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G
[O Colecionador]
[...]
É decisivo na arte de colecionar que o objeto seja desligado de todas as suas funções primitivas, a fim de travar a relação mais íntima que se pode imaginar com aquilo que lhe é semelhante. Esta relação é diametralmente oposta à utilidade e situa-se sob a categoria singular da completude. O que é esta “completude” <?> É uma grandiosa tentativa de superar o caráter totalmente irracional de sua mera existência através da integração em um sistema histórico novo, criado especialmente para este fim: a coleção. E para o verdadeiro colecionador, cada uma das coisas torna-se neste sistema uma enciclopédia de toda a ciência da época, da paisagem, da indústria, do proprietário do qual provém. O mais profundo encantamento do colecionador consiste em inscrever a coisa particular em um círculo mágico no qual ela se imobiliza, enquanto a percorre um último estremecimento (o estremecimento de ser adquirida). Tudo o que é lembrado, pensado, consciente torna-se suporte, pedestal, moldura, fecho de sua posse. Não se deve pensar que o tópos hyperouranios, que, segundo Platão,7 abriga as imagens primevas e imutáveis das coisas, seja estranho para o colecionador. Ele se perde, certamente. Mas possui a força de erguer-se novamente apoiando-se em uma tábua de salvação, e a peça recém-adquirida emerge como uma ilha no mar de névoas que envolve seus sentidos. — Colecionar é uma forma de recordação prática e de todas as manifestações profanas da “proximidade”, a mais resumida. Portanto, o ato mais diminuto de reflexão política faz, de certa maneira, época no comércio antiquário. Construímos aqui um despertador, que sacode o kitsch do século anterior, chamando-o à “reunião”.8
[H 1a, 2]
[...]
É preciso reexaminar as Fleurs du Mal para ver como as coisas são elevadas à condição de alegoria. Deve ser observado o emprego de letras maiúsculas.
[H 1a, 4]
Ao final de Matière et Mémoire, Bergson desenvolve a idéia de que a percepção é uma função do tempo.9 Poder-se-ia dizer que, se vivêssemos segundo um outro ritmo — mais serenos diante de certas coisas, mais rápidos diante de outras não existiria para nós nada “duradouro”, mas tudo se desenrolaria diante de nossos olhos, tudo viria de encontro a nós. Ora, é exatamente isso que se passa com o grande colecionador em relação às coisas. Elas vão de encontro a ele. Como ele as persegue e as encontra, e que tipo de modificação é provocada no conjunto das peças por uma nova peça que se acrescenta, tudo isto lhe mostra suas coisas em um fluxo contínuo. Aqui se observam as passagens parisienses como se fossem possessões na mão de um colecionador. (No fundo, pode-se dizer, o colecionador vive um pedaço de vida onírica. Pois também no sonho o ritmo da percepção e da experiência modificou-se de tal maneira que tudo - mesmo o que é aparentemente mais neutro - vai de encontro a nós, nos concerne. Para compreender as passagens a fundo, nós as imergimos na camada mais profunda do sonho, falamos delas como se tivessem vindo de encontro a nós.)
[H 1a, 5]
“A compreensão da alegoria assume para vocês proporções que vocês mesmos ignoram; notaremos, en passant, que a alegoria, esse gênero tão espiritual, que os pintores canhestros nos acostumaram a desprezar, mas que é verdadeiramente uma das formas primitivas e mais naturais da poesia, retoma sua legitima dominação na inteligência iluminada pela embriaguez.” Charles Baudelaire, Les Paradis Artificieis, Paris, 1917, p. 73. (Do que se segue resulta indubitavelmente que Baudelaire de fato tem em mente a alegoria, não o símbolo. O trecho foi extraído do capitulo sobre o haxixe.) O colecionador como alegorista. ■ Haxixe ■
[H 2, 1]
[...]
Pode-se partir do fato de que o verdadeiro colecionador retira o objeto de suas relações funcionais. Esse olhar, porém, não explica a fundo esse comportamento singular. Pois não é esta a base sobre a qual se constrói uma contemplação “desinteressada” no sentido de Kant e de Schopenhauer, de tal modo que o colecionador consegue lançar um olhar incomparável sobre o objeto, um olhar que vê mais e enxerga diferentes coisas do que o olhar do proprietário profano, e o qual deveria ser melhor comparado ao olhar de um grande fisiognomonista. Entretanto, o modo como este olhar se depara com o objeto deve ser presentificado de maneira ainda mais aguda através de uma outra consideração. Pois é preciso saber: para o colecionador, o mundo está presente em cada um de seus objetos e, ademais, de modo organizado. Organizado, porém, segundo um arranjo surpreendente, incompreensível para uma mente profana. Este arranjo está para o ordenamento e a esquematização comum das coisas mais ou menos como a ordem num dicionário está para uma ordem natural. Basta que nos lembremos quão importante é para cada colecionador não só o seu objeto, mas também todo o passado deste, tanto aquele que faz parte de sua gênese e qualificação objetiva, quanto os detalhes de sua história aparentemente exterior: proprietários anteriores, preço de aquisição, valor etc. Tudo isso, os dados “objetivos”, assim como os outros, forma para o autêntico colecionador em relação a cada uma de suas possessões uma completa enciclopédia mágica, uma ordem do mundo, cujo esboço é o destino de seu objeto. Aqui, portanto, neste âmbito estreito, é possível compreender como os grandes fisiognomonistas11 (e colecionadores são fisiognomonistas do mundo das coisas) tornam-se intérpretes do destino. Basta que acompanhemos um colecionador que manuseia os objetos de sua vitrine. Mal segura-os nas mãos, parece estar inspirado por eles, parece olhar através deles para o longe, como um mago. (Seria interessante estudar o colecionador de livros como o único que não necessariamente desvinculou seus tesouros de seu contexto funcional.)
[H 2, 7; H 2a, 1]
[...]
<fase média>
[...]
O tipo positivo oposto ao colecionado, que, ao mesmo tempo, representa seu aperfeiçoamento à medida que realiza a libertação das coisas da servidão de serem úteis, deve ser apresentado segundo esta formulação de Marx: “A propriedade privada, tornou-nos tão tolos e inertes que um objeto é nosso apenas quando o possuímos, portanto, quando existe para nós como capital ou quando é ... utilizado por nós.” Karl Marx, Der historische Materialismus: Die Frühschriften, ed.org. por Landshut e Mayer, Leipzig, 1923, vol.1, p.299 (“Nationalökonomie und Philosophie”).
[H 3a, 1J
“O lugar de todos os sentidos físicos e espirituais ... foi tomado pela simples alienação de todos estes sentidos do ter ... (Sobre a categoria do ter, ver Hess em “21 Bogen” (21 Folhas).) Karl Marx, Der historische Materialismus, Leipzig, vol. I, p. 300 (“Nationalõkonomie und Philosophie”).
[H 3a, 2]
“Praticamente, só posso ter um comportamento humano em relação à coisa quando a coisa tem um comportamento humano em relação ao homem.” Karl Marx, Der historische Materialismus, Leipzig, I, p. 300 (“Nationalökonomie und Philosophie”).
[H 3a, 3]
[...]
Trechos de Marx, extraídos de “Nationalökonomie und Philosophie”: “A propriedade privada tornou-nos tão tolos e inertes que um objeto é nosso apenas quando o possuímos.” “O lugar de todos os sentidos físicos e espirituais ... foi tomado pela simples alienação de todos estes sentidos, o sentido do ter.” Cit. por Hugo Fischer, Karl Marx und sein Verhältnis zu Staat und Wirtschaft, Jena, 1932, p. 64.
[H 3a, 7]
[...]
<fase tardia>
[...]
Colecionar é um fenômeno primevo do estudo: o estudante coleciona saber.
[H 4, 3]
[...]
7 “Lugar supraceleste”; cf. Platão, Fedro, 247c. (w.b.; E/M)
8 Jogo de palavras entre Sammeln, “colecionar”, e Versammlung, “reunião”, com a conotação de “reunião das coisas colecionadas", (w.b.)
9 Cf. provavelmente H. Bergson, Matière et Mémoire, in: Œuvres, Paris, P.U.F., Éd. du Centenaire, 1970, p. 359. (J.L.) [sem dúvida, obviamente é Henri Bergson! (PVdC/VP)]
11 0 termo “fisiognomonista” (physiognomoniste) é empregado também por Baudelaire e Proust (À la Recherche du Temps Perdu, I, p. 855). (J.L.)
BENJAMIN, Walter (1892-1940). Passagens / Das Passagen-Werk / Walter Benjamin; edição alemã de Rolf Tiedemann; organização da edição brasileira Willi Bolle; colaboração na organização da edição brasileira Olgária Chain Féres Matos; tradução do alemão Irene Aron; tradução do francês Cleonice Paes Barreto Mourão; revisão técnica Patrícia de Freitas Camargo; pósfácios Willie Bolle e Olgária Chain Féres Matos; introdução à edição alemã (1982) Rolf Tiedemann. — Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.
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