• tacet: Bertolt Brecht/Poemas 1913-1956/Paulo César de Souza/continua

    2.7.25

    Bertolt Brecht/Poemas 1913-1956/Paulo César de Souza/continua

    BRECHT, Bertolt. 1898-1956. Poemas 1913-1956 / Bertolt Brecht (Eugen Bertholt Friedrich Brecht); seleção, tradução e comentário de Paulo César de Souza; texto de 2a e 3a capa Willi Bolle.  São Paulo: Editora 34, 2012.
    1938-1941

    VISÕES
    PARA DA DO VELHO NOVO

    Eu estava sobre uma colina e vi o Velho se aproximando, mas ele vinha como se fosse o Novo.
    Ele se arrastava em novas muletas, que ninguém antes havia visto, e exalava novos odores de putrefação, que nin
    guém antes havia cheirado.
    A pedra passou rolando como a mais nova invenção, e os gritos dos gorilas batendo no peito deveriam ser as novas composições.
    Em toda parte viam-se túmulos abertos vazios, enquanto o Novo movia-se em direção à capital.
    E em torno estavam aqueles que instilavam horror e gritavam: Aí vem o Novo, tudo é novo, saúdem o Novo, sejam novos como nós! E quem escutava, ouvia apenas os seus gritos, mas quem olhava, via tais que não gritavam.
    Assim marchou o Velho, travestido de Novo, mas em cortejo triunfal levava consigo o Novo e o exibia como Velho.
    O novo ia preso em ferros e coberto de trapos; estes permitiam ver o vigor de seus membros.
    E o cortejo movia-se na noite, mas o que viram como a luz da aurora era a luz de fogos no céu. E o grito: Aí vem o Novo, tudo é novo, saúdem o Novo, sejam novos como nós! Seria ainda audível, não tivesse o trovão das armas sobrepujado tudo.

    [...]

    MAU TEMPO PARA A POESIA

    Sim, eu sei: só o homem feliz
    É querido. Sua voz
    É ouvida com prazer. Seu rosto é belo.

    A árvore aleijada no quintal
    indica o solo pobre, mas
    Os passantes a maltratam por ser um aleijão

    E estão certos.

    Os barcos verdes e as velas alegres da baía
    Eu não enxergo. De tudo
    Vejo apenas a rede partida dos pescadores.

    Por que falo apenas
    Da camponesa de quarenta anos que anda curvada?
    Os seios das meninas
    São quentes como sempre.

    Em minha canção uma rima
    Me pareceria quase uma insolência.

    Em mim lutam
    O entusiasmo pela macieira que floresce

    E o horror pelos discursos do pintor.
    Mas apenas o segundo
    Me conduz à escrivaninha.

    MAU TEMPO PARA A JUVENTUDE

    Em vez de brincar no bosque com os companheiros
    Meu filho se debruça sobre os livros
    E lê de preferência

    Sobre as negociatas dos financistas
    E as carnificinas dos generais.
    Quando lê que nossas leis
    Proíbem aos pobres e aos ricos
    Dormir sob as pontes
    Ouço sua risada divertida.
    Quando descobre que o autor do livro foi subornado

    Ilumina-se seu rosto jovem. Eu aprovo isso
    Mas gostaria de poder lhe oferecer
    Uma juventude em que ele
    Fosse brincar no bosque com os companheiros. 

    FINLÂNDIA 1940

    1

    Agora somos refugiados
    Na Finlândia.

    Minha filha pequena
    No fim da tarde volta para casa aborrecida, pois

    Com ela nenhuma criança quer brincar. Ela é alemã.
    Pertence a um povo de saqueadores.

    Quanto troco palavras fortes numa discussão
    Dizem-me para ficar quieto. Aqui não apreciam
    Palavras fortes de alguém
    Que vem de um povo de saqueadores.

    Quando lembro a minha filha
    Que os alemães são um povo de saqueadores

    Ela se alegra comigo por eles não serem amados
    E nós rimos juntos.

    2

    A mim, que descendo de camponeses
    Causa contrariedade ver
    Como o pão é jogado fora.

    Compreende-se
    Como odeio a guerra deles!

    3

    Bebendo uma garrafa de vinho
    Nossa amiga filandesa nos descrevia
    Os estragos de guerra em seu jardim de cerejeiras.

    O vinho que bebemos vem dele, disse ela.
    Esvaziamos nossos copos
    Em memória ao jardim devastado

    E à razão.

    4

    Este é o ano do qual se falará
    Este é o ano do qual se falará.

    Os velhos vêem os jovens morrerem.
    Os tolos vêem os sábios morrerem.

    A terra já não sustenta, devora.
    O céu não lança chuva, somente ferro. 

    POEMAS SOBRE O TEATRO

    [...]

    SOBRE O TEATRO COTIDIANO

    Vocês, artistas que fazem teatro
    Em grandes casas, sob sóis artificiais
    Diante da multidão calada, procurem alguma vez
    Aquele teatro encenado na rua.
    Cotidiano, vário e anônimo, mas
    Tão vívido, terreno, nutrido da convivência
    Dos homens, o teatro que se passa na rua.
    Aqui a vizinha imita o proprietário, deixa claro

    Demonstrando sua verbosidade
    Como ele busca desviar a conversa
    Do cano d’água que arrebentou. À noite, nos parques

    Rapazes mostram à garotas risonhas
    Como elas resistem, e resistindo
    Mostram habilmente os seios. E aquele bêbedo
    Mostra o pastor em sua prédiga, remetendo
    Os despossuídos
    Aos ricos pastos do paraíso. Como é útil
    Esse teatro, como é sério e divertido
    E digno! Não como papagaios e macacos
    imitam eles, apenas pela imitação em si, indiferentes
    Ao que imitam, apenas para mostrar
    Que sabem imitar bem; não, eles têm
    Objetivos à frente. Que vocês, grandes artistas

    Imitadores magistrais, não fiquem nisso
    Abaixo deles. Não se distanciem
    Por mais que aperfeiçoem sua arte
    Daquele teatro cotidiano
    Cujo cenário é a rua.
    Vejam aquele homem na esquina! Ele mostra
    Como ocorreu o acidente. Neste momento
    Entrega ele o motorista ao julgamento da multidão. Como

    Ele estava ao volante, e agora
    Imita o atropelado, aparentemente
    Um homem velho. De ambos transmite
    Apenas o tanto para tornar o acidente inteligível, porém

    O bastante para que apareçam claramente. Mas ele
    Não mostra ambos como incapazes
    De evitar um acidente. O acidente
    Torna-se assim inteligível e também ininteligível,
    pois ambos
    Podiam fazer outros movimentos; agora ele mostra como

    Eles poderiam ter-se movimentado, para que o acidente
    Não acontecesse. Não há superstição
    Nessa testemunha, ele não vê
    Os mortais como vítimas dos astros, somente
    Dos próprios erros.

    Notem também
    Sua seriedade e o cuidado da sua imitação. Ele sabe
    Que da sua exatidão muito depende: se o inocente
    Escapa à ruína, se o prejudicado
    É compensado. Vejam-no
    A repetir o que já fez. Hesitante
    Pedindo ajuda à memória, incerto
    De que a imitação seja boa, interrompendo
    Solicitando a um outro que
    Corrija isso ou aquilo. Isto
    Observem com reverência!
    E com assombro
    Queiram observar algo: que este imitador
    Nunca se perde em sua imitação. Ele nunca se transforma

    Inteiramente no homem que imita. Sempre
    Permanece o que mostra, o não envolvido ele mesmo. Aquele

    Não o instrui, ele
    Não partilha seus sentimentos
    Nem suas concepções. Dele sabe
    Bem pouco. Em sua imitação
    Não surge um terceiro, dele e do outro
    De ambos formado, no qual
    Um coração batesse e
    Um cérebro pensasse. Ali inteiro

    Está o que mostra, mostrando
    O estranho nosso próximo.

    A misteriosa transformação
    Que supostamente se dá em seus teatros
    Entre camarim e palco: um ator
    Deixa o camarim, um rei
    Pisa no palco, aquela mágica
    Da qual com freqüência vi a gente dos palcos rir
    Copos de cerveja na mão, não ocorre aqui.
    Nosso demonstrador da esquina
    Não é um sonâmbulo, a quem não se pode tocar. Não é

    Um Alto Sacerdote no ofício divino. A qualquer instante
    Podem interrompê-lo; ele lhes responderá
    Com toda a calma e prosseguirá
    Quando lhes tiverem falado
    Sua apresentação.

    Mas não digam vocês: o homem
    Não é um artista. Erguendo uma tal divisória

    Entre vocês e o mundo, apenas se lançam
    Fora do mundo. Negasse ser ele
    Um artista, poderia ele negar
    Que fossem homens, e isto
    Seria uma censura maior. Digam antes:
    Ele é um artista, porque é um homem. Podemos

    Fazer mais perfeitamente o que ele faz, e ser
    Por isso festejados, mas o que fazemos
    É algo universal, humano, a cada hora praticado

    No burburinho das ruas, para o homem tão bom
    Quanto respirar e comer.

    Assim o seu teatro
    Leva de volta às questões práticas. Nossas máscaras, digam
    Nada são de especial, enquanto forem somente máscaras:
    Ali o vendedor de xales
    Põe o chapéu redondo de sedutor
    Segura uma bengala, até um bigode

    Cola sob o nariz, e atrás do seu balcão
    Dá uns passos alegre
    Indicando a vantajosa mudança que
    Através de xales, bigodes e chapéus
    Logram os homens. E nossos versos, digam,

    Vocês também possuem: os vendedores de jornais
    Gritam as manchetes em cadências, e assim
    Intensificam o efeito e tornam mais fácil
    A repetição constante! Nós
    Falamos textos alheios, mas os namorados
    Os vendedores também aprendem textos alheios, e com
    que freqüência
    Todos vocês citam ditados! Assim

    Máscara, verso e citação tornam-se comuns, mais incomuns
    A máscara vista com grandeza, o verso falado bonito
    E a citação apropriada.

    Mas para que nos entendamos: mesmo se aperfeiçoassem
    O que faz o homem da esquina, vocês fariam menos
    Do que ele, se o seu teatro fizessem
    Menos rico de sentido, de menor ressonância

    Na vida do espectador, porque pobre de motivos e
    Menos útil. 

    SOBRE A IMITAÇÃO

    O que apenas imita, que nada tem a dizer
    Sobre aquilo que imita, semelha
    Um pobre chimpanzé que imita seu treinador fumando

    E nisso não fuma. Pois nunca
    A imitação irrefletida
    Será uma verdadeira imitação. 

    [...]

    A ATUAÇÃO DE H.W.

    Se bem que ela mostrasse
    Tudo necessário para se compreender
    Uma mulher de pescador, não se transformou inteiramente
    Nesta mulher de pescador, mas sim

    Como se a ocupasse também a reflexão
    Como se perguntasse continuamente: como foi mesmo?

    Ainda que nem sempre se pudesse
    Descobrir os seus pensamentos
    Sobre a mulher do pescador, ela mostrava
    Que os tinha, e convidava
    A pensá-los. 

    [...]

    CANÇÃO DO ESCRITOR DE PEÇAS

    Eu sou o escritor de peças. Eu mostro
    Aquilo que vi. Nos mercados dos homens
    Eu vi como o homem é tratado, Isto
    Eu mostro, eu, o escritor de peças

    Como entram uns nas casas dos outros, com planos
    Ou com cassetetes ou com dinheiro
    Como ficam nas ruas e esperam
    Como preparam armadilhas uns para os outros

    Cheios de esperança
    Como marcam encontros
    Como enforcam uns aos outros
    Como se amam
    Como defendem seus desejos

    Como comem
    Isto eu mostro.

    As palavras que gritam uns aos outros, eu as registro.
    O que a mãe diz ao filho
    O que o empresário ordena ao empregado
    O que a mulher responde ao marido

    Todas as palavras corteses, as dominadoras
    As suplicantes, as equívocas
    As mentirosas, as inscientes
    As belas, as ferinas

    Todas eu registro.

    Vejo tempestades de neve que se anunciam
    Vejo terremotos que se aproximam
    Vejo montanhas no meio do caminho
    E vejo rios transbordando.

    Mas as tempestades têm dinheiro na carteira
    As montanhas desceram de automóveis
    E os rios revoltos controlam policiais.
    Isto eu revelo.

    Para poder mostrar o que vejo
    Leio as representações de outros povos e outras épocas.

    Algumas peças adaptei, examinando
    Com precisão e respectiva técnica, absorvendo
    O que me convinha.
    Estudei as representações das grandes figuras feudais

    Pelos ingleses, ricos indivíduos
    Aos quais o mundo servia para desenvolver a grandeza.

    Estudei os espanhóis moralizadores
    Os indianos, mestres das sensações belas
    E os chineses, que retratam as famílias
    E os destinos multicores encontrados nas cidades.

    E tão rapidamente mudou em meu tempo
    A aparência das casas e das cidades, que partir por dois anos
    E retornar foi como uma viagem a outra cidade
    E as pessoas em grande número mudaram a aparência

    Em poucos anos. Eu vi
    Trabalhadores adentrarem os portões da fábrica, e os portões eram altos
    Mas ao saírem tinham de se curvar.

    Então disse a mim mesmo:
    Tudo se transforma e é próprio apenas de seu tempo.

    Portanto dei a cada cenário seu emblema
    E em cada fábrica e cada edifício gravei em fogo o seu ano
    Como os pastores gravam números no gado, para que seja reconhecido.
    E também às frases que lá eram faladas
    Dei-lhes seu emblema, para que se tornassem como as
    sentenças
    Dos homens efêmeros, que são registradas

    Para não serem esquecidas.

    O que a mulher em avental de trabalho disse
    Nesses anos, debruçada sobre os panfletos
    E como os homens de bolsa falaram com seus empregados

    Ontem, chapéus como o sinal de impermanência
    De seu ano.

    Tudo entreguei ao assombro
    Mesmo o mais familiar.
    Que uma mãe deu o peito ao filho
    Isto relatei como algo em que ninguém acreditará.
    Que o porteiro bateu a porta ao homem morrendo de frio

    Como algo que ninguém jamais viu. 

    MEU ESPECTADOR

    Recentemente encontrei meu espectador.
    Na rua poeirenta
    Ele segurava nas mãos uma máquina britadeira.
    Por um segundo
    Levantou o olhar. Então abri rapidamente meu teatro Entre as casas. Ele
    Olhou expectante.
    Na cantina
    Encontrei-o de novo. De pé no balcão.
    Coberto de suor, bebia. Na mão
    Uma fatia de pão. Abri rapidamente meu teatro. Ele

    Olhou maravilhado.
    Hoje
    Tive novamente a sorte. Diante da estação
    Eu o vi, empurrando por coronhas de fuzis
    Sob o som de tambores, para guerra.
    No meio da multidão
    Abri meu teatro. Sobre os ombros
    Ele olhou:
    Acenou com a cabeça. 

    [...]

    PROCURA DO VELHO E DO NOVO

    Quando lerem seus papéis
    Pesquisando, dispostos ao assombro
    Procurem o Velho e o Novo, pois nosso tempo
    E o tempo de nossos filhos
    É o tempo das lutas do Novo com o Velho
    A astúcia da Velha trabalhadora
    Que toma ao professor seu saber
    Como um fardo pesado demais, é nova
    E deve ser mostrada como Novo. E velho
    É o medo dos trabalhadores, durante a guerra
    Ser mostrado como Velho. Mas
    Como diz o povo: na mudança de lua
    A lua nova segura a lua velha
    Uma noite inteira nos braços. A hesitação dos receosos

    Anuncia o novo tempo. Sempre
    Determinem o Já e o Ainda!
    As lutas das classes
    As lutas entre o Velho e o Novo
    Ocorrem também dentro de cada um
    A disposição de ensinar do professor:
    O irmão não vê, um estranho vê.

    Examinem todas as ações e emoções de seus personagens
    Na busca de Velho e Novo!
    As esperanças da mercadora Coragem
    São fatais para seus filhos; mas o desespero
    Da muda com a guerra
    Pertence ao Novo. Seus movimentos desamparados

    Ao arrastar o tambor salvador para o telhado
    A grande ajuda, devem enchê-los
    De orgulho: a energia
    Da mercadora que não aprende, de compaixão

    Lendo seus papéis
    Pesquisando, dispostos ao assombro
    Alegrem-se com o Novo, envergonhem-se do Velho!

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