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O traço com que a modernidade se aparenta definitivamente e da maneira mais íntima à Antiguidade é seu caráter fugaz. A ressonância ininterrupta que as Fleurs du Mal encontraram até hoje vincula-se a um aspecto peculiar sob o qual a cidade grande apareceu pela primeira vez na poesia. E o aspecto menos esperado. Quando evoca Paris em seus versos, Baudelaire faz ressoar a decrepitude e a caducidade de uma cidade grande. Talvez seu mais perfeito exemplo esteja no “Crépuscule du matin” que é a reprodução, a partir dos materiais da cidade, do soluçar do homem prestes a despertar. Este aspecto, porém, é mais ou menos comum a todo o ciclo dos “Tableaux Parisiens”. Ele vem à tona, magicamente, na cidade translúcida, em um poema como “Le soleil”, assim como aparece também na evocação alegórica do Louvre em “Le cygne”.
[J 57a, 3]
Sobre a fisionomia de Baudelaire como a do mímico: Courbet relata que o poeta, todos os dias, tinha uma aparência diferente.
[J 57a, 4]
Entre os povos latinos, o refinamento sensorial não diminui a energia da apreensão sensível. Entre os alemães, o refinamento, a crescente cultura do prazer dos sentidos, é pago geralmente com uma perda na arte da apreensão; a aptidão ao prazer perde em consistência aquilo que ganha em sutileza. (Cf. “o cheiro dos tonéis” em “Le vin des chiffonniers” <OC I, p. 106>).
[J 57a, 5]
A extraordinária capacidade de sentir prazer de um Baudelaire é totalmente desprovida de aconchego na intimidade. Esta incompatibilidade fundamental entre o prazer sensível e o aconchego é o traço distintivo da verdadeira cultura dos senddos. O esnobismo de Baudelaire é a renúncia excêntrica ao aconchego, e seu “satanismo” é a resoluta disposição de perturbálo onde e quando ele vier a se instalar.
[J 58, 1]
Em Meryon, as mas parisienses são poças sobre as quais, bem acima, vagueiam as nuvens.
[J 58, 2]
Baudelaire queria criar espaço para seus poemas e por isso teve que deslocar outros. Depreciou certas liberdades poéticas dos românticos por meio do seu manejo clássico da rima e desvalorizou o alexandrino clássico por meio da inserção de irregularidades e pontos de ruptura. Em suma, seus poemas continham disposições específicas para eliminar poemas concorrentes.
[J 58, 3]
[...]
De que adianta falar de progresso para um mundo tomado por uma rigidez cadavérica? Baudelaire encontrou a experiência de tal mundo, configurada com força incomparável, na obra de Poe. O que tornou Poe insubstituível para Baudelaire foi ele ter descrito um mundo no qual a poesia e o comportamento de Baudelaire encontraram sua razão de ser.
[J 58, 6]
[...]
A poética da art pour l’art insere-se sem solução de continuidade na paixão estética das Fleurs du Mal.
[J 59, 6]
A perda da auréola concerne em primeiro lugar ao poeta. Ele é obrigado a expor-se pessoalmente no mercado. Baudelaire empenhou-se nisso com toda energia. Sua célebre mitomania foi um artifício publicitário.
[J 59, 7]
[...]
A propósito da reflexão de Valéry sobre a situação de Baudelaire. É importante que Baudelaire tenha descoberto a relação de concorrência na produção poética. Naturalmente, as rivalidades entre poetas são antiquíssimas. Desde 1830, entretanto, essas rivalidades começaram a ser resolvidas no mercado. Era o mercado que precisava ser conquistado, e não mais a proteção da nobreza, dos príncipes ou do clero. Esta condição pesou mais para a poesia lírica do que para outras formas da poesia. A desorganização de estilos e escolas poéticas é o complemento do mercado que se abre ao poeta como “o público”. Baudelaire não se baseou em nenhum estilo e não se apoiou em nenhuma escola. Foi uma autêntica descoberta dele o fato de estar competindo com indivíduos.
[J 59a, 2]
As Fleurs du Mal podem ser consideradas um arsenal. Baudelaire escreveu certos poemas para destruir outros que tinham sido escritos antes dele.
[J 59a, 3]
Ninguém se sentiu tão pouco em casa, em Paris, como Baudelaire. Toda intimidade com as coisas é estranha à intenção alegórica. Tocar as coisas significa para ela: violentá-las. Reconhecêlas significa traspassá-las com o olhar. Onde ela reina, não é possível que se formem hábitos. Mal a coisa ou a situação é apreendida, logo é rejeitada pela intenção alegórica. Envelhecem mais rápido do que um novo corte para uma modista. Envelhecer, porém, significa tornarse estranho. O spleen coloca séculos entre o momento presente e aquele que acabou de ser vivido. É ele que, incansavelmente, fabrica a “antigüidade”. E, de fato, em Baudelaire, a modernidade nada mais é do que a "mais nova antigüidade”. A modernidade não e, para ele, única ou principalmente o objeto de sua sensibilidade: é, antes, o objeto de uma conquista; ela tem como armadura o modo de visão alegórica.
[J 59a, 4]
A correspondência entre antigüidade e modernidade é a única concepção construtiva da história em Baudelaire. Por sua armadura rígida, excluiu toda concepção dialética.
[J 59a, 5]
[...]
Para a passagem “Onde tudo, mesmo o horror, torna-se encantamento” <OC I, p. 89> dificilmente pode-se encontrar uma exemplificação melhor do que o retrato da multidão em Poe.
[J 60, 2]
[...]
Em meados do século, modificaram-se as condições da produção artística. A modificação consistiu no fato de que, pela primeira vez, a forma da mercadoria impôs-se de maneira radical à obra de arte, e a forma da massa a seu público. A poesia lírica mostrou-se especialmente vulnerável a esta modificação, como ficou patente em nosso século. O caráter único das Fleurs du Mal advém de que Baudelaire respondeu a esta modificação com um livro de poemas. É o melhor exemplo de atitude heróica que se pode encontrar em sua vida.
[J 60, 6]
A atitude heróica de Baudelaire tem afinidade com a de Nietzsche. Mesmo que Baudelaire goste de mencionar o catolicismo, sua experiência histórica é aquela que Nietzsche condensou na frase: “Deus está morto.” Esta experiência, em Nietzsche, projeta-se cosmologicamente na tese: não advirá mais nada de novo. Em Nietzsche, a ênfase recai sobre o eterno retorno que o homem enfrenta com atitude heróica. Já para Baudelaire, trata-se sobretudo do “novo”, que deve ser extraído com esforço heróico do sempre igual.
[J 60, 7]
As experiências históricas que Baudelaire foi um dos primeiros a fazer — não por acaso ele pertence à geração de Marx, cuja obra principal foi publicada no ano de sua morte — expandiramse cada vez mais e de forma mais duradoura. Os traços ostentados pelo capital, em junho de 1848, gravaram-se desde então mais profundamente nos poderosos. E as dificuldades específicas de apropriar-se da poesia de Baudelaire são o reverso da facilidade de entregar-se a esta poesia. Em poucas palavras: nada ainda envelheceu nesta poesia. Isto determina o caráter da maioria dos livros que dela se ocuparam; trata-se de folhetins ampliados.
[J 60a, 1]
[...]
É de supor que a multidão, tal como aparece em Poe, com movimentos precipitados e intermitentes, seja descrita de maneira particularmente realista. Sua descrição contém uma verdade superior. Estes movimentos são menos os de pessoas que se ocupam de seus negócios d0 que os movimentos das máquinas por elas operadas. Poe parece ter modelado, premonitoriamente, a atitude e as reações das multidões ao ritmo das máquinas. De qualquer modo, o flâneur não compartilha este comportamento. Ao contrário, interrompe-o, e sua morosidade não seria senão um protesto inconsciente contra a velocidade do processo de produção. (Cf. D 2a, 1).
[J 60a, 6]
A neblina é o consolo do solitário. Ela preenche o abismo que o cerca.
[J 60a, 7]
A candidatura de Baudelaire à Academia foi uma experiência sociológica.
[J 61, 1]
Uma série de tipos desde o guarda nacional Mayeux, passando por Gavroche, até o Trapeiro, Vireloque e Ratapoil. 45
[J 61, 2]
Nenhum contemporâneo compreendeu o modo de visão alegórica de Baudelaire, razão pela qual passou inteiramente despercebida.
[J 61, 3]
As proclamações surpreendentes e as maquinações, os ataques inesperados e a ironia rei fazem parte da razão de Estado do Segundo Império e foram traços característicos de Napoleão III. Encontram-se, igualmente, nos escritos teóricos de Baudelaire.
[J 61, 4]
45 Mayeux e o Trapeiro (le Chiffonnier) são personagens criados pelo desenhista Charles Joseph Traviès de VilIers (1804-1859) (cf. Baudelaire, "Quelques Caricaturistes Français", OC II, p. 562), Thomas Vireloque é um personagem de Gavarni, e o bonapartista Ratapoil é uma criação de Daumier. 0 menino Gavroche é um personagem de Victor Hugo, Les Misérables (1862). Cf. b 1, 9. (J.L., E/M)
BENJAMIN, Walter (1892-1940). Passagens / Das Passagen-Werk / Walter Benjamin; edição alemã de Rolf Tiedemann; organização da edição brasileira Willi Bolle; colaboração na organização da edição brasileira Olgária Chain Féres Matos; tradução do alemão Irene Aron; tradução do francês Cleonice Paes Barreto Mourão; revisão técnica Patrícia de Freitas Camargo; pósfácios Willie Bolle e Olgária Chain Féres Matos; introdução à edição alemã (1982) Rolf Tiedemann. — Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.
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