Bertolt Brecht/Poemas 1913-1956/Paulo César de Souza/continua
VISÕES
PARA DA DO VELHO NOVO
Eu estava sobre uma colina e vi o Velho se aproximando,
mas ele vinha como se fosse o Novo.
Ele se arrastava em novas muletas, que ninguém antes havia visto, e exalava novos odores de putrefação, que ninguém antes havia cheirado.
A pedra passou rolando como a mais nova invenção, e os gritos dos gorilas batendo no peito deveriam ser as novas
composições.
Em toda parte viam-se túmulos abertos vazios, enquanto o Novo movia-se em direção à capital.
E em torno estavam aqueles que instilavam horror e gritavam: Aí
vem o Novo, tudo é novo, saúdem o Novo, sejam novos como nós! E quem escutava, ouvia apenas os seus gritos, mas quem olhava, via tais que não gritavam.
Assim marchou o Velho, travestido de Novo, mas em cortejo triunfal levava consigo o Novo e o exibia como Velho.
O novo ia preso em ferros e coberto de trapos; estes permitiam ver o vigor de seus membros.
E o cortejo movia-se na noite, mas o que viram como a luz da aurora era a luz de fogos no céu. E o grito: Aí vem o Novo, tudo é novo, saúdem o Novo, sejam novos como nós! Seria ainda audível, não tivesse o trovão das armas sobrepujado tudo.
[...]
MAU TEMPO PARA A POESIA
Sim, eu sei: só o homem feliz
É querido. Sua voz
É ouvida com prazer. Seu rosto é belo.
A árvore aleijada no quintal
indica o solo pobre, mas
Os passantes a maltratam por ser um aleijão
E estão certos.
Os barcos verdes e as velas alegres da baía
Eu não enxergo. De tudo
Vejo apenas a rede partida dos pescadores.
Por que falo apenas
Da camponesa de quarenta anos que anda curvada?
Os seios das meninas
São quentes como sempre.
Em minha canção uma rima
Me pareceria quase uma insolência.
Em mim lutam
O entusiasmo pela macieira que floresce
E o horror pelos discursos do pintor.
Mas apenas o segundo
Me conduz à escrivaninha.
MAU TEMPO PARA A JUVENTUDE
Em vez de brincar no bosque com os companheiros
Meu filho se debruça sobre os livros
E lê de preferência
Sobre as negociatas dos financistas
E as carnificinas dos generais.
Quando lê que nossas leis
Proíbem aos pobres e aos ricos
Dormir sob as pontes
Ouço sua risada divertida.
Quando descobre que o autor do livro foi subornado
Ilumina-se seu rosto jovem. Eu aprovo isso
Mas gostaria de poder lhe oferecer
Uma juventude em que ele
Fosse brincar no bosque com os companheiros.
FINLÂNDIA 1940
1
Agora somos refugiados
Na Finlândia.
Minha filha pequena
No fim da tarde volta para casa aborrecida, pois
Com ela nenhuma criança quer brincar. Ela é alemã.
Pertence a um povo de saqueadores.
Quanto troco palavras fortes numa discussão
Dizem-me para ficar quieto. Aqui não apreciam
Palavras fortes de alguém
Que vem de um povo de saqueadores.
Quando lembro a minha filha
Que os alemães são um povo de saqueadores
Ela se alegra comigo por eles não serem amados
E nós rimos juntos.
2
A mim, que descendo de camponeses
Causa contrariedade ver
Como o pão é jogado fora.
Compreende-se
Como odeio a guerra deles!
3
Bebendo uma garrafa de vinho
Nossa amiga filandesa nos descrevia
Os estragos de guerra em seu jardim de cerejeiras.
O vinho que bebemos vem dele, disse ela.
Esvaziamos nossos copos
Em memória ao jardim devastado
E à razão.
4
Este é o ano do qual se falará
Este é o ano do qual se falará.
Os velhos vêem os jovens morrerem.
Os tolos vêem os sábios morrerem.
A terra já não sustenta, devora.
O céu não lança chuva, somente ferro.
POEMAS SOBRE O TEATRO
SOBRE O TEATRO COTIDIANO
Vocês, artistas que fazem teatro
Em grandes casas, sob sóis artificiais
Diante da multidão calada, procurem alguma vez
Aquele teatro encenado na rua.
Cotidiano, vário e anônimo, mas
Tão vívido, terreno, nutrido da convivência
Dos homens, o teatro que se passa na rua.
Aqui a vizinha imita o proprietário, deixa claro
Demonstrando sua verbosidade
Como ele busca desviar a conversa
Do cano d’água que arrebentou. À noite, nos parques
Rapazes mostram à garotas risonhas
Como elas resistem, e resistindo
Mostram habilmente os seios. E aquele bêbedo
Mostra o pastor em sua prédiga, remetendo
Os despossuídos
Aos ricos pastos do paraíso. Como é útil
Esse teatro, como é sério e divertido
E digno! Não como papagaios e macacos
imitam eles, apenas pela imitação em si, indiferentes
Ao que imitam, apenas para mostrar
Que sabem imitar bem; não, eles têm
Objetivos à frente. Que vocês, grandes artistas
Imitadores magistrais, não fiquem nisso
Abaixo deles. Não se distanciem
Por mais que aperfeiçoem sua arte
Daquele teatro cotidiano
Cujo cenário é a rua.
Vejam aquele homem na esquina! Ele mostra
Como ocorreu o acidente. Neste momento
Entrega ele o motorista ao julgamento da multidão. Como
Ele estava ao volante, e agora
Imita o atropelado, aparentemente
Um homem velho. De ambos transmite
Apenas o tanto para tornar o acidente inteligível, porém
O bastante para que apareçam claramente. Mas ele
Não mostra ambos como incapazes
De evitar um acidente. O acidente
Torna-se assim inteligível e também ininteligível,
pois ambos
Podiam fazer outros movimentos; agora ele mostra como
Eles poderiam ter-se movimentado, para que o acidente
Não acontecesse. Não há superstição
Nessa testemunha, ele não vê
Os mortais como vítimas dos astros, somente
Dos próprios erros.
Notem também
Sua seriedade e o cuidado da sua imitação. Ele sabe
Que da sua exatidão muito depende: se o inocente
Escapa à ruína, se o prejudicado
É compensado. Vejam-no
A repetir o que já fez. Hesitante
Pedindo ajuda à memória, incerto
De que a imitação seja boa, interrompendo
Solicitando a um outro que
Corrija isso ou aquilo. Isto
Observem com reverência!
E com assombro
Queiram observar algo: que este imitador
Nunca se perde em sua imitação. Ele nunca se transforma
Inteiramente no homem que imita. Sempre
Permanece o que mostra, o não envolvido ele mesmo. Aquele
Não o instrui, ele
Não partilha seus sentimentos
Nem suas concepções. Dele sabe
Bem pouco. Em sua imitação
Não surge um terceiro, dele e do outro
De ambos formado, no qual
Um coração batesse e
Um cérebro pensasse. Ali inteiro
Está o que mostra, mostrando
O estranho nosso próximo.
A misteriosa transformação
Que supostamente se dá em seus teatros
Entre camarim e palco: um ator
Deixa o camarim, um rei
Pisa no palco, aquela mágica
Da qual com freqüência vi a gente dos palcos rir
Copos de cerveja na mão, não ocorre aqui.
Nosso demonstrador da esquina
Não é um sonâmbulo, a quem não se pode tocar. Não é
Um Alto Sacerdote no ofício divino. A qualquer instante
Podem interrompê-lo; ele lhes responderá
Com toda a calma e prosseguirá
Quando lhes tiverem falado
Sua apresentação.
Mas não digam vocês: o homem
Não é um artista. Erguendo uma tal divisória
Entre vocês e o mundo, apenas se lançam
Fora do mundo. Negasse ser ele
Um artista, poderia ele negar
Que fossem homens, e isto
Seria uma censura maior. Digam antes:
Ele é um artista, porque é um homem. Podemos
Fazer mais perfeitamente o que ele faz, e ser
Por isso festejados, mas o que fazemos
É algo universal, humano, a cada hora praticado
No burburinho das ruas, para o homem tão bom
Quanto respirar e comer.
Assim o seu teatro
Leva de volta às questões práticas. Nossas máscaras, digam
Nada são de especial, enquanto forem somente máscaras:
Ali o vendedor de xales
Põe o chapéu redondo de sedutor
Segura uma bengala, até um bigode
Cola sob o nariz, e atrás do seu balcão
Dá uns passos alegre
Indicando a vantajosa mudança que
Através de xales, bigodes e chapéus
Logram os homens. E nossos versos, digam,
Vocês também possuem: os vendedores de jornais
Gritam as manchetes em cadências, e assim
Intensificam o efeito e tornam mais fácil
A repetição constante! Nós
Falamos textos alheios, mas os namorados
Os vendedores também aprendem textos alheios, e com
que freqüência
Todos vocês citam ditados! Assim
Máscara, verso e citação tornam-se comuns, mais incomuns
A máscara vista com grandeza, o verso falado bonito
E a citação apropriada.
Mas para que nos entendamos: mesmo se aperfeiçoassem
O que faz o homem da esquina, vocês fariam menos
Do que ele, se o seu teatro fizessem
Menos rico de sentido, de menor ressonância
Na vida do espectador, porque pobre de motivos e
Menos útil.
SOBRE A IMITAÇÃO
O que apenas imita, que nada tem a dizer
Sobre aquilo que imita, semelha
Um pobre chimpanzé que imita seu treinador fumando
E nisso não fuma. Pois nunca
A imitação irrefletida
Será uma verdadeira imitação.
[...]
A ATUAÇÃO DE H.W.
Se bem que ela mostrasse
Tudo necessário para se compreender
Uma mulher de pescador, não se transformou inteiramente
Nesta mulher de pescador, mas sim
Como se a ocupasse também a reflexão
Como se perguntasse continuamente: como foi mesmo?
Ainda que nem sempre se pudesse
Descobrir os seus pensamentos
Sobre a mulher do pescador, ela mostrava
Que os tinha, e convidava
A pensá-los.
[...]
CANÇÃO DO ESCRITOR DE PEÇAS
Eu sou o escritor de peças. Eu mostro
Aquilo que vi. Nos mercados dos homens
Eu vi como o homem é tratado, Isto
Eu mostro, eu, o escritor de peças
Como entram uns nas casas dos outros, com planos
Ou com cassetetes ou com dinheiro
Como ficam nas ruas e esperam
Como preparam armadilhas uns para os outros
Cheios de esperança
Como marcam encontros
Como enforcam uns aos outros
Como se amam
Como defendem seus desejos
Como comem
Isto eu mostro.
As palavras que gritam uns aos outros, eu as registro.
O que a mãe diz ao filho
O que o empresário ordena ao empregado
O que a mulher responde ao marido
Todas as palavras corteses, as dominadoras
As suplicantes, as equívocas
As mentirosas, as inscientes
As belas, as ferinas
Todas eu registro.
Vejo tempestades de neve que se anunciam
Vejo terremotos que se aproximam
Vejo montanhas no meio do caminho
E vejo rios transbordando.
Mas as tempestades têm dinheiro na carteira
As montanhas desceram de automóveis
E os rios revoltos controlam policiais.
Isto eu revelo.
Para poder mostrar o que vejo
Leio as representações de outros povos e outras épocas.
Algumas peças adaptei, examinando
Com precisão e respectiva técnica, absorvendo
O que me convinha.
Estudei as representações das grandes figuras feudais
Pelos ingleses, ricos indivíduos
Aos quais o mundo servia para desenvolver a grandeza.
Estudei os espanhóis moralizadores
Os indianos, mestres das sensações belas
E os chineses, que retratam as famílias
E os destinos multicores encontrados nas cidades.
E tão rapidamente mudou em meu tempo
A aparência das casas e das cidades, que partir por dois anos
E retornar foi como uma viagem a outra cidade
E as pessoas em grande número mudaram a aparência
Em poucos anos. Eu vi
Trabalhadores adentrarem os portões da fábrica, e os portões eram altos
Mas ao saírem tinham de se curvar.
Então disse a mim mesmo:
Tudo se transforma e é próprio apenas de seu tempo.
Portanto dei a cada cenário seu emblema
E em cada fábrica e cada edifício gravei em fogo o seu ano
Como os pastores gravam números no gado, para que seja
reconhecido.
E também às frases que lá eram faladas
Dei-lhes seu emblema, para que se tornassem como as
sentenças
Dos homens efêmeros, que são registradas
Para não serem esquecidas.
O que a mulher em avental de trabalho disse
Nesses anos, debruçada sobre os panfletos
E como os homens de bolsa falaram com seus empregados
Ontem, chapéus como o sinal de impermanência
De seu ano.
Tudo entreguei ao assombro
Mesmo o mais familiar.
Que uma mãe deu o peito ao filho
Isto relatei como algo em que ninguém acreditará.
Que o porteiro bateu a porta ao homem morrendo de frio
Como algo que ninguém jamais viu.
MEU ESPECTADOR
Recentemente encontrei meu espectador.
Na rua poeirenta
Ele segurava nas mãos uma máquina britadeira.
Por um segundo
Levantou o olhar. Então abri rapidamente meu teatro
Entre as casas. Ele
Olhou expectante.
Na cantina
Encontrei-o de novo. De pé no balcão.
Coberto de suor, bebia. Na mão
Uma fatia de pão. Abri rapidamente meu teatro. Ele
Olhou maravilhado.
Hoje
Tive novamente a sorte. Diante da estação
Eu o vi, empurrando por coronhas de fuzis
Sob o som de tambores, para guerra.
No meio da multidão
Abri meu teatro. Sobre os ombros
Ele olhou:
Acenou com a cabeça.
[...]
PROCURA DO VELHO E DO NOVO
Quando lerem seus papéis
Pesquisando, dispostos ao assombro
Procurem o Velho e o Novo, pois nosso tempo
E o tempo de nossos filhos
É o tempo das lutas do Novo com o Velho
A astúcia da Velha trabalhadora
Que toma ao professor seu saber
Como um fardo pesado demais, é nova
E deve ser mostrada como Novo. E velho
É o medo dos trabalhadores, durante a guerra
Ser mostrado como Velho. Mas
Como diz o povo: na mudança de lua
A lua nova segura a lua velha
Uma noite inteira nos braços. A hesitação dos receosos
Anuncia o novo tempo. Sempre
Determinem o Já e o Ainda!
As lutas das classes
As lutas entre o Velho e o Novo
Ocorrem também dentro de cada um
A disposição de ensinar do professor:
O irmão não vê, um estranho vê.
Examinem todas as ações e emoções de seus personagens
Na busca de Velho e Novo!
As esperanças da mercadora Coragem
São fatais para seus filhos; mas o desespero
Da muda com a guerra
Pertence ao Novo. Seus movimentos desamparados
Ao arrastar o tambor salvador para o telhado
A grande ajuda, devem enchê-los
De orgulho: a energia
Da mercadora que não aprende, de compaixão
Lendo seus papéis
Pesquisando, dispostos ao assombro
Alegrem-se com o Novo, envergonhem-se do Velho!
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