• tacet: Chantal Montellier

    5.6.25

    Chantal Montellier

     
     
    MONTELLIER, Chantal (1947-). Social fiction / Chantal Montellier; tradução Fernando Paz; prefácio Natania Nogueira; edição Ferréz e Thiago Ferreira. São Paulo: Comix Zone!, 2022.
    Rever a sempre interessante Chantal.
    [...] Frio, fome, medo, escuridão! [...]
    — [...] Só que a gente morre vivendo! 

    MÉTAL HURLANT / Collection de 600 pages de récits complets. Mœbius, Druillet, Giger, Forest, Wood, Caro, Chantal Montellier, Breccia, Gimenez, Toth, Gustave Doré et beaucoup, beaucoup d'autres; Chantal Montellier: Métal Hurlant No36bis: W.W.3.; . France: Les Humanoides Associes Presentent, 1978-9.

    MONTELLIER, Chantal (1947-). Odile e os crocodilos / Odile et les crocodiles / Chantal Montellier; prefácio Chantal Montellier; entrevista com Chantal Montellier realizado por Jerry Frissen, editada por Christophe Quillien, publicada em Métal Hurland Hors-série: Ah!Nana, em outubro de 2023/Les Humanoïdes Associés; tradução Fernando Paz; edição Ferréz e Thiago Ferreira; 1984. São Paulo: Comix Zone!, 2024.
    Pedaço de entrevista com Chantal Montellier realizado por Jerry Frissen, editada por Christophe Quillien, publicada em Métal Hurland Hors-série: Ah!Nana, em outubro de 2023:

    Nova Iorque é desconcertante (...), é hiperpotente. (...) Fomos acolhidos por gente que vivia no Village, e eu tinha a impressão de que elas moravam numa prisão! Para entrar na casa, tínhamos que atravessar uma primeira porta com vigilância eletrônica, depois digitar um código, havia barras nas janelas (...)!

    [...]

    Um dia de janeiro de 1980, fui convidada por Bernard Pivot para participar do Apostrophes (...). Antes do dia da gravação do programa, dedicado a questão da chantagem nuclear, eles me enviaram livros dos outros convidados...

    Quem eram?

    Um certo Bertrand Goldschmidt, responsável pela política nuclear de Giscard dEstaing (...). Também foi convidada a dupla (...), autores de best-sellers (...). Bernard Pivot também tinha convidado um alto funcionário público, um jovem subprefeito (católico praticante?) bem conservador-chique, pai de uma meia dúzia de filhos, com menos de quarenta anos. (...)

    É difícil imaginar você no meio desses diferentes convidados...

    Eu me sinto um pouco deslocada, realmente. Quando Bernard Pivot se dirige a mim, ele me pergunta o que eu penso desses diferentes livros. Eu respondo que, em matéria de chantagem nuclear, tenho menos medo da Líbia de Kadhafi do que da América de Carter... A coisa começa mal! Eu faço o público rir, zombando de certos convidados especiais... Em seguida, Bernard Pivot tende a me ignorar (...).

    (...) três dias depois, alguém bate na minha porta, (...) Na época eu morava num apartamento haussmaniano, (...) (mas não muito caro), (...). Normalmente, é a zeladora quem me traz a correspondência. Eu abro a porta e vejo um cavalheiro alto (...), que me estende a correspondência. Espero ele me dizer alguma coisa, mas ele não diz nada. Sorri. Está bem-vestido, cabelos penteados, óculos; ele me mede dos pés à cabeça, dá uma espiada no interior do apartamento, com um sorrisinho de lado, depois dá meia-volta e desaparece. Aquilo me deixou perturbada, eu estava quase tremendo, e imediatamente pensei que devia se tratar de um policial. Um pouco depois, desço à portaria para tirar a dúvida, toco na casa da zeladora e sinto uma mudança na atitude dela. Antes, eu era madame Motellier, e ela me tratava com respeito. Agora, eu era Chantal, e ela me tratava sem deferência. Quando perguntei quem era o senhor que tinha me trazido a correspondência, ela respondeu: Ah, Chantal, você sabe, quando a gente faz uma besteira, tem que pagar por ela! Enfim, eu tinha me tornado uma delinquente aos olhos dela. Depois, começou o festival... As livrarias que tinham me convidado (...) cancelaram os convites, começaram a correr rumores sobre mim, que eu teria sido casada com um africano, que eu teria dois filhos e abandonado, que eu seria uma prostituta... um verdadeiro linchamento! Eu realmente entendi em que sociedade eu estava vivendo. Quarenta anos depois, ainda fico muito surpresa.

    [...]

    (...) Atravessei um período de grandes dificuldades. Dei oficinas para detentos durante muitos anos, ou para outros grupos em dificuldade, principalmente gente de um bairro popular de Nancy. Eu vivia viajando de trem, mas foi um período durante o qual publiquei livros que estão entre os que mais reivindico. Eles correspondem, ao mesmo tempo, a um longo trabalho de escrita, e a um comprometimento social contra a barbárie que nos rodeia, um pouco por toda parte.

    MONTELLIER, Chantal (1947-). Bruxas, minhas irmãs / Sorcières, mes sœurs / Chantal Montellier; prefácio Chantal Montellier; com textos de A Bruxa, de Jules Michelet; tradução Maria Clara Carneiro; 2006. São Paulo: Veneta, 2023.

    Bruxas, minhas irmãs

    Na ldade Média, quando os homens estavam na guerra do Senhor ou nas Cruzadas, todas as mulheres ficavam completamente sós nos campos, isoladas durante meses, meses e meses na floresta, em suas cabanas. É assim, a partir da solidão, de uma solidão inimaginável para nós hoje, que elas começaram a falar com as árvores, as plantas, os animais, os animais selvagens; quer dizer, a entrar, como posso dizer... a reinventar uma relação inteligente com a natureza, a reinventá-la.

    Uma inteligência que, na verdade, tem sua origem na Pré-História. Então foi uma reconexão.

    E essas mulheres foram chamadas de bruxas, e foram queimadas. Dizem que 1 milhão delas. Em toda a ldade Média e no começo do Renascimento. Queimaram as mulheres até o século XVII.

      Essas mulheres que encontramos em filmes e em livros, penso em uma mulher como Nathalie Granger (1972], em Élisabeth Alione em Destruir, Ela Disse [Détruire, dit-elle, 1969], em Vera Baxter em Baxter, Vera Baxter [Les plages de lAtlantique, 1977], será que, de certa maneira, elas não seriam ainda bruxas de Michelet?

    A gente continua nisso, nós, as mulheres... Ainda estamos nisso... Sim, estamos nisso. Não mudou mesmo muito.

    Marguerite Duras*

    Se, do meu ponto de vista, as coisas até que mudaram, acredito, no entanto, que o imaginário e a sexualidade das mulheres continuam a dar medo, sobretudo quando elas gozam de certa liberdade. Medo de não poder controlá-las, dominá-las. Medo do incêndio que elas poderiam provocar.
    A bruxa é desde sempre percebida como uma rebelde incontrolável, acusada de negociar com o Mal e de joga mau-olhado.
    Insolente, ela provoca os poderes e seus representantes: o príncipe, o padre, o médico (cujo saber ele deve muito a ela). Autônoma, ela é perigosa para a ordem estabelecida, pois questiona a autoridade de clérigos e do clericato.
    Jules Michelet**, que consagrou a ela um livro magnífico, corajoso e lúcido, parece, no entanto, crer que a bruxa tinha mesmo um laço com as potências ocultas. Segundo Georges Bataille, ela encarnaria a desordem dos sentidos, a parte maldita.
    Para todos os poderosos e aqueles que os seguem, ela é a cabra expiatória da razão e da modernidade. Em nome da ciência e do progresso, essa figura de alteridade deve ser erradicada sem misericórdia.
    É preciso dizer que ela ofende e disputa o saber oficial ao praticar a medicina das plantas e ao desenvolver uma estranha farmacopeia. Reprovam-Ihe também a sexualidade livre demais, até mesmo desenfreada. Falam da vagina insaciável das bruxas, que têm a reputação de cavalgar os homens e continuar a fazer amor depois da menopausa, prática muito malvista pela lgreja. Em suma, sua sexualidade é subversiva.
    A solução é simples: é preciso queimar essas mulheres! A Inquisição atiça seu fogo contra elas. Por todo canto, padres acendem fogueiras nas quais elas desaparecerão aos milhares. Na Alemanha, na Suíça, na Espanha e, claro, na França, as bruxas perecem nas chamas, da mais humilde feiticeira à mais famosa: Joana dArc, que, isso é esquecido com muita frequência, foi condenada por heresia e bruxaria. Ela transgrediu os costumes esta belecidos, cortou os cabelos, se vestiu como homem, montou a cavalo, segurou a espada. Ela deve então perecer, quaisquer que sejam seus méritos e sua coragem. Aos heróis, as honras; às heroínas, a fogueira.
    Diante dessa sentença atroz e bárbara, a bruxa se encontra só, reunindo, geralmente, todo o consenso contra ela. Protestantes e católicos se aliam contra as infelizes.
    Herdeira dos tempos obscuros, essa terrível repressão perdurou até o Renascimento! Humanistas, de Cornelius Agrippa a Jean Bodin***, farão coro contra a maldita. O que pode suscitar algumas interrogações.
    A bruxa atravessa os tempos, da fogueira à cadeira elétrica, passando pelas chamas revolucionárias em que a mulher Subversiva é, ainda e sempre, identificada com a bruxa. Assim seria Louise Michel, a virgem vermelha****.
    O ano de 1968 vê certa reabilitação dessa figura sulfurosa. A escritora Xavière Gauthier cria até uma revista chamada Sorcières (bruxas ou feiticeiras]. Pena que não durou muito.
    livraria-galeria das mulheres, localizada na rua Saints-Pères [santos pais] em Paris  como é simbólico! , não tardaria a deixar seu lugar para uma loja para gestantes. Outro simbolo.
    A revista feminina Ah! Nana caía, no mesmo movimento, sob os golpes de uma censura exclusivamente masculina. As desenhistas francesas foram condenadas a retornar a Seus lugares, quer dizer, às publicações para crianças (Nicole Claveloux), ou a seus estudos (Trina Robbins e seus livros sobre mulheres desenhistas), ou, a longo prazo, para o uso somente de palavras, como eu mesma fiquei restrita por vários anos a viver de oficinas de texto (e não de artes plásticas). Ou, enfim, à invisibilidade: por onde andam Keleck, Liz Bijl, Marie-Noëlle Pichard...
    A sociedade patriarcal tem reflexos excelentes, pena que servem sobretudo para quebrar os talentos de suas mulheres. Algumas dessa geração conseguiram, com dificuldades, sobreviver por exemplo, Jeanne Puchol, cujo talento cresce em proporção inversa aos benefícios que ela ganha com ele. Outras, mais jovens, se alinharam ao imaginário dominante, ou já estão se apagando, preferindo uma vida legal à batalha incessante. É possível compreendê-las.
    Outras também, como Catel Muller, parecem ter vontade de combater e se esforçam para conciliar a vida profissional exigente com a vida de esposa e mãe. Desejo a Catel boa sorte e lhe digo: Irmã! Olhe com atenção à tua esquerda, irmã! Atenção à tua direita. As fogueiras da Inquisição queimam ainda, mesmo se aqueles que as atiçam guardaram suas máscaras no vestiário e parecem ser dos nossos.
    Chantal Montellier

    * Trechos do documentário Les lieux de Marguerite Duras, realizado por Michell Porte.

    ** O francês Jules Michelet (1798-1874) foi um dos fundadores da historiografia moderna. Sua obra-prima é a monumental Histoire de France (dezenove volumes), mas a publicação dele que a autora cita na abertura dos capítulos deste livro é La Sorcière (A Bruxa, ou A Feiticeira), de 1862.
    *** Heinrich Cornelius Agrippa (1486-1535) foi um teólogo alemão, autor de diversas obras sobre o ocultismo. Jean Bodin (1530-1596) foi jurista, filósofo e também autor de um influente tratado de demonologia.
    **** Louise Michel (1830-1905) foi uma das líderes da Comuna de Paris (1871) e é considerada a grande pioneira do anarcofeminismo.

    Soldados, pajens, valetes amontoados à noite sob duas cúpulas baixas, presos o dia inteiro nas ameias, nos terraços estreitos vivendo um tédio desolador, respiravam e viviam somente pelas escapadas lá embaixo. Não aquelas escapadas para fazer guerras nas terras vizinhas, mas as de caça, de caçada humana. Inúmeras afrontas, ultrajes contra as famílias de servos. Seu senhor sabia bem que tamanha massa de homens sem mulheres só poderia ser pacificada se fosse solta vez ou outra.

    A ideia chocante de um inferno em que Deus emprega almas celeradas, a quem Ele lhes entrega os mais culpados como se fossem brinquedo, um belo dogma da Idade Média, se dava ao pé da letra. O homem sentia a ausência de Deus. A cada incursão se davam provas do reino de Sată, se dava a crer que era a ele a quem se devia dirigir. [...] Havia prazer no ultraje, em espancar e em provocar choro. No século XVII, as senhoras da corte ainda morriam de rir das anedotas contadas pelo Duque de Lorena, sobre como sua tropa, em vilarejos tranquilos, tomava e atormentava todas as mulheres, mesmo as velhas.
    Os ultrajes atingiam principalmente, ao que parece, as famílias relativamente afluentes e distintas dos outros servos; as tais famílias de servos da área administrativa, que surgem já no século XII como chefes do vilarejo. A nobreza os odiava, zombava deles, os arruinava. Não lhes perdoavam sua dignidade moral nascente. Não admitiam que suas mulheres e filhas fossem honestas e sérias. Elas não tinham o direito de serem respeitadas. A honra delas não era delas. Servas de corpo, essa expressão cruel era o tempo todo lançada a elas.
    Jules Michelet
    A Bruxa, Livro Primeiro, Capítulo IV: Tentações

    A lepra é o último nível e o apogeu do flagelo. Mas mil outros males cruéis e menos hediondos assolam todos os cantos. As mais puras e as mais belas foram marcadas por tristes flores, encaradas como evidência do pecado, ou o castigo de Deus. Fez-se, então, o que o amor à vida não conseguira fazer; transgrediu-se as interdições; abandonou-se a velha medicina oficial e a inútil água benta. Recorreu-se à bruxa. Por costume e por temor também, frequentava-se ainda a Igreja; mas a verdadeira Igreja a partir de então era a casa dela, no charco, na floresta, no deserto. Era lá onde os pedidos eram feitos [...] Atitude temerária e condenável que depois se lamentava à noite. É preciso mesmo que ela esteja presente, essa fatalidade nova. Que queime bem esse fogo, que todos os santos percam a força. Mas ora! O processo do Templo e o processo de Bonifácio revelaram a Sodoma escondida sob o altar. Um papa bruxo, amigo do diabo, e carregado pelo diabo, isso muda toda a forma de pensar. Será que foi sem ajuda do demônio que o papa, que não está mais em Roma, mas em sua Avignon, João XXII, filho de um sapateiro de Cahors, conseguiu coletar mais ouro que o imperador e todos os reis? Tal papa, e tal bispo. Guichard, o bispo de Troyes, não teria obtido do diabo a morte das filhas do rei?... Nós não pedimos morte alguma, nós pedimos as coisas mais doces: vida, saúde, beleza, prazer... Coisas de Deus, que Deus nos recusa... O que fazer? E se nós as conseguíssemos pela graça do Príncipe do Mundo?
    Jules Michelet
    A Bruxa, Livro Primeiro, Capítulo IX: Satã médico

    Mas a grande revolução que as bruxas fazem, a maior contestação ao espírito da Idade Média, é o que se poderia chamar de reabilitação do ventre e das funções digestivas. Elas professaram com coragem: Nada de impuro e nada de imundo. O estudo da matéria foi a partir de então ilimitado, libertado. A medicina se tornou possível [...]. Não faltaram injúrias. Chamaram-nas de bruxas sujas, indecentes, despudoradas, imorais. No entanto, seus primeiros passos nessa direção foram, pode-se dizer, uma feliz revolução no que há de mais moral, a bondade, a caridade. Por uma perversão monstruosa, a Idade Média contemplava a carne em sua representante (maldita desde Eva) - a Mulher - como impura. A Virgem, exaltada como virgem, e não como Nossa Senhora, longe de louvar a mulher real, a havia rebaixado, ao colocar o homem no caminho de uma escolástica da pureza mergulhada na falsidade e na astúcia.
    A própria mulher acabou por admitir o preconceito odioso e se acreditou imunda. Ela se escondia para parir. Ela enrubescia por amar e por oferecer felicidade. Ela, geralmente tão sóbria, em comparação ao homem, ela que é praticamente sempre herbívora e frutívora, que toma tão pouco à natureza, ela que, por um regime lácteo, vegetal, tem a pureza dessas tribos inocentes, pedia quase perdão por existir, viver, cumprir as condições de vida. Humilde mártir do pudor, ela se impunha suplícios, ao ponto de querer esconder, anular, quase suprimir esse ventre adorado, três vezes santo, de onde o deus homem nasce, renasce eternamente.
    Jules Michelet
    A Bruxa, Livro Primeiro, Capítulo IX: Satã médico
     
    Imitem, tudo estará bem. Repitam e copiem. Mas seria esse caminho da verdadeira infância, que vivifica o coração do homem, que lhe faria reencontrar as fontes frescas e fecundas. Nesse mundo que faz da infância e juventude meros dos atributos da velhice, vejo apenas astúcia, servidão, impotência. O que é essa literatura comparada aos monumentos sublimes dos gregos e judeus? Ou diante do gênio romano? É precisamente a queda literária que aconteceu na Índia, do bramanismo ao budismo; uma tagarelice pomposa depois de textos que eram da mais alta inspiração. Os livros copiam os livros, as igrejas copiam as igrejas. E, quando não podem mais copiar, roubam umas das outras. Dos mármores arrancados de Ravena, orna-se a Aix-la-Chapelle. Assim é toda sociedade. Tanto o bispo que é rei de uma cidade quanto o bárbaro que é rei de uma tribo copiam os magistrados romanos. Nossos monges, que achamos originais, estão apenas renovando a villa (como diz muito bem Chateaubriand) em seu monastério. Eles não têm nenhuma intenção de fundar uma sociedade nova, nem de transformar a antiga. Imitadores dos monges do Oriente, eles gostariam, em primeiro lugar, que seus serviçais fossem eles também pequenos monges lavradores, um povo estéril. É apesar deles que a família se refaz, refaz o mundo.
    Quando se vê que esses anciãos envelhecem tão rápido, quando, em um século, caímos do sábio monge São Bento ao pedante Bento de Aniane, sentimos mesmo que essas pessoas não tiveram qualquer participação na grande criação popular que floresce sobre as ruínas [...]
    Jules Michelet
    A Bruxa, Livro Primeiro, Capítulo II: Por que a Idade Média se desesperou
     
    Fogo na floresta
    Os dominantes são levados a identificar na personagem da bruxa um protótipo da rebelde absoluta. As elites culturais e sociais impõem pela exclusão ou pela fogueira o respeito às normas, ou pelo menos o medo de transgredi-las” 

    A lgreja a coloca no ponto mais baixo (ela é Eva e o pecado em si). Em casa, ela é espancada; no sabá, imolada; sabe-se de que forma. No fundo, ela não é nem de Satã nem de Jesus. Ela não é nada, não tem nada. Ela morreria em sua criança. Mas é preciso prestar atenção quando se deixa uma criatura tão infeliz, pois, sob essa saraivada de dores, o que não é dor, o que é doçura e ternura, pode reverter-se em frenesi. Eiso horror da ldade Média. Com seu ar bem espiritual ela suscita o submundo das coisas inacreditáveis que ficariam lá; ele vai dragando, escavando os abjetos subterrâneos da alma.
    De resto, a pobre criatura sufocaria tudo isso. Bem diferente da alta senhora, ela só pode pecar por obediência. Seu marido quer, e Satã quer. Ela tem medo, ela chora; nem a consultam. Mas, tão pouco livre que seja, o efeito não é menos terrível para a perversão dos sentidos e da mente. E o inferno aqui embaixo. Ela fica estarrecida, meio enlouquecida de remorso de paixão.
    [...] Estão assustados pelo que podia ser uma tal sociedade, em que a família, tão impura e devastada, caminhava morna e muda, com uma máscara pesada de chumbo, sob o braço de uma autoridade imbecil que não via nada e se crê senhora. Que rebanho! Que ovelhas! Que pastores idiotas! Eles tinham sob seus olhos um monstro de infelicidade, de dor, de pecado. Espetáculo inacreditável antes e depois. Mas olhavam em seus livros, aprendiam, repetiam palavras. Palavras! Palavras! É toda a história deles. Foram uma lingua, no total. Verbo e verbalidade, é tudo. Um nome ficará: Palavra.
    Jules Michelet
    “Notas e esclarecimentos”
     
    “Pode parecer que as grandes e terriveis revoltas do século XIl não influenciaram esses mistérios e essa vida noturna do lobo, essa caça selvagem, como o chamam os barões cruéis. Mas essas revoltas podiam começar com muita frequência nas festas noturnas. As grandes comunhões de revolta entre servos [...] podiam ser celebradas no sabá. A Marselhesa daquele tempo, cantada mais à noite do que durante o dia, era talvez um canto sabático:
    Nous sommes hommes comme ils sont!
    Tout aussi grand cœur nous avons!
    Tout autant souffrir nous pouvons!*
    Mas o túmulo foi fechado em 1200. O papa está sentado em cima, o rei sentado abaixo e, com uma gravidade enorme, isolaram o homem. Teria ele uma vida noturna? Principalmente! As velhas danças pagãs deviam ser mais furiosas na época [...] Assim era o sentido dos sabás antes de 1300. Para que tomassem a forma impressionante de uma guerra declarada ao Deus daquele tempo, é preciso mais ainda, é preciso duas coisas; não somente que se descesse no fundo do desespero, mas que todo respeito fosse perdido.
    Isso só acontece no século XIV, sob o papado de Avignon e durante o Grande Cisma, quando a lgreja de duas cabeças não parece mais a lgreja, quando toda nobreza e o rei, vergonhosamente prisioneiros dos ingleses, exterminam o povo para lhe extorquir seu dinheiro. Os sabás têm então a forma grandiosa e terrível da Missa Negra...”
    Jules Michelet
    A Bruxa, Livro Primeiro, Capitulo Xl: A comunhão de revolta
    * “Somos homens como eles são/ Também temos um grande coração/ E também podemos sofrer como eles!”
     
    De um diabo
    a outro
    De um diabo a outro, de Françonnette a Nassera, do século XVI ao XXI, os mesmos medos da morte, da doença, do estrangeiro e do outro fabricam as mesmas vítimas. Françonnette e Nassera se tornam uma só pessoa. Só o apoio da fantasia destrutiva que as envolve mudou, mas os efeitos são tristemente os mesmos
    [...] Frio, fome, medo, escuridão! [...]
    — [...] Só que a gente morre vivendo!
     
    Nós vivemos uma onda de obscurantismo que nos lembra,como se fosse preciso, que os arcaísmos retornaram em peso. A pandemia e seus efeitos mortíferos têm, evidentemente, bastante culpa nisso. Esses pensamentos e imagens de uma outra época são, com muita frequência, as estrelas da mídia mainstream, assim como das redes sociais mais subterrâneas.
    Os medos ancestrais infiltram-se por todo o corpo social em sofrimento, e às vezes reaparecem na superfície entre fossos da superstição e as florestas primitivas do pensamento mágico. Esse retorno ao obscuro se encontra, é claro, em todas as religiões. Desde há séculos, Roma não para de correr atrás dos humildes mortais para tentar contê-los, intimidá-los e impedir todas as formas de humanização e de verdadeira liberação: a imprensa, Galileu e sua Terra que gira e gira mesmo — e não somente em torno da Santa Sé — Eppur, si muove, a despeito dos inquisidores. Galileu foi condenado, se não para ser queimado vivo, pelo menos para passar o resto de sua vida em residência vigiada.
    O darwinismo e as origens da Humanidade constituíram para a Igreja, igualmente, teses a serem desacreditadas, combate ainda atual, em particular para os criacionistas americanos. Pensilvânia, Kansas, Geórgia... a lista dos Estados submetendo suas crianças ao obscurantismo se alonga e as iniciativas se multiplicam para introduzir a dúvida a respeito da teoria da evolução.
    Já são 55% dos americanos, segundo uma sondagem da CBS de novembro de 2004, que acreditam que “Deus criou os humanos em sua forma atual”! A grande Inquisição nunca parou de trabalhar. Esqueceram de Giordano Bruno, filósofo e frei dominicano, panteísta que precedeu Spinoza e que aqueles “loucos de deus” queimaram vivo em Roma em 1600? Em uma de suas obras, Spaccio de la Bestia Trionfante (Expulsão da besta triunfante), ele criticava com humor as crenças religiosas. Se deu mal. Esqueceram de Joana, a Donzela de Orléans, julgada herética e bruxa por um tribunal eclesiástico presidido por certo bispo Cauchon, que a condenou também à fogueira? Esqueceram das “bruxas” sobre quem este livro se esforça para lembrar a existência e perseguições? “Queimá-las todas, Deus reconhecerá as suas!”
    Restaurando o rigor do dogma, a Inquisição remodelada e rebatizada — sob o nome agora de Congregação para a Doutrina da Fé — volta a guerrear contra os homens e sobretudo as mulheres: abaixo o preservativo, a contracepção, o aborto e o bom uso da genética.
    Esse retorno ao obscuro está em todas as religiões: evangélicos americanos, sectários do Corão, iluminados de todos as pelagens... E seus tentáculos midiáticos abundam. Encontra-se igualmente em curso, na brecha do irracional, o pensamento mágico. Os xamãs pavoneiam enquanto a Razão fica quase sempre abaixo do radar; é a grande feira da astrologia, do paranormal, do esoterismo aos quais a psicanálise é com muita frequência assimilada, mesmo a contragosto.
    A pretensa ultramodernidade e o obscurantismo caminham de mãos dadas. Será tão paradoxal? Frente a esse surto de messias hollywoodianos, minhas irmãs e irmãos ateus, relembrem todos juntos comigo (e com a ajuda do divino Shakespeare): “O céu está vazio, todos os demônios estão aqui, e só restam o espírito e a sabedoria humana para poder combatê-los”.
    Chantal Montellier
    Chantal Montellier
    Satã toma seus dejetos; o que o céu joga fora, ele recolhe. Por exemplo, a Igreja rejeitou a Natureza, como impura e suspeita. Satã se apropriou dela, dela se adorna. Mais ainda, ele a explora e a utiliza, faz jorrar dali artes, aceitando o grande nome com o qual querem enlameá-lo, o de Príncipe do Mundo. [...] A Igreja, que só vê a vida como uma provação, se abstém de prolongá-la. Seu remédio é a resignação, a espera e a esperança da morte. Vasto campo para Satã. Ei-lo médico, curandeiro dos vivos. Mais ainda, consolador; ele tem a generosidade de nos mostrar nossos mortos, de evocar as sombras amadas.
    Outra pequena coisa rejeitada pela Igreja: a Lógica, a Razão livre. Aí está a grande guloseima da qual o outro se apropria avidamente. A Igreja tinha construído a cal e a cimento uma pequena masmorra, estreita, a abóboda baixa, iluminada por alguma fenda. Isso se chamava a Escola. Largavam ali uns poucos, e lhes diziam: ‘Sejam livres’. Todos ficavam estropiados. Trezentos, quatrocentos anos confirmam a paralisia [...] É curioso que se busque aí a origem no Renascimento. Ele, o Renascimento, aconteceu, mas como? Pela empreitada satânica de pessoas que perfuraram a abóboda, pelo esforço dos condenados que queriam ver o céu. E ele aconteceu mais ainda, longe da Escola e dos letrados, na Escola silvestre...”
    Jules Michelet
    A Bruxa, introdução

    Jules Michelet (Paris, 21 de agosto de 1798 – 9 de fevereiro de 1874)

     

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