gabinete. O professor
Não consegue dormir, preocupado
Com uma frase ambígua que o inspetor deixou escapar.
A velha senhora na mercearia
Coloca os dedos trêmulos sobre a boca, para conter
O xingamento sobre a farinha ruim. Amedrontado
O médico vê as marcas de estrangulamento em seu paciente, e cheios de medo
Os pais olham os filhos como se olhassem para traidores.
Mesmo os moribundos
Amortecem a voz que sai com dificuldade, ao
Despedirem-se dos seus parentes.
3
Mas, também os camisas-marrons
Têm medo do homem que não levanta o braço
E ficam aterrorizados diante daquele
Que lhes deseja um bom dia.
As vozes agudas dos que dão ordens
Têm tanto medo quanto os guinchos
Dos porcos a esperar a faca do açougueiro, e os mais gordos traseiros
Transpiram medo nas cadeiras de escritório.
Impelidos pelo medo
Eles irrompem nas casas e fazem buscas nos sanitários
E é o medo que os faz
Queimar bibliotecas inteiras. Assim
O temor domina não apenas os dominados, mas também
Os dominadores.
4
Por que
Temem tanto a palavra clara?
5
Em vista do poder imenso do regime
De seus campos de concentração e câmaras de tortura
De seus bem nutridos policiais
Dos juízes intimidados ou corruptos
De seus arquivos com as listas de suspeitos
Que ocupam prédios inteiros até o teto
Seria de acreditar que ele não temeria
Uma palavra clara de um homem simples.
6
Mas esse Terceiro Reich lembra
A construção do assírio Tar, aquela fortaleza poderosa
Que, diz a lenda, não podia ser tomada por nenhum exército, mas que
Através de uma única palavra clara, pronunciada no interior
Desfez-se em pó.
PENSAMENTOS SOBRE A DURAÇÃO DO EXÍLIO
1
Não jogue prego nenhum na parede
Jogue o casaco na cadeira.
Por que fazer planos para quatro dias?
Amanhã você volta.
Deixe a arvorezinha sem água.
Para que plantar mais uma árvore?
Antes que ela tenha um palmo de altura
Você irá embora, contente.
Desça o boné sobre os olhos, ao cruzar com as pessoas.
Para que estudar uma gramática estrangeira?
A notícia que lhe chama para casa
Está escrita numa língua conhecida.
Assim como a cal desprende da parede
(Nada faça quanto a isso!)
Apodrecerá a cerca da violência
Que foi erguida na fronteira
Para manter longe a justiça.
2
Olhe para o prego que colocou na parede:
Quando acha que voltará?
Quer saber o que pensa no mais íntimo?
Dia após dia
Você trabalha para a libertação.
Sentado no quarto, escreve.
Quer saber o que acha de seu trabalho?
Olhe a pequena castanheira no canto do jardim
Para a qual você levou o jarro d’água
LOCAL DE REFÚGIO
Há um remo no telhado. Um vento brando
Não empurrará a palha.
No pátio foram enfiados postes
Para o balanço das crianças.
O correio chega duas vezes ao dia
Onde cartas seriam bem-vindas.
Pelo estreito vêm os ferry-boats
A casa tem quatro portas, para por elas fugir.
EXPULSO POR BOM MOTIVO
Eu cresci como filho
De gente abastada. Meus pais
Me colocaram um colarinho, e me educaram
No hábito de ser servido
E me ensinaram a dar ordens. Mas quando
Já crescido, olhei em torno de mim
Não me agradaram as pessoas de minha classe,
Nem dar ordens nem ser servido
Então deixei minha classe e me juntei
À gente pequena.
Assim
Eles criaram um traidor, ensinaram-lhe
Suas artes, e ele
Denuncia-os ao inimigo.
Sim, eu conto seus segredos. Fico
Entre o povo e explico
Como eles trapaceiam, e digo o que virá, pois
Estou instruído em seus planos.
O latim de seus clérigos corruptos
Traduzo palavra por palavra em linguagem comum,
então
Ele se revela uma farsa. Tomo
A balança da sua justiça e mostro
Os pesos falsos. E os seus informantes relatam
Que me encontro entre os despossuídos, quando
Tramam a revolta.
Eles me advertiram e me tomaram
O que ganhei com meu trabalho. E quando não me corrigi
Eles foram me caçar, mas
Em minha casa
Encontraram somente escrito que expunham
Suas tramas contra o povo. Então
Enviaram uma ordem de prisão
Acusando-me de ter idéias baixas, isto é
As idéias da gente baixa.
Aonde vou sou marcado
Aos olhos dos possuidores, mas os despossuídos
Leem a ordem de prisão
E me oferecem abrigo. Você, dizem
Foi expulso por bom motivo.
AOS QUE VÃO NASCER
1
É verdade, eu vivo em tempos negros.
Palavra inocente é tolice. Uma testa sem rugas
Indica insensibilidade. Aquele que ri
Apenas não recebeu ainda
A terrível notícia.
Que tempos são esses, eu que
Falar de árvores é quase um crime
Pois implica silenciar sobre tantas barbaridades?
Aquele que atravessa a rua tranqüilo
Não está mais ao alcance de seus amigos
Necessitados?
Sim, ainda ganho meu sustento
Mas acreditem: é puro acaso. Nada do que faço
Me dá direito a comer a fartar.
Por acaso fui poupado. (Se minha sorte acaba, estou perdido.)
As pessoas me dizem: Coma e beba! Alegre-se porque
tem!
Mas como posso comer e beber, se
Tiro o que como ao que tem fome
E meu copo d’água falta ao que tem sede?
E no entanto eu como e bebo.
Eu bem gostaria de ser sábio.
Nos velhos livros se encontra o que é sabedoria:
Manter-se afastado da luta do mundo e a vida breve
Levar sem medo
E passar sem violência
Pagar o mal com o bem
Não satisfazer os desejos, mas esquecê-los
Isto é sábio.
Nada disso sei fazer:
É verdade, eu vivo em tempos negros.
2
À cidade cheguei em tempo de desordem
Quando reinava fome.
Entre os homens cheguei em tempo de tumulto
E me revoltei junto com eles.
Assim passou o tempo
Que sobre a terra me foi dado.
A comida comi entre batalhas
Deitei-me para dormir entre assassinos
Do amor cuidei displicente
E impaciente contemplei a natureza.
Assim passou o tempo
Que sobre a terra me foi dado.
As ruas de meu tempo conduziam ao pântano.
A linguagem denunciou-me ao carrasco.
Eu pouco podia fazer. Mas os que estavam por cima
Estariam melhor sem mim, disso tive esperança.
Assim passou o tempo
Que sobre a terra me foi dado.
As forças eram mínimas. A meta
Estava bem distante.
Era bem visível, embora para mim
Quase inatingível.
Assim passou o tempo
Que nesta terra me foi dado.
3
Vocês, que emergirão do dilúvio
Em que afundamos
Pensem
Quando falarem de nossas fraquezas
Também nos tempos negros
De que escaparam.
Andávamos então, trocando de países como de sandálias
Através das lutas de classes, desesperados
Quando havia só injustiça e nenhuma revolta.
Entretanto sabemos:
Também o ódio à baixeza
Deforma as feições.
Também a ira pela injustiça
Torna a voz rouca. Ah, e nós
Que queríamos prepara o chão para o amor
Não pudemos nós mesmos ser amigos.
Mas vocês, quando chegar o momento
Do homem ser parceiro do homem
Pensem em nós
Com simpatia.
0 Comentários:
Postar um comentário
Assinar Postar comentários [Atom]
<< Página inicial