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O que pretendo é mostrar como Baudelaire está incrustado no século XIX. A impressão que nele deixou deve surgir tão nítida e intacta como a de uma pedra que, certo dia, é movida de seu lugar depois de aí ter jazido por décadas.
[J 51a, 5]
A importância única de Baudelaire consiste no fato de ele ter sido o primeiro — e da maneira mais imperturbável possível — a apreender o homem estranho a si mesmo no duplo sentido da palavra 36 — ele o identificou e o muniu de uma couraça contra o mundo coisificado.
[J 51a, 6]
Na concepção de Baudelaire, nada se aproxima tanto da tarefa do herói antigo em seu século do que dar uma forma à modernidade.
[J 51a, 7]
No “Salon de 1846” ( Œuvres, vol. II, p. 134 <OC II, p. 494>), Baudelaire descreveu sua classe a partir da roupa. Fica claro nesta descrição que o heroísmo se situa não no sujeito descrito, mas naquele que descreve. O heroísmo da vida moderna representa uma maneira de captar a benevolência do leitor — ou, caso se queira, um eufemismo. A idéia da morte, da qual Baudelaire jamais se livrou, é a forma (Hohlform) destinada a receber um saber que não era o seu. Sua concepção da modernidade heróica talvez fosse principalmente esta: uma enorme provocação. Analogia a Daumier.
[J 52, 1]
A postura mais autêntica de Baudelaire não é afinal a de Hércules em repouso, e sim a do mímico que tirou a maquiagem. Essa mesma postura encontra-se-se nas deficiências estruturais de seu verso, que pareceu a alguns observadores ser o elemento mais valioso de sua arte poética.
[J 52, 2]
[...]
Uma imagem à qual Baudelaire recorre como explicação de sua teoria do poema curto, principalmente do soneto, em carta a Armand Fraisse, de 19 de fevereiro de 1860, serve melhor do que qualquer outra descrição para caracterizar a maneira como o céu aparece em Meryon: “Você já observou que um pedaço do céu visto através de uma clarabóia, ou entre duas chaminés, duas rochas, ou através de uma arcada, dava uma idéia mais profunda do infinito que o grande panorama visto do alto de uma montanha? Ch. B., Lettres, Paris, 1915, pp. 238-239.
[...]
Sobre a fuga de imagens (Bilderflucht) e sobre a teoria da surpresa, que Baudelaire compartilhou com Poe: “As alegorias envelhecem porque faz parte de sua essência provocar a estupefação.”40 A seqüência de publicações alegóricas no Barroco representa uma espécie de fuga de imagens.
[J 54, 2]
[...]
É errôneo querer julgar a força de pensamento de Baudelaire segundo suas digressões filosóficas, como o fez Jules Lemaître. Baudelaire foi um filósofo ruim, foi melhor como teórico da arte, porém, foi incomparável como homem meditativo (Grübler). Do homem meditativo ele tem a estereotipia dos temas, a capacidade imperturbável de afastar tudo que pudesse incomodá-lo, a disposição de colocar a qualquer momento a imagem a serviço da idéia. O meditativo sente-se em casa entre as alegorias.
[J 55a, 1]
[...]
“De L’essence du rire” contém a teoria da gargalhada satânica. Neste ensaio, Baudelaire chega a considerar mesmo o sorriso como satânico por natureza. Alguns contemporâneos chamaram a atenção para o caráter assustador da maneira de rir do próprio Baudelaire.
[J 55a, 8]
36 Trocadilho: o original ding-fest machen significa, ao mesmo tempo, “apreender” e “tornar resistente às coisas”, isto é, ao mundo coisificado (die verdinglichte Welt). (w.b.)
40 GS I, 359; ODBA, p. 205, com interpolações. (R.T.; w.b.)
BENJAMIN, Walter (1892-1940). Passagens / Das Passagen-Werk / Walter Benjamin; edição alemã de Rolf Tiedemann; organização da edição brasileira Willi Bolle; colaboração na organização da edição brasileira Olgária Chain Féres Matos; tradução do alemão Irene Aron; tradução do francês Cleonice Paes Barreto Mourão; revisão técnica Patrícia de Freitas Camargo; pósfácios Willie Bolle e Olgária Chain Féres Matos; introdução à edição alemã (1982) Rolf Tiedemann. — Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.
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