20.3.25

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“Paris, a Capital do Século XIX 

[...]

IV. Luís Filipe ou o intérieur 

(...)

(...) Com a revolução de julho [de 1830],22 a burguesia alcança os objetivos de 1789 (Marx).

Para o homem privado, o espaço em que vive se opõe pela primeira vez ao local de trabalho. O primeiro constitui-se com o intérieur. O escritório é seu complemento. O homem privado, que no escritório presta contas à realidade, exige que o intérieur o sustente em suas ilusões. Esta necessidade é tanto mais urgente quanto menos ele cogita estender suas reflexões relativas aos negócios em forma de reflexões sociais. Na configuração de seu mundo privado, reprime ambas. Disso originam-se as fantasmagorias do intérieur. Este representa para o homem privado o universo.(...)

(...) 

Na verdade, de acordo com sua ideologia, ele parece acarretar o aperfeiçoamento do intérieur. A transfiguração da alma solitária parece ser seu objetivo. O individualismo é sua teoria. Em Van de Velde, a casa aparece como expressão da personalidade. O ornamento é, para esta casa, o que a assinatura representa para um quadro. O verdadeiro significado do Jugendstil23 não encontra sua expressão nessa ideologia. (...) Por volta dessa época, o escritório torna-se o verdadeiro centro de gravidade do espaço de vida. O homem desrealizado constrói um refúgio no seu domicílio. (...) 

(...) Sobre ele recai a tarefa de Sísifo de despir as coisas de seu caráter de mercadoria, uma vez que as possui. No entanto, ele lhes confere apenas um valor afetivo, em vez do valor de uso. (...) 

O intérieur não apenas é o universo, mas também o invólucro do homem privado. Habitar significa deixar rastros. No intérieur esses rastros são acentuados. Inventam-se colchas e protetores, caixas e estojos em profusão, nos quais se imprimem os rastros dos objetos de uso mais cotidiano. Também os rastros do morador ficam impressos no intérieur. Surge a história de detetive que investiga esses rastros. A Filosofia do Mobiliário, assim como suas novelas de detetive, apontam Poe como o primeiro fisiognomonista do intérieur. Os criminosos dos primeiros romances policiais não são gentlemen nem apaches, e sim pessoas privadas pertencentes à burguesia. 

V. Baudelaire ou as ruas de Paris 

Tudo para mim torna-se alegoria.

Baudelaire, Le Cygne. 25

O engenho de Baudelaire, que se alimenta da melancolia, é um engenho alegórico. Com Baudelaire, pela primeira vez, Paris se torna objeto da poesia lírica. Não é uma poesia que canta a cidade natal, ao contrário, é o olhar que o alegórico lança sobre a cidade, o olhar do homem que se sente ali como um estranho. Trata-se do olhar do flâneur, cujo modo de vida dissimula ainda com um halo conciliador o futuro modo de vida sombrio dos habitantes da grande cidade. O flâneur encontra-se ainda no limiar tanto da grande cidade quanto da classe burguesa. Nenhuma delas ainda o subjugou. Em nenhuma delas sente-se em casa. Ele busca um asilo na multidão. Em Engels e Poe, encontram-se as primeiras contribuições relativas à fisionomia da multidão. A multidão é o véu através do qual a cidade familiar acena para o flâneur como fantasmagoria. Nela, a cidade é ora paisagem, ora sala acolhedora. Ambas são aproveitadas na configuração das lojas de departamentos, que tornam o próprio flanar proveitoso para a circulação das mercadorias. A loja de departamentos é a última passarela do flâneur. Com o flâneur, a intelectualidade encaminha-se para o mercado. Como ela pensa, é para olhá-lo, mas na verdade já o faz para encontrar um comprador. Nesse estágio intermediário no qual ela ainda tem um mecenas, porém já começa a familiarizar-se com o mercado, ela aparece como bohème. À indefinição de sua posição econômica corresponde a indefinição de sua função política. Esta se expressa de modo mais palpável entre os conspiradores profissionais, que pertencem de maneira geral à bohème. Seu campo de trabalho inicial é o exército, mais tarde, será a pequena-burguesia, ocasionalmente, o proletariado. Aquela camada social, todavia, considera os líderes autênticos do proletariado como seus adversários. O Manifesto Comunista põe fim à sua existência política. A poesia de Baudelaire extrai sua força do páthos rebelde dessa camada social. Ele pende para o lado dos elementos associais. (...) 

(...) 

(...) Ao fundo do desconhecido para encontrar o Novo! O novo é uma qualidade independente do valor de uso da mercadoria. É a origem da aparência que pertence de modo inalienável às imagens produzidas pelo inconsciente coletivo. É a quintessência da falsa consciência cujo agente infatigável é a moda. Essa aparência do novo se reflete, como um espelho no outro, na aparência da repetição do sempre-igual. O produto dessa reflexão é a fantasmagoria da história cultural, em que a burguesia saboreia sua falsa consciência. A arte, que começa a duvidar de sua tarefa e deixa de ser inseparável da utilidade (Baudelaire ),27 precisa fazer do novo o seu valor supremo. O arbiter novarum rerum ls torna-se para a arte o esnobe. Ele é para a arte o que o dândi é para a moda. Assim como no século XVII a alegoria se torna o cânone das imagens dialéticas, assim acontece no século XIX com a nouveauté. Os jornais aliam-se aos magasins de nouveautés. A imprensa organiza o mercado de valores espirituais provocando no primeiro momento uma alta. Os inconformados rebelam-se contra a entrega da arte ao mercado. Agrupam-se sob a bandeira da arte pela arte. Deste lema origina-se a concepção da obra de arte total, que tenta proteger a arte contra o desenvolvimento da técnica. A solenidade com a qual esse culto é celebrado encontra sua correspondência no divertimento que transfigura a mercadoria. Ambos fazem abstração da existência social do ser humano. Baudelaire sucumbe à sedução de Wagner. 

VI. Haussmann ou as barricadas 

A eficiência de Haussmann insere-se no imperialismo napoleônico. Este favorece o capital financeiro. Paris vive o auge da especulação. A atividade especulativa nas bolsas supera as formas do jogo de azar herdadas da sociedade feudal. As fantasmagorias do espaço, às quais se rende o flâneur, correspondem as fantasmagorias do tempo, às quais se entrega o jogador. O jogo transforma o tempo em narcótico. Lafargue explica o jogo como uma reprodução em miniatura dos mistérios da conjuntura.30 As expropriações feitas por Haussmann fazem surgir uma especulação fraudulenta. (...) 

Haussmann tenta reforçar sua ditadura, colocando Paris sob um regime de exceção. Em 1864, em um discurso na Câmara, expressa seu ódio pela população desenraizada da grande cidade. Esta cresce constantemente devido aos próprios empreendimentos de Haussmann. O aumento dos aluguéis impele o proletariado para os subúrbios. Com isso, os bairros de Paris perdem sua fisionomia própria. Surge o cinturão vermelho operário. Haussmann denomina a si mesmo de artista demolidor. Sentia-se predestinado à sua obra, fato que enfatiza em suas memórias. Entretanto, provoca nos parisienses estranhamento em relação à sua cidade. Nela não se sentem mais em casa. Começam a tomar consciência do caráter desumano da grande cidade. (...)

A verdadeira finalidade dos trabalhos de Haussmann era proteger a cidade contra a guerra civil. Queria tornar impossível para sempre a construção de barricadas em Paris. Com a mesma intenção, Luís Filipe já introduzira o calçamento de madeira. Mesmo assim, as barricadas desempenharam seu papel na revolução de fevereiro [de 1848].33 Engels trata dos problemas de tática nas lutas de barricadas.34 Haussmann pretende impedi-las de duas maneiras. A largura das ruas deve impossibilitar que sejam erguidas barricadas, e novas ruas devem estabelecer o caminho mais curto entre os quartéis e os bairros operários. Os contemporâneos batizam o empreendimento de embelezamento estratégico

(...)

A barricada ressurge na Comuna, mais forte e mais protegida do que nunca. Estende-se pelos grandes boulevards, atingindo muitas vezes a altura do primeiro andar e escondendo trincheiras situadas atrás dela. Assim como o Manifesto Comunista encerra a época dos conspiradores profissionais, também a Comuna põe fim à fantasmagoria que domina o primeiro período do proletariado. (...) A burguesia nunca compartilhou desse erro. Sua luta contra os direitos sociais do proletariado inicia-se já na Grande Revolução e coincide com o movimento filantrópico que a encobre e que experimenta sua máxima expansão sob Napoleão III. Durante seu reinado, surge a obra monumental deste movimento: Les Ouvriers Européens, de Le Play.36 Ao lado da posição encoberta da filantropia, a burguesia sempre assumiu a posição aberta da luta de classes. Já em 1831, ela reconhece no Journal des DébatsCada fabricante vive em sua fábrica como os donos de plantações entre seus escravos. Se foi a desgraça dos antigos levantes operários o fato de nenhuma teoria lhes indicar o caminho, por outro lado, foi também a condição da força imediata e do entusiasmo com que assumem a construção de uma sociedade nova. Este entusiasmo, que atinge seu auge na Comuna, conquista temporariamente para o operariado os melhores elementos da burguesia, mas no fim leva-o a sujeitar-se a seus piores elementos. Rimbaud e Courbet posicionam-se a favor da Comuna. O incêndio de Paris é o digno desfecho da obra de destruição de Haussmann. 

(...)

Balzac foi o primeiro a falar das ruínas da burguesia.37 Mas apenas o Surrealismo permitiu vê-las com os olhos livres. O desenvolvimento das torças produtivas fez cair em ruínas os símbolos do desejo do século anterior, antes mesmo que desmoronassem os monumentos que os representavam. (...) A utilização dos elementos do sonho no despertar é o caso exemplar do pensamento dialético. Por isso, o pensamento dialético é o órgão do despertar histórico. Cada época sonha não apenas a próxima, mas ao sonhar, esforça-se em despertar. Traz em si mesma seu próprio fim e o desenvolve — como Hegel já o reconheceu — com astúcia. Com o abalo da economia de mercado, começamos a reconhecer os monumentos da burguesia como ruínas antes mesmo de seu desmoronamento. 

PARIS, CAPITAL DO SÉCULO XIX  

Introdução38

A história, como Janus, tem duas faces: quer olhe o

passado, quer olhe o presente, ela vê as mesmas coisas.

Maxime Du Camp, Paris, VI, p. 315.

O objeto deste livro é uma ilusão expressa por Schopenhauer numa fórmula segundo a qual para apreender a essência da história basta comparar Heródoto e o jornal da manhã.39 É a expressão da sensação de vertigem característica da concepção que no século XIX se fazia da história. Corresponde a um ponto de vista que considera o curso do mundo como uma série ilimitada de fatos congelados em forma de coisas. O resíduo característico dessa concepção é o que se chamou A História da Civilização,40 que faz o inventário das formas de vida e das criações da humanidade ponto a ponto. As riquezas que se encontram assim colecionadas no tesouro da civilização aparecem doravante identificadas para sempre. Essa concepção atribui pouca importância ao fato de que devem não apenas sua existência como ainda sua transmissão a um esforço constante da sociedade, esforço através do qual essas riquezas encontram-se, além do mais, estranhamente alteradas. Nossa pesquisa procura mostrar como, em conseqüência dessa representação coisificada da civilização, as formas de vida nova e as novas criações de base econômica e técnica, que devemos ao século XIX, entram no universo de uma fantasmagoria. Tais criações sofrem essa iluminação não somente de maneira teórica, por uma transposição ideológica, mas também na imediatez da presença sensível. Manifestam-se enquanto fantasmagorias. Assim apresentam-se as passagens, primeiras formas de aplicação da construção em ferro; assim apresentam-se as exposições universais, cujo acoplamento à indústria de entretenimento é significativo; na mesma ordem de fenômenos, a experiência do flâneur, que se abandona às fantasmagorias do mercado. A essas fantasmagorias do mercado, nas quais os homens aparecem somente sob seus aspectos típicos, correspondem as do interior, que se devem à inclinação imperiosa do homem a deixar nos cômodos em que habita a marca de sua existência individual privada. Quanto à fantasmagoria da própria civilização, encontrou seu campeão em Haussmann e sua expressão manifesta nas transformações que ele realizou em Paris. — Esse brilho, entretanto, e esse esplendor com os quais se cerca a sociedade produtora de mercadorias, e o sentimento ilusório de sua segurança não estão ao abrigo de ameaças; é o que lhe vêm lembrar a derrocada do Segundo Império e a Comuna de Paris. Na mesma época, o adversário mais temido dessa sociedade, Blanqui, revelou, no seu último escrito,41 os traços terríveis dessa fantasmagoria. Nesse texto, a humanidade figura como condenada. Tudo o que ela poderá esperar de novo revelar-se-á como uma realidade desde sempre presente; e este novo será tão pouco capaz de lhe proporcionar uma solução liberadora, quanto uma nova moda é capaz de renovar a sociedade. A especulação cósmica de Blanqui comporta o ensinamento segundo o qual a humanidade será tomada por uma angústia mítica enquanto a fantasmagoria aí ocupar um lugar.

A. Fourier ou as passagens

I

(...)

A maioria das passagens de Paris foi construída nos quinze anos após 1822. A primeira condição para seu aparecimento é a conjuntura favorável do comércio têxtil. Os magasins de nouveautes, os primeiros estabelecimentos a manter grandes estoques de mercadorias, começam a aparecer. São os precursores das lojas de departamentos. É a essa epoca que Balzac faz alusão quando escreve: O grande poema das vitrines canta suas estrofes coloridas da Madeleine à Porte Saint-Denis. As passagens são centros de mercadorias de luxo. Para expô-las, a arte põe-se a serviço do comerciante. Os contemporâneos não se cansam de admirá-las. Durante muito tempo permanecerão uma atração para os turistas. Um Guia Ilustrado de Paris diz: Estas passagens, uma recente invenção do luxo industrial, são galerias cobertas de vidro e com paredes revestidas de mármore, que atravessam quarteirões inteiros, cujos proprietários se uniram para esse tipo de especulação. Em ambos os lados dessas galerias, que recebem a luz do alto, alinham-se as lojas mais elegantes, de modo que tal passagem é uma cidade, um mundo em miniatura. Foi nas passagens que se realizaram as primeiras experiências com a iluminação a gás.

A segunda condição exigida para o desenvolvimento das passagens deve-se ao início da construção metálica. Sob o Império, essa técnica era considerada uma contribuição para renovar a arquitetura no sentido do classicismo grego. Boetticher, o teórico da arquitetura, expressa o sentimento geral quando diz que: quanto às formas de arte do novo sistema, o estilo helénico deve entrar em vigor. O estilo Empire é o estilo do terrorismo revolucionário para o qual o Estado é um fim em si. Assim como Napoleão não compreendeu a natureza funcional do Estado como instrumento de poder para a burguesia, tampouco arquitetos de sua época compreenderam a natureza funcional do ferro, com o qual o princípio construtivo se torna preponderante na arquitetura. Esses arquitetos constroem suportes imitando a coluna pompeana, fábricas imitando residências, assim como mais tarde as primeiras estações pareciam chalés. A construção desempenha o papel do subconsciente. (...)  Pela primeira vez, desde os romanos, surge um novo material de construção artificial, o ferro. Ele vai passar por uma evolução cujo ritmo se acelera ao longo do século, e recebe um impulso decisivo no dia em que se constata que a locomotiva - objeto dos mais diversos experimentos desde os anos 1828-1829 — não funciona adequadamente senão sobre trilhos de ferro. O trilho aparece como a primeira peça montada em ferro, precursor da viga. Evita-se o emprego do ferro nos imóveis e seu uso é encorajado nas passagens, nos pavilhões de exposições, nas estações de trem — todas elas construções visando fins transitórios.

II

Nada de surpreendente no fato de que todo interesse

de massa ultrapasse de longe seus verdadeiros limites,

na idéia ou na representação que fazemos, quando

ocupa a cena pela primeira vez.

Marx e Engels, A Sagrada Família.42

O impulso mais profundo da utopia fourierista veio do surgimento das máquinas. O falanstério devia reconduzir os homens a um sistema de relações no qual a moralidade não tinha mais nada a fazer. Nero se tornaria nele um membro mais util à sociedade que Fénelon. Fourier nao pretende, para tanto, pautar-se pela virtude, mas por um funcionamento eficaz da sociedade cujas forças motoras são as paixões. Pelas engrenagens das paixões, pela combinação complexa das paixões mecanistas com a paixão cabalista, Fourier considera a psicologia coletiva como um mecanismo de relojoaria. A harmonia fourierista é o produto necessário desse jogo combinado.

Fourier introduz no mundo de formas austeras do Império o idílio colorido do estilo dos anos 1830. Cria um sistema onde se misturam os produtos de sua visão colorida e de sua idiossincrasia com os algarismos. As harmonias de Fourier não invocam de maneira alguma uma mística dos números extraída de uma tradição qualquer. São decorrência de seus próprios decretos: elucubrações de uma imaginação organizadora que, nele, era extremamente desenvolvida. Assim ele previu a significação dos encontros para os citadinos. O dia dos habitantes do falanstério organiza-se não em suas casas, mas em grandes salas semelhantes aos saguões da Bolsa, onde os encontros são arranjados por corretores.

Nas passagens, Fourier viu o cânone arquitetônico do falanstério. É o que acentua o caráter Empire de sua utopia, que o próprio Fourier reconhece ingenuamente: O Estado societário será desde o início tanto mais brilhante quanto foi por muito tempo preterido. A Grécia, na época de Sólon e Péricles, já poderia tê-lo criado.43 As passagens que se destinaram inicialmente a fins comerciais tornam-se, com Fourier, residências. O falanstério é uma cidade feita de passagens. (...)

Marx se posiciona contra Carl Grün para defender Fourier e valorizar sua concepção colossal do ser humano.45 Considerava Fourier o único homem, ao lado de Fíegel, que trouxera à luz a mediocridade essencial do pequeno-burguês. À superação sistemática desse tipo em Hegel corresponde, em Fourier, seu aniquilamento através do humor. Um dos traços mais notáveis da utopia fourierista é que a idéia da exploração da natureza pelo homem, tão difundida na época posterior, lhe é estranha. A técnica se apresenta a Fourier muito mais como a fagulha que ateia fogo à pólvora da natureza. Talvez esteja aí a chave de sua representação bizarra, segundo a qual o falanstério se propagaria por explosão. A concepção posterior da exploração da natureza pelo homem é o reflexo da exploração real do homem pelos proprietários dos meios de produção. Se a integração da tecmca na vida social fracassou, a culpa se deve a essa exploração. 

B. Grandville ou as exposições universais 

 I

Sim, quando o mundo todo, de Paris à China,

Ó divino Saint-Simon, aceitar a tua doutrina,

A idade de ouro há de renascer com todo seu esplendor,

Os rios rolarão chá e chocolate;

Saltarão na planície os carneiros já assados,

E os linguados grelhados nadarão no Sena;

Os espinafres virão ao mundo já guisados,

Com pães torrados dispostos ao redor;

As árvores produzirão frutas em compota

E se colherão temperos e verduras;

Nevará vinho, choverá galetos,

E do céu cairão patos ao nabo

Langlé et Vanderburch, Louis Bronze et le Saint-Simonien (Théâtre du Palais-Royal, 27 février 1832) 

As exposições universais são os centros de peregrinação ao fetiche mercadoria. A Europa se deslocou para ver mercadorias, afirma Taine, em 1855  As exposições universais tiveram como precursoras exposições nacionais da indústria, a primeira delas aconteceu em 1798, no Campo de Marte. Ela nasceu do desejo de divertir as classes laboriosas e torna-se para estas uma festa de emancipação . Os trabalhadores formarão a primeira clientela. O quadro da indústria de entretenimento ainda não se constituíra. Este quadro, é a festa popular que o fornece. O celebre discurso de Chaptal sobre a indústria abre essa exposição.  Os saint-simonianos, que projetam a industrialização do planeta, se apropriam da idéia das exposições universais. Chevalier, a primeira autoridade nesse novo domínio, é um discípulo de Enfantin e redator do jornal saint-simoniano Le Globe. Os saint-simonianos previram o desenvolvimento da indústria mundial, mas não a luta de classes. Eis por que, apesar de sua participação em todos os empreendimentos industriais e comerciais, por volta da metade do século, deve-se constatar sua impotência nas questões relativas ao proletariado.

As exposições universais idealizam o valor de troca das mercadorias. Criam um quadro no qual seu valor de uso passa a segundo plano. As exposições universais constituíram uma escola onde as multidões, forçosamente afastadas do consumo, se imbuíram do valor de troca das mercadorias a ponto de se identificarem com ele: É proibido tocar nos objetos expostos. Assim, elas dão acesso a uma fantasmagoria onde o homem entra para se deixar distrair. No interior das diversões, as quais o indivíduo se entrega, no quadro da indústria de entretenimento, resta constantemente um elemento que compõe uma massa compacta. Essa massa se deleita nos parques de diversões com as montanhas russas, os cavalos mecânicos, os bichos-da-seda, numa atitude claramente reacionária. Ela se deixa levar assim a uma submissão com a qual deve poder contar tanto a propaganda industrial quanto a política. - A entronização da mercadoria e o esplendor das distrações que a rodeiam, eis o tema secreto da arte de Grandville. Daí a disparidade entre seu elemento utópico e seu elemento cínico. Seus artifícios sutis na representação de objetos inanimados correspondem ao que Marx chama de argúcias teológicas da mercadoria. Sua expressão concreta manifesta-se claramente na spécialité — uma designação de mercadoria que surge nessa época na indústria de luxo. As exposições universais constroem um mundo feito de especialidades. As fantasias de Grandville realizam a mesma coisa. Elas modernizam o universo. O anel de Saturno torna-se para ele um balcão em ferro fundido, onde os habitantes de Saturno tomam ar ao cair da noite. Assim também um balcão em ferro fundido representaria, na exposição universal, o anel de Saturno, e aqueles que ali entram se veriam levados numa fantasmagoria em que se sentiriam transformados em habitantes de Saturno. O correspondente literário dessa utopia gráfica é a obra do sábio fourierista Toussenel. Toussenel era encarregado da seção de ciências naturais num jornal de moda. Sua zoologia dispõe o mundo animal sob o cetro da moda. Considera a mulher como mediadora entre o homem e os animais. Ela é, de algum modo, a decoradora do mundo animal que, em troca, coloca a seus pés suas plumas e suas peles. Não há prazer maior para o leão que o de lhe cortarem as unhas, contanto que uma moça bonita segure a tesoura.46

II

A Moda: Senhora Morte! Senhora Morte!

Leopardi, Diálogo entre a Moda e a Morte.

A moda prescreve o ritual segundo o qual o fetiche, que é a mercadoria, deseja ser adorado. Grandville estende a autoridade da moda sobre os objetos de uso diário tanto quanto sobre o cosmos. Levando-a até os extremos, ele revela sua natureza. Ela acopla o corpo vivo ao mundo inorgânico. Face ao vivo, ela faz valer os direitos do cadáver. O fetichismo que está assim submetido ao sex appeal do inorgânico é seu nervo vital. As fantasias de Grandville correspondem a esse espírito da moda, que Apollinaire mais tarde descreveu com esta imagem: Todas as matérias dos diferentes reinos da natureza podem agora entrar na composição da roupa da mulher. Vi um vestido encantador feito de rolha de cortiça... A porcelana, o grez e a louça irromperam bruscamente na arte da vestimenta... Fazem-se sapatos de vidro de Veneza e chapéus de cristal de Baccarat .47

22 Nota w.b. 

23 Sobre o Jugendstil, ver G°, 7 e o arquivo temático S'\ sobretudo S 8a, 1 (w.b.; J.L.) 

25 Mantivemos o título original, para guardar o duplo sentido de "Cisne" e "Signo", (w.b.)

27 Baudelaire, OC II, p. 27 (Pierre Dupont). (R.T.)

30 Cf. 0 4, 1 . (R.T.)

33 Nota w.b.

34 Cf. o excerto de Friedrich Engels em E la, 5. (R.T.)

36 Frédéric Le Play, Les Ouvriers Européens: Ètudes sur les Travaux, la Vie Domestique et la Condition Morale   des Populations Ouvrières de 1’Europe, Précédées d‘un Exposé de la Méthode d'Observation, Paris,  1855. (R.T.) 

37 Cf. C 2a, 8. (E/M)

38 Da Introdução e da Conclusão deste exposé, escrito em francês, existe uma versão alemã, reproduzida em G5 V, 1255-1258, e que foi consultada na tradução destes dois textos, (w.b.)

39 Como fonte desta fórmula, Benjamin cita Rémy de Gourmont; cf. S la, 2. (R.T.)

40 Kulturqeschichte, na versão alemã deste texto (GS V, 1255). (w.b.)

41 Auguste Blanqui, CÉternité par les Astres: Hypothèse Astronomique, Paris, 1872. (R.T.)

42 Karl Marx e Friedrich Engels, MEW, vol. II, Berlim, 1957, p. 85. (R.T.)

43 Armand et Maublanc, Fourier, Paris, 1937, I, pp. 261-262; cf. W 13, 4. (J.L.; w.b.)

45 Para evitar a redundância de notas às citações que se repetem neste exposé de 1 939, remetemos o leitor para as notas correspondentes do exposé de 1935. (w.b.)

46 Alphonse Toussenel, Le Monde des Oiseaux: Ornithologie Passionnelle, vol. 1 , Paris, 1 853, p. 20; cf . W 8a, 2. (E/M)

47 Guillaume Apollinaire, Le Poète Assassine, Paris, 1927, pp. 75-76. (R.T.)

BENJAMIN, Walter (1892-1940). Passagens / Das Passagen-WerkWalter Benjamin; edição alemã de Rolf Tiedemann; organização da edição brasileira Willi Bolle; colaboração na organização da edição brasileira Olgária Chain Féres Matos; tradução do alemão Irene Aron; tradução do francês Cleonice Paes Barreto Mourão; revisão técnica Patrícia de Freitas Camargo; pósfácios Willie Bolle e Olgária Chain Féres Matos; introdução à edição alemã (1982) Rolf Tiedemann. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.

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