21.3.25

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“Paris, a Capital do Século XIX  
Exposé de 1939
 
C. Luís Filipe ou o intérieur 
I
 

(...) O homem privado que, em seu escritório, presta contas à realidade, deseja ser sustentado em suas ilusões pelo seu intérieur. Essa necessidade é tão imperativa que ele não pensa em inserir em seus interesses de negócios uma clara consciência de sua função social. Na organização de seu círculo privado, ele recalca essas duas preocupações. Daí derivam as fantasmagorias do intérieur. este representa para o homem privado o universo. Ai ele reune as regiões longínquas e as lembranças do passado. Seu salão é um camarote no teatro do mundo.

(...) O colecionador se torna o verdadeiro ocupante do interior. Seu ofício é a idealização dos objetos. A ele cabe esta tarefa de Sísifo de retirar das coisas, já que as possui, seu caráter de mercadoria. Mas não poderia lhes conferir senão o valor que têm para o amador, em vez do seu valor de uso. O colecionador se compraz em suscitar um mundo não apenas longínquo e extinto, mas, ao mesmo tempo melhor, um mundo em que o homem, na realidade, e tão pouco provido daquilo de que necessita como no mundo real, mas em que as coisas estão liberadas da servidão de serem úteis. 

II

A cabeça

Sobre o criado-mudo, como um ranúnculo

Repousa.

Baudelaire, Uma Mártir.

O interior não é apenas o universo do homem privado, e também seu estojo. Desde Luís Filipe, encontra-se no burguês esta tendencia de indenizar-se da ausência de rastros da vida privada na grande cidade. Essa compensação, ele tenta encontrá-la entre as quatro paredes de seu apartamento. Tudo se passa como se fosse uma questão de honra não deixar se perderem os rastros de seus objetos de uso e de seus acessórios. Infatigável, preserva as impressões de uma multidão de objetos; para seus chinelos e seus relógios, seus talheres e seus guarda-chuvas, imagina capas e estojos. Tem uma clara preferência pelo veludo e a pelúcia que conservam a marca de todo contato. No estilo do Segundo Império, o apartamento torna-se uma espécie de habitáculo. Os vestígios de seu habitante moldam-se no intérieur. Daí nasce o romance policial que pesquisa esses vestígios e segue essas pistas. A Filosofia da Mobília48 e os romances policiais de Edgar Poe fazem dele o primeiro fisiognomonista do interior. Os criminosos, nas primeiras narrativas policiais (The Black Cat, The Tell-Tale Heart, William Wilson), não são nem cavalheiros nem marginais, e sim pessoas privadas pertencentes à burguesia.

III

Esta procura por meu lar... foi minha provação...

Onde fica  meu lar? Pergunto por isto,

procuro e procurei, nada encontrei.

Nietzsche, Assim Falava Zaratustra.49

(...) (A linha curva do Jugendstil surge desde o título das Flores do Mal. Uma espécie de guirlanda marca o enlace das Flores do Mal, passando pelas almas das flores de Odilon Redon até o fazer catléia de Swann.51) (...)

D. Baudelaire ou as ruas de Paris

I

Tudo para mim torna-se alegoria.

Baudelaire, Le Cygne.

[...]

Na figura do flâneur a intelectualidade familiariza-se com o mercado. Para lá encaminha-se o flâneur, pensando dar apenas uma volta; mas, na verdade, é para encontrar um comprador. (...)

[...]

III

No fundo do desconhecido em busca do novo!

Baudelaire, A Viagem.

A chave da forma alegórica em Baudelaire é solidária da significação específica que a mercadoria adquire devido a seu preço. Ao aviltamento das coisas por meio do seu significado, que é característico da alegoria do século XVII, corresponde o aviltamento singular das coisas por meio do seu preço, enquanto mercadoria. Esse aviltamento que sofrem as coisas pelo fato de poderem ser taxadas como mercadorias é contrabalanceado em Baudelaire pelo valor inestimável da novidade. (...)

[...]

E. Haussmann ou as barricadas

I

Tenho o culto do Belo, do Bem, das grandes coisas,

Da bela natureza inspirando a grande arte,

Que ela encante o ouvido ou seduza o olhar;

Amo a primavera em flores: mulheres e rosas!

(Baron Haussmann) Confession d'un Lion Devenu Vieux.

A atividade de Haussmann incorpora-se ao imperialismo napoleônico que favorece o capitalismo financeiro. Em Paris, a especulação está no seu apogeu. As expropriações de Haussmann suscitam uma especulação que beira a trapaça. (...) Haussmann tenta reforçar sua ditadura, colocando Paris sob um regime de exceção. Em 1864, num discurso na Câmara, ele dá livre curso a seu ódio contra a população instável das grandes cidades. Essa população aumenta constantemente devido a seus empreendimentos. A alta dos aluguéis expulsa o proletariado para os subúrbios. Por isso os bairros de Paris perdem sua fisionomia própria. Constitui-se o cinturão vermelho operário. Haussmann deu a si mesmo o título de artista demolidor . Sentiu que tinha vocaçao para a obra que havia empreendido e acentua esse fato em suas memórias. (...) Os moradores da cidade não se sentem mais em casa; começarn a ter consciência do caráter desumano da cidade grande. (...)

A verdadeira finalidade dos trabalhos de Haussmann era proteger-se contra a eventualidade de uma guerra civil. Queria tornar para sempre impossível a construção de barricadas nas ruas de Paris. Com a mesma intenção, Luís Filipe já introduzira o calçamento de madeira. Mesmo assim, as barricadas desempenharam um pape considerável na revolução de fevereiro [de 1848].* Engels tratou dos problemas de tática nas lutas de barricadas. Haussmann procura preveni-los de dois modos. A largura as ruas tornará impossível a construção de barricadas, e novas vias ligarao em linha direta as casernas aos bairros operários. Os contemporâneos batizaram seu empreendimento de embelezamento estratégico .

[...]

Conclusão 

[...]

O universo inteiro é composto de sistemas estelares. Para criá-los a natureza tem apenas cem corpos simples à sua disposição. Apesar da vantagem prodigiosa que ela sabe tirar desses recursos, e do número incalculável de combinações que permitem a sua fecundidade, o resultado é necessariamente um número finito, como o dos próprios elementos, e, para preencher a extensão, a natureza deve repetir ao infinito cada uma de suas combinações originais ou tipos. Todo astro, qualquer que seja, existe portanto em número infinito no tempo e no espaço, não apenas sob um de seus aspectos, mas tal como se encontra, em cada segundo de sua duração, do nascimento à morte... A terra é um desses astros. Cada ser humano é portanto eterno em cada segundo de sua existência. O que escrevo agora numa cela do forte do Taureau, eu o escrevi e escreverei durante a eternidade, à mesa, com uma pena, vestido, em circunstâncias inteiramente semelhantes. Assim para cada um... O número de nossos sósias é infinito no tempo e no espaço. Em consciência, não se pode exigir mais. Esses sósias são de carne e osso, até de calças e paletó, de crinolina e de coque. Não são fantasmas, é a atualidade eternizada. Eis entretanto uma grande falha: não há progresso... O que chamamos progresso está enclausurado em cada terra e desaparece com ela. Sempre e em todo lugar, no campo terrestre, o mesmo drama, o mesmo cenário, no mesmo palco estreito, uma humanidade barulhenta, enfatuada de sua grandeza, acreditando-se ser o universo e vivendo na sua prisão como numa imensidão, para logo desaparecer com o planeta, que carregou com o mais profundo desprezo o fardo de seu orgulho. Mesma monotonia, mesmo imobilismo nos astros estrangeiros. O universo se repete sem fim e patina no mesmo lugar. A eternidade apresenta imperturbavelmente no infinito o mesmo espetáculo .57

Esta resignação sem esperança é a última palavra do grande revolucionário. O século não soube responder às novas virtualidades técnicas com uma nova ordem social. É por isso que a última palavra coube às mediações enganosas do antigo e do novo, que estão no coração de suas fantasmagorias. O mundo dominado por essas fantasmagorias é  para usarmos a expressão de Baudelaire  a modernidade. A visão de Blanqui faz entrar na modernidade — da qual os sete velhos58 aparecem como arautos — o universo inteiro. Finalmente, a novidade lhe aparece como o atributo do que é próprio ao domínio da danação. Do mesmo modo, num vaudeville um pouco anterior — Ciei et Enfer — , as punições do inferno representam a última novidade de todos os tempos, penas eternas e sempre novas . Os homens do século XIX, aos quais Blanqui se dirige como a aparições, saíram dessa região.

A 

[Passagens, Magasins de Nouveautés,1 Caucots2]

(...)

À venda os Corpos, as vozes, a imensa opulência

inquestionável

aquilo que não se venderá jamais.

Rimbaud5

[...]

Até 1870, as carruagens dominavam a rua. Era demasiado apertado andar sobre as calçadas estreitas e por isso flanava-se sobretudo nas passagens, que ofereciam abrigo do mau tempo e do trânsito. Nossas ruas mais largas e nossas calçadas mais espaçosas tornaram mais fácil e doce a flânerie, impossível a nossos pais noutro lugar que não nas passagens. ■ Flâneur ■ Edmond Beaurepaire, Paris dHier et dAujourdhui: La Chronique des Rues, Paris, 1900, p. 67. r 

[A la, 1]

[...]

Evocava-se ao mesmo tempo o gênio dos jacobinos e dos industriais , atribuía-se este dito a Luís Filipe: Deus seja louvado e minhas boutiques também. As passagens como templo do capital mercantil.

[A 2, 2] 

[...]

Passagens como origem das lojas de departamentos? Quais das lojas acima citadas localizavam-se em passagens?

[A 2, 5]

O régime das especialidades fornece também  diga-se de passagem  a chave histórico-materialista para o florescimento (quando não para o surgimento) da pintura de gênero nos anos quarenta do século passado. Com o interesse crescente que a burguesia dedicou à arte, esta pintura diferenciou-se no conteúdo e no assunto, segundo a pouca compreensão artística inicial desta classe; surgiram então como gêneros bem definidos as cenas históricas, a pintura de animais, as cenas infantis, as imagens da vida monástica, familiar, aldeã. ■ Fotografia ■

[A 2, 6]

Investigar a influência do comércio sobre Lautréamont e Rimbaud!

[A 2, 7]

Uma outra característica, a partir sobretudo do Diretório (provavelmente até 1830?), será a leveza dos tecidos; mesmo durante o frio mais rigoroso, só muito raramente aparecerão peliças e matelassês quentes <?>. Correndo o risco de morrer, as mulheres se vestirão como se as rudezas dos invernos não existissem mais, como se a natureza, subitamente, tivesse se transformado num eterno paraíso. Grand-Carteret, Les Elégances de la Toilette, Paris, p. XXXIV.

[A 2, 8]

O teatro forneceu também naquela época o vocabulário para assuntos da moda. Chapéus à moda Tarare, à moda Théodore, à moda Fígaro, à moda Grande-Sacerdotisa, à moda Ifigênia, à moda Calprenade, à moda Vitória. A mesma futilidade, que no balé procura a origem do real, trai-se quando  por volta de 1 830  um jornal dá a si mesmo o nome de Le Sylphe. ■ Moda ■

[A 2, 9]

Alexandre Dumas, numa soirée em casa da princesa Mathilde. Os versos referem-se a Napoleão III.

Nos seus fastos imperiais

O tio e o sobrinho são iguais

O tio tomava as capitais

O sobrinho os nossos capitais.

Seguiu-se um silêncio sepulcral. Registrado nas Mémoires du Comte Horace de Viel-Castel sur le Règne de Napoléon III, vol. II, Paris, 1883, p. 185.

[A 2, 10]

Acoudisse9 significava a continuidade das atividades da Bolsa. Aqui nunca o expediente chegava ao fim, frequentemente nem mesmo à noite. Quando o Café Tortoni fechou, a coluna transferiu-se para os boulevards adjacentes e ondulava-se de um lado para o outro, principalmente diante da Passage de 1’Opéra. Julius Rodenberg, Paris bei Sonnenschein und Lampenlicht, Leipzig, 1867, p. 87.

[A 2, 11]

Especulação de ações ferroviárias sob Luís Filipe.

[A 2, 12]

[...]

Pregão de rua dos vendedores de boletins da bolsa. Na alta: A alta da Bolsa. Na baixa: As variações da Bolsa. O termo baixa foi proibido pela polícia.

[A 2a, 2]

[...]

Preço de um encargo como corretor na Bolsa entre 2.000.000 e 1.400.000 francos.

[A 2a, 4]

[...]

Um nome antigo para as lojas de departamentos: entrepostos baratos. Giedion, Bauen in Frankreich, Leipzig, Berlim, 1928, p. 31.

[A 3, 4]

A transformação das grandes lojas nas passagens em lojas de departamentos. Princípio das lojas de departamentos: Os andares constituem-se de um único espaço. A vista pode abrange-los por assim dizer, com um único olhar’.’ Giedion, Bauen in Frankreich, p. 34.

[A 3, 5]

[...]

Pelo visto, já se fumava nas passagens quando isso ainda não era comum na rua. Preciso dizer aqui ainda algumas palavras sobre a vida nas passagens como o lugar de preferência dos que passeiam e dos que firmam, lugar de recreação dos mais variados ofícios. Em cada passagem existe pelo menos um salão de limpeza. Em um gabinete decorado de maneira tão elegante quanto permite sua destinação, sentam-se os cavalheiros sobre estrados elevados e lêem tranqüilamente um jornal enquanto alguém se empenha em escovar-lhes o pó das roupas e das botas. Ferdinand von Gall, Paris und seine Salons, II, Oldenburg, 1845, pp. 22-23.

[A 3, 9]

48 Edgar Allan Poe, Philosophy of Furníture. (w.b.)

49 In: Friedrich Nietzsche, Werke in drei Bànden, ed. org. por Karl Schlechta, vol. 2, Munique, 1955, p. 511. (R.T.) 

50 0 arquiteto belga Henri Van de Velde (1863-1957) exerceu uma forte influência sobre o Jugendstil. A passagem acima refere-se à casa construída por ele em Uccle, em 1895. (J.L.)

51 Marcei Proust, Du Côté de Chez Swann, A expressão faíre catleya é o eufemismo de Swann para significar fazer amor. (E/M)

57 Auguste Blanqui, UÉternité par les Astres, Paris, 1872, pp. 73-74 e 76. (R.T.)

58 Referência ao poema Os Sete Velhos (Les Sept Vieillards), de Baudelaire. (w.b.) 9 Espaço paralelo à Bolsa de Valores, onde são realizados negócios não-oficiais; cf. A 7a, 5. (E/M; w.b.) 

1 Cf. Exposés, nota 2.

2 Calicot  Empregado encarregado das vendas ao publico, em casas comerciais; cf. A 8, 3 e A9. (w.b.) 

3 Arthur Rimbaud, Œuvres Complès, ed. org. 9 por Antoine Adam, Paris 1976 (Bibliothèque de la Pléiade, 68), p. 146 (llluminationsSolde). (R.T.)

9 Espaço paralelo à Bolsa de Valores, onde são realizados negócios não-oficiais; cf. A 7a, 5. (E/M; w.b.)

BENJAMIN, Walter (1892-1940). Passagens / Das Passagen-WerkWalter Benjamin; edição alemã de Rolf Tiedemann; organização da edição brasileira Willi Bolle; colaboração na organização da edição brasileira Olgária Chain Féres Matos; tradução do alemão Irene Aron; tradução do francês Cleonice Paes Barreto Mourão; revisão técnica Patrícia de Freitas Camargo; pósfácios Willie Bolle e Olgária Chain Féres Matos; introdução à edição alemã (1982) Rolf Tiedemann. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.

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