(...) Depois, um belo dia, ela rebentava, e de dentro do embrulho saíam brinquedos, nozes, palhinhas e adornos para a árvore: era a quermesse de Natal. E com tudo isso saía também outra coisa: a pobreza. Tal como as maçãs e as nozes se podiam mostrar com um pouco de ouropel ao lado do marzipã no prato natalício, assim também se viam pessoas pobres ao lado da lametta e das velas coloridas nos melhores bairros. Os ricos mandavam os filhos comprar ovelhinhas de lã aos filhos dos pobres, ou dar-lhes a esmola que eles próprios, por pudor, não eram capazes de dar pessoalmente. (...) Finalmente, o prazo expirava e chegava aquele dia que relembro aqui a partir da minha memória dos mais recuados.
[...]
A Lua
A luz que escorre da Lua não se destina ao cenário da nossa existência diurna. O espaço que por ela é iluminado de forma indistinta parece pertencer a uma contra-Terra ou a uma Terra paralela, que não é aquela que o satélite Lua segue, mas antes aquela que se transformou ela própria num satélite da Lua. O seu amplo peito, cuja respiração era o tempo, já não se mexe; a criação regressou finalmente a casa, e agora pode voltar a pôr o véu de viúva que o dia lhe tinha roubado. O pálido raio que entrava no meu quarto através das venezianas deu-me a entender isso. O meu sono ficou inquieto; a Lua retalhava-o com o seu ir e vir. Quando ela me inundava o quarto e eu acordava, eu ficava sem teto, porque ele parecia querer abrigá-la só a ela. A primeira coisa sobre a qual caía o meu olhar eram as duas bacias de cor creme do lavatório. Durante o dia nem me lembrava de olhar para elas. Mas à luz da Lua a barra azul em volta de toda a borda superior da bacia irritava-me. Simulava uma fita de tecido passando por uma bainha. De fato, a borda das bacias tinha o franzido das golas. Entre as duas estavam os jarros bojudos, da mesma porcelana e com o mesmo padrão de flores. Quando eu descia da cama, eles tiniam, e esse tinido propagava-se, sobre o revestimento de mármore da mesa do lavatório, às taças e tigelas. Por um lado, ficava contente por ouvir um sinal de vida – ainda que fosse apenas o eco do meu próprio – vindo do ambiente noturno; mas por outro, era um sinal em que não podia confiar, e que só esperava, como um falso amigo, pelo melhor momento para me enganar. E isso acontecia quando eu pegava na garrafa e a levantava para deitar água num copo. O borbulhar desta água, o ruído com que eu pousava, primeiro a garrafa, depois o copo – tudo soava aos meus ouvidos como uma repetição. Pois todos os lugares daquela Terra paralela para onde eu me desterrara pareciam estar ocupados pelo passado. Tinha de me conformar com a situação. E quando voltava para a cama era sempre cheio de medo de me encontrar já estendido nela.
Só perdia completamente o medo quando sentia de novo o colchão nas costas. Então adormecia. A luz da Lua saía lentamente do meu quarto. E muitas vezes este já estava escuro quando eu acordava pela segunda ou terceira vez. A mão era a primeira a ter de arriscar o mergulho por cima da beira da trincheira em que tinha encontrado abrigo contra o sonho. Quando depois a luz trêmula do candeeiro de noite a apaziguava a ela e a mim, eu chegava à conclusão de que do mundo nada mais restava senão uma única e insistente pergunta: por que razão existem coisas no mundo, por que razão existe o mundo? Foi com grande espanto que concluí que nada nele me podia obrigar a pensá-lo. O seu não ser não me pareceria em nada mais duvidoso do que o seu ser, que parecia piscar o olho ao não ser. Quando a Lua ainda brilhava, o mar e os seus continentes levavam pouca vantagem sobre a louça do meu lavatório. Da minha própria existência nada mais restava senão o resíduo da sua solidão.
Duas charangas
Nunca mais houve música com uma natureza tão bárbara e despudorada quanto a da banda militar que travava a torrente de pessoas que se arrastava pela Lästerallee23, entre os cafés-restaurantes do Jardim Zoológico. Hoje sei de onde vinha a força dessa torrente. Para o berlinense não havia melhor escola do amor do que essa, rodeada que estava pelas cercas dos gnus e das zebras, pelas árvores despidas e por recifes onde abutres e condores faziam ninho, pelas jaulas fedorentas dos lobos e os lugares onde pelicanos e garças chocavam os ovos. As vozes e os gritos desses bichos misturavam-se com o barulho dos timbales e dos tambores. Era esse o ar em que pela primeira vez um rapaz ousava dirigir o olhar para uma moça que passava, falando ao mesmo tempo, muito excitado, como o amigo. E esforçava-se de tal modo para não denunciar o seu entusiasmo, nem no tom de voz nem no olhar, que acabava por não ver nada da moça que passava.
Muito antes, conhecera outro tipo de charanga. E que diferença entre as duas! Esta, que balançava, sufocante e sedutora, sob as abóbadas da folhagem e das tendas, e aquela, mais antiga, brilhante e ensurdecedora no ar frio, como sob uma fina campânula de vidro. Fazia-se ouvir da Ilha de Rousseau e inspirava os patinadores que no gelo do lago, o Neuer See, faziam as suas piruetas e curvas. Também eu me encontrava entre eles, muito antes de poder imaginar de onde vinha o nome daquela ilha, para não falar das dificuldades da sua ortografia. A localização dessa pista de gelo não tinha rival, e muito menos a sua vida ao longo das estações do ano. De fato, o verão transformava as outras em quê? Em campos de tênis. Aqui, porém, estendia-se sob os grandes ramos pendentes das árvores da margem o mesmo lago que me esperava, dentro de uma moldura, na escura sala de jantar da minha avó. Naquela época muitos gostavam de pintá-lo, com os seus cursos de água labirínticos. E agora se deslizava ao som de uma valsa vienense por baixo das mesmas pontes em que no verão, encostados ao parapeito, olhávamos para os barcos que cruzavam lentamente as águas escuras. Nas proximidades havia caminhos que se entrecruzavam e sobretudo, em lugares mais recuados, os refúgios – bancos ‘só para adultos’. Havia-os nas caixas de areia circulares dos parques infantis, onde os menores brincavam ou ficavam especados, pensativos, até que outro o empurrasse ou a criada chamasse do seu banco onde, atrás do carrinho, fazia aplicadamente a sua leitura e mantinha a criança debaixo de olho praticamente sem levantar o olhar.
Mas deixemos essas margens. O lago, no entanto, está ainda vivo em mim no ritmo dos pés pesados dos patins, que, depois de uma corrida pelo gelo, voltavam a sentir debaixo de si as tábuas, entrando ruidosamente numa barraca onde havia um fogão de ferro aceso. Ao lado, o banco onde pesávamos uma vez mais a carga dos pés antes de nos decidirmos a desapertar as fivelas. Quando, por fim, a perna repousava de través sobre o joelho e o patim se soltava, era como se nos crescessem asas nas solas dos pés, e saíamos com passos que faziam a sua reverência ao chão gelado. A música que vinha da ilha acompanhava-me ainda um pouco no caminho de casa.
23 O nome da alameda do Zoo em Berlim poderia traduzir-se por ‘alameda da Má-Língua’. Era um daqueles lugares, em parques públicos das grandes cidades de tradição liberal (como a ‘Meckerwiese’ de Hamburgo ou o mais conhecido ‘Hyde Park Corner’ de Londres), onde qualquer cidadão pode falar livremente e tentar captar a atenção dos transeuntes para o seu discurso.
O anãozinho corcunda
Na minha infância gostava de olhar através de umas grades horizontais que nos permitiam ficar diante de uma vitrine, ainda que debaixo dela houvesse uma abertura que servia para deixar entrar um pouco de luz e ar nas caves. As aberturas das caves eram mais entradas para o mundo subterrâneo do que saídas para o ar livre cá em cima. Isso explica a curiosidade com que eu olhava lá para baixo através das grades, para levar comigo, vinda do subterrâneo, a imagem de um canário, de um candeeiro ou de um dos moradores. Nos dias em que a busca tinha sido em vão, a noite seguinte por vezes virava o espeto, e os sonhos traziam-me olhares que me fixavam e prendiam, vindos desses buracos das caves. Eram-me lançados por gnomos com gorros pontiagudos. E mal ainda me tinham aterrorizado até a medula, logo desapareciam. Eu fiquei sabendo com o que contava quando um dia dei com estes versos no Deutsches Kinderbuch [O Livro Infantil Alemão]: ‘Quis descer à minha adega / Para ir buscar o meu vinho, / Está lá um anão corcunda / Que me rouba o meu jarrinho.’ Eu conhecia os desta espécie, apostados em fazer mal e pregar peças, e não me admirava nada que gostassem de adegas. Era a ‘canalhada’24. Dessa espécie eram também os companheiros da noite, aqueles que atacam o Galinho e a Galinha no Monte das Nozes – a Agulha e o Alfinete, que aí gritam que a escuridão vai cair a pique. Eles provavelmente sabiam mais coisas desse corcunda. De mim não se aproximou. Só hoje sei como se chamava. Foi a minha mãe quem me disse. ‘Já chegou o desastrado!’, dizia ela quando eu quebrava alguma coisa ou caía. Agora entendo o que ela queria dizer. Referia-se ao anãozinho corcunda que tinha olhado para mim. Aqueles para quem ele olha não dão atenção ao que fazem. Nem a si, nem ao corcundinha. Ficam encavacados diante de um monte de cacos. ‘Quis ir à minha cozinha / Fazer a sopa, e já nela / Me espera um anão corcunda / P’ra me partir a panela.’ Onde ele aparecesse, quem ficava a perder era eu. E o que perdia eram as coisas, até que no decorrer do ano o jardim se transformava num jardinzinho, o meu quarto num quartinho e o banco num banquinho. As coisas minguavam, e era como se lhes crescesse uma corcunda que as tornava coisas do anãozinho. O anãozinho antecipava-se- me em tudo. Antecipando-se, lá estava ele no meu caminho. De resto, não me fazia nada, esse bailio pardo, a não ser cobrar metade do esquecimento de cada coisa de que eu me aproximasse: ‘Se pr’o quarto de comer / Com a minha papa vou, / Está lá um anão corcunda: / Já metade me levou’. Era assim que o anãozinho aparecia muitas vezes. Mas eu nunca o vi. Só ele é que me via. Via-me no meu esconderijo e diante do poço da lontra, nas manhãs de inverno e diante do telefone no corredor da cozinha, no Brauhausberg com as borboletas e na minha pista de patinação ao som da música da banda. Há muito tempo que se despediu. Mas a sua voz, que é como o zumbido da camisa do candeeiro a gás, atravessa o limiar do século e vem sussurrar-me as palavras: ‘Reza, meu menino, anda, / Pelo anãozinho corcunda!’.
24 ‘Canalhada’ [Lumpengesindel] é precisamente o título de um conto dos Irmãos Grimm, em que intervêm as personagens a seguir referidas: a galinha e o galinho, a agulha e o alfinete.
APÊNDICE
O carrossel
A plataforma com os bichos de serviço gira rente ao chão. Tem a altura certa para se sonhar que se voa. A música começa, e a criança afasta-se da mãe aos solavancos. Primeiro, tem medo de deixar a mãe. Depois, o menino percebe como ele próprio lhe é fiel. Sentado no seu trono, domina, sobranceiro e fiel, um mundo que lhe pertence. Na linha tangencial, árvores e indígenas formam alas. E de repente, eis que a mãe volta a aparecer num Oriente. Da floresta virgem emerge depois uma copa alta, como a criança já a viu há milênios, como agora a vê no carrossel. O bicho que escolheu afeiçoa-se-lhe: cavalga sobre o seu peixe mudo como um silencioso Árion, um Zeus-touro de madeira rapta-a, qual Europa sem mácula. Há muito tempo que o eterno retorno de todas as coisas se fez sabedoria de criança, e a vida uma embriaguez de dominação primordial, com o realejo ensurdecedor ao centro, como tesouro da coroa. Quando o andamento começa a abrandar, o espaço começa a gaguejar e as árvores a voltar a si. O carrossel torna-se terreno inseguro. E aparece a mãe, a estaca tantas vezes abordada em volta da qual a criança, ao atracar, enrola a amarra do olhar.
O despertar do sexo
Numa daquelas ruas que eu mais tarde viria a percorrer de noite, em infindáveis caminhadas, surpreendeu-me o despertar da pulsão sexual, na altura certa mas em circunstâncias estranhas. Era o dia do ano novo judeu, e os meus pais tinham providenciado para que eu participasse de qualquer festividade religiosa. Talvez na comunidade reformada pela qual a minha mãe, por tradição familiar, nutria alguma simpatia. Tinham-me mandado
buscar um parente afastado, com quem devia ir. Mas, ou por ter esquecido a morada, ou por não conhecer bem a zona, começou a fazer-se cada vez mais tarde e a minha deambulação não tinha fim à vista. Não me atrevia a ir sozinho para a sinagoga, nem isso seria possível, pois era o meu protetor quem tinha as senhas de entrada. Os principais culpados do meu infortúnio eram a antipatia pelo quase estranho de quem dependia, e a suspeita em relação às cerimônias religiosas, que só prometiam uma situação embaraçosa. De repente, no meio daquela perplexidade, invadiu-me uma onda quente de medo (‘tarde demais para ir à sinagoga’), e no mesmo instante, ainda antes de a primeira desaparecer, emergiu outra, agora de total irresponsabilidade (‘seja o que for que aconteça, isto não tem nada a ver comigo’). E as duas ondas convergiram imparavelmente na primeira sensação de prazer, em que se misturavam a profanação do dia santo e a cumplicidade da rua, que aqui me fez antever pela primeira vez os serviços que iria prestar àquela pulsão desperta.
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única / Infância berlinense: 1900 / Walter Benjamin; edição e tradução de João Barrento. Einbahnstraße; Berliner Kindheit um 1900. —1a ed; 4a reimp— Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2022. — (Filô/Benjamin)

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