10.8.24

continua/benjamin/rua de mão única/infância berlinense:1900/sai

 

Rua de mão única 

 Esta rua chama-se
Rua Asja Lacis
em homenagem àquela que
como um engenheiro
a abriu no corpo
do autor deste livro
Posto de gasolina

(...) As opiniões estão para o gigantesco aparelho da vida social como o óleo para as máquinas: ninguém se aproxima de uma turbina e lhe verte óleo para cima. O que se faz é injetar algumas gotas em rebites e juntas escondidos que têm de se conhecer bem.

Sala do café da manhã

(...)
Aqueles que fogem ao contato com o dia, seja por receio dos homens, seja por necessidade de concentração interior, não querem comer e não dão importância ao café da manhã. Deste modo evitam a passagem brusca entre o mundo noturno e o diurno. Cuidados que apenas se justificam quando o sonho é queimado pelo trabalho matinal intenso, ou também pela oração, mas de outro modo leva a uma confusão dos ritmos de vida. Nesse estado, o relato dos sonhos é fatal, porque o indivíduo, em parte ainda entregue ao universo onírico, o trai nas palavras que usa e tem de contar com a sua vingança. Em termos mais modernos: trai-se a si mesmo. Libertou-se da proteção da ingenuidade sonhadora e, ao tocar sem reflexão nas suas visões oníricas, expõe-se. Pois só da outra margem, em pleno dia, se deve interpelar o sonho a partir de uma recordação distanciada. A esse além do sonho só se pode chegar através de uma purificação análoga à da lavagem, mas totalmente diferente dela, pois passa pelo estômago. Quem está em jejum fala do sonho como se falasse ainda de dentro do sono.

[...]

Para homens

Convencer é estéril.

[...]

Embaixada mexicana

Je ne passe jamais devant un fetiche de bois,
un Bouddha doré, une idole mexicaine sans me dire
Cest peut-être le vrai dieu.2
Charles Baudelaire

Nunca passo diante de um fetiche de madeira, de um Buda dourado, de um ídolo mexicano, sem dizer a mim mesmo: Talvez seja o verdadeiro deus.’ (...)
 
Solicita-se ao público que proteja as áreas plantadas
(...) 
O comentário e a tradução relacionam-se com o texto como o estilo e a mimese com a natureza: o mesmo fenômeno sob pontos de vista diferentes. Na árvore do texto sagrado, ambos são apenas as folhas eternamente rumorejantes, na árvore do profano, os frutos que caem no tempo que é o seu.
 
[...]

Ministério do Interior
 
Quanto maior for a hostilidade de alguém em relação à tradição, tanto mais implacável será a necessidade que tem de submeter a sua vida privada às normas que deseja elevar à condição de legisladoras de uma situação social futura. É como se estas lhe impusessem o dever de as antecipar pelo menos no seu círculo de vida próprio  a elas, que ainda se não concretizaram em lugar nenhum. Já o homem que se sabe em consonância com as mais antigas tradições da sua classe ou do seu povo, coloca de vez em quando a sua vida privada ostensivamente em
oposição às máximas que intransigentemente defende na vida pública e enaltece no seu intimo, sem quaisquer problemas de consciência, o seu próprio comportamento como a mais convincente prova da inabalável autoridade dos princípios que professa.
 
[...]  
Kaiserpanorama [Panorama imperial]

Viagem pela inflação alemã
II. (...) um cruzamento de estupidez e covardia, aquela que fala da catástrofe iminente  ao dizer ‘as coisas não podem continuar assim dá particularmente que pensar (...) ele acha que tem de considerar instável toda a situação que lhe retire posses. (...)
II. Um estranho paradoxo: as pessoas, quando agem, pensam apenas no interesse pessoal mais mesquinho, mas ao mesmo tempo são, mais do que nunca, determinadas no seu comportamento pelo instinto das massas. E nunca como hoje os instintos das massas se enganaram tanto nem foram tão estranhos à vida. Nas situações em que o obscuro instinto dos animais – como tantas histórias contam – é capaz de encontrar saída para o perigo iminente mas ainda invisível, esta sociedade, na qual cada um tem apenas em vista a sua própria e mísera abastança, sucumbe, com uma insensibilidade animal, mas sem aquele saber inconsciente dos animais, como uma massa cega, ao primeiro perigo com que se confronta, e a diversidade dos objetivos individuais torna-se irrelevante perante a identidade das forças determinantes. Por mais de uma vez foi demonstrado que a sua dependência de uma vida a que se habituou, mas que se perdeu há muito tempo, está tão empedernida que põe a perder a aplicação, tão tipicamente humana, do intelecto sob a forma da previdência, mesmo em situações drasticamente perigosas. E assim a imagem da estupidez se consuma em tais situações: insegurança, mesmo perversão dos instintos vitais e impotência, total abdicação do intelecto. E assim a imagem da estupidez se consuma em tais situações: insegurança, mesmo perversão dos instintos vitais e impotência, total abdicação do intelecto. (...)
III. Todas as relações humanas mais próximas são afetadas por uma limpidez penetrante, quase insuportável, à qual dificilmente conseguem resistir. De fato, como o dinheiro constitui, por um lado, o centro absorvente de todos os interesses da existência, e, por outro lado, esta é precisamente a barreira perante a qual quase todas as relações humanas fracassam, cada vez desaparecem mais, no plano natural como no moral, a confiança espontânea, a tranquilidade e a saúde.
IV. Não é por acaso que se fala da miséria nua e crua. O que há de mais funesto na exibição dessa miséria  que, sob o signo da necessidade, se tornou habitual, embora mostre apenas a milésima parte do que está escondido  não é a compaixão, nem a consciência, igualmente terrível, da imunidade própria, sentida por quem vê, mas a vergonha disso. Tornou-se impossível viver numa grande cidade alemã, onde a fome força os mais miseráveis a viver das notas de banco com que os transeuntes procuram tapar uma nudez que os fere.
V. A pobreza não envergonha ninguém. E, no entanto, eles envergonham os pobres. Fazem isso, e ao mesmo tempo consolam-nos com a frase bonitinha. Que vem daqueles que em tempos teriam alguma aceitação, mas para quem há muito chegou a hora do declínio. É exatamente o que se passa com aquela outra frase brutal Quem não trabalha não come. Nos tempos em que o trabalho era o sustento de cada um também havia pobreza, que não envergonhava, se vinha das más colheitas ou de qualquer outra fatalidade. O que envergonha é essa penúria em que milhões já nascem e centenas de milhares são apanhados, caindo na pobreza. O esterco e a miséria crescem à sua volta como muros levantados por mãos invisíveis. E do mesmo modo que cada um, sozinho, é capaz de suportar muita coisa, mas sente uma compreensível vergonha quando a mulher o vê suportar tudo isso e o aceita, assim também cada indivíduo isolado pode aceitar muita coisa, desde que esteja sozinho, e tudo, desde que o esconda. Mas nunca ninguém poderá fazer as pazes com a pobreza quando esta se abate como sombra gigantesca sobre o seu povo e a sua casa. Nessa altura, o que tem a fazer é manter os sentidos despertos para toda a humilhação que sobre eles recaia, e controlá-los até que o seu sofrimento deixe de escorregar pelo plano inclinado da amargura, para enveredar pelo trilho ascendente da revolta. Mas toda esperança será vã enquanto todos esses destinos terríveis e sombrios forem apresentados pela imprensa diariamente, de hora a hora, sempre com causas e consequências fictícias, não ajudando ninguém a reconhecer as forças obscuras a que a sua vida passou a estar submetida.
(...)
VII. Vai-se perdendo a liberdade do diálogo. Antigamente era natural, entre pessoas que dialogavam, ir ao encontro do ponto de vista do outro; hoje, pergunta-se logo pelo preço dos sapatos ou do guarda-chuva. Qualquer conversa cai fatalmente no tema das condições de vida e do dinheiro. Mas não se trata das preocupações e dos sofrimentos de cada um, coisa em que talvez se pudessem ajudar uns aos outros é a observação do todo que ocupa a conversa. É como se estivéssemos presos num teatro e fôssemos obrigados a seguir a peça que se desenrola no palco, quer quiséssemos, quer não, e tivéssemos de fazer dela, quer quiséssemos, quer não, o objeto do nosso pensamento e do nosso discurso.
VIII. Quem não fugir à percepção da decadência passará sem demora à justificação particular das razões pelas quais permanece e age neste caos e dele participa. A cada ponto de vista sobre o fracasso geral corresponde uma exceção para a sua própria esfera de ação, a sua morada e as suas circunstâncias particulares. Impõe-se quase por toda a parte a vontade cega de salvar a todo o custo o prestigio da existência pessoal, em vez de libertá-la da cegueira geral, desprezando soberanamente a sua impotência e o seu enredamento. (...)
IX. (...) Qualquer homem livre é para eles uma aparição extravagante. (...)
X. (...) Não esperam qualquer ajuda do próximo. Cobradores, funcionários, operários e vendedorestodos eles se sentem representantes de uma matéria recalcitrante cuja periculosidade se esforçam por revelar através da sua própria rudeza. E a própria terra se entregou à degeneração das coisas, pela qual, seguindo o exemplo da decadência humana, a castigam. (...)
XI. O desenvolvimento de todo movimento humano, quer ele derive de impulsos espirituais, quer naturais, pode contar com a resistência desmesurada do meio circundante. (...) Poucas coisas reforçarão mais a força fatal do impulso para o nomadismo que alastra do que as restrições à liberdade de circulação; nunca foi tão grande a discrepância entre a liberdade de movimentos e a abundância de meios de transporte.
XII. Passa-se com a cidade o mesmo que com todas as coisas que vão perdendo a expressão da sua essência ao entrarem num processo incessante de promiscuidade e hibridação, que substitui o que é próprio pela ambiguidade.
(...)
XIV. Dos mais antigos usos dos povos parece chegar até nós a advertência que nos diz que devemos abster-nos do gesto da cobiça ao acolhermos aquilo que tão generosamente recebemos da natureza. Porque nada podemos oferecer de nosso à terra-mãe. Por isso, é preciso mostrar respeito ao receber, devolvendo-lhe de novo uma parte de tudo o que ela nos vai oferecendo, antes mesmo de nos apossarmos do que é nosso. É esse respeito que encontramos no antigo costume da libatio. Talvez seja também essa antiquíssima
experiência moral que sobrevive, transformada, na proibição de recolher as espigas esquecidas e apanhar as uvas caídas, na medida em que estas podem servir à terra ou aos antepassados que enviam as suas bênçãos. O costume ateniense proibia que se apanhassem as migalhas à refeição, porque estas pertencem aos heróis. Se a sociedade, presa da necessidade e da cobiça, degenera a ponto de já só ser capaz de receber os dons da natureza saqueando-a, se colhe os frutos verdes para poder vendê-los a bom preço no mercado e se tem de esvaziar todas as travessas só para se saciar, a sua terra empobrecerá e o campo terá más colheitas.
 
[...]

Atenção aos degraus!
O trabalho numa prosa de boa qualidade tem très niveis: um musical, e da sua composição, um arquitetônico, o da sua construção, e por fim um têxtil, o da sua tecelagem.
 
Revisor tipográfico ajuramentado
O nosso tempo, a antítese perfeita do Renascimento, opõe-se particularmente à situação que viu nascer a invenção da imprensa. Por acaso, ou talvez não, o seu aparecimento na Alemanha dá-se na época em que o livro, no mais nobre sentido do termo, o Livro dos Livros, se tornou patrimônio popular através da tradução da Bíblia por Lutero. Ora, tudo parece indicar que o livro, nesta sua forma tradicional, tem os dias contados. Mallarmé, que descortinou no meio da cristalina construção da sua escrita, sem dúvida tradicionalista, a imagem autêntica do que estava para vir, integrou pela primeira vez, no Coup de dés, as tensões gráficas do reclame na escrita. As experiências com a escrita feitas depois dele pelos Dadaístas não partiam, é certo, do impulso construtivista, mas das reações nervosas e precisas dos literatos, e por isso foram muito menos consistentes do que as experiências de Mallarmé, que nasceram do âmago do seu próprio estilo. Mas permitem, por isso mesmo, reconhecer a atualidade de tudo aquilo que Mallarmé, como uma mônada, no seu mais hermético gabinete, vinha descobrindo, numa harmonia pré-estabelecida com tudo o que de decisivo acontece nos nossos dias na economia, na técnica, na vida pública. A escrita, que encontrara refúgio no livro impresso, onde levava uma existência autônoma, é implacavelmente arrastada para a rua pelos reclames e submetida às brutais heteronomias do caos econômico. É essa a severa escola da sua nova forma. Quando, há séculos, ela começou a deitar-se, transformando-se de inscrição na vertical em caligrafia que repousava na inclinação da estante, para finalmente encontrar no livro impresso a sua cama, hoje recomeça, igualmente de forma lenta, a levantar-se do chão. Já o jornal se lê mais na vertical do que na horizontal, e o cinema e o reclame forçam definitivamente a escrita a assumir uma verticalidade ditatorial. E antes de os nossos contemporâneos poderem abrir um livro já um denso turbilhão de letras em movimento, coloridas, concorrentes, lhes caiu diante dos olhos, tornando muito remotas as possibilidades de eles se concentrarem no silêncio arcaico do livro. As nuvens de gafanhotos da escrita, que hoje já encobrem o sol do pretenso espírito aos habitantes das metrópoles, tornar-se-ão mais densas a cada ano que passa. As renovadas exigências da vida dos negócios vão mais longe. O catálogo de fichas significa a conquista da escrita tridimensional, um contraponto surpreendente para a tridimensionalidade da escrita nas suas origens, como runa ou escrita de nós. (E já hoje, como ensinam os modos de produção científica atuais, o livro é uma mediação antiquada entre dois sistemas de fichagem, porque tudo o que é essencial se encontra no ficheiro do investigador que o organizou, e o erudito que por ele estuda assimila-o ao seu próprio ficheiro.) Mas não há dúvida de que a evolução da escrita não ficará previsivelmente ligada aos ditames de uma atividade caótica no âmbito da ciência e da economia; virá antes o momento em que a quantidade dará lugar à qualidade, e a escrita, que penetra cada vez mais fundo no âmbito gráfico da sua nova e excêntrica capacidade de se dar como imagem, se apoderará subitamente dos seus conteúdos adequados. Essa escrita da imagem só poderá ser manipulada por poetas que, como nas origens, serão sobretudo especialistas da escrita que terão de saber explorar os domínios nos quais (sem se considerarem demasiado importantes) tem lugar a construção dessas formas de escrita: os dos diagramas estatísticos e técnicos. Com a criação de uma escrita internacional conversível, eles renovarão a sua autoridade sobre a vida dos povos e descobrirão uma função em confronto com a qual todas as aspirações de renovação da retórica se revelarão ser devaneios antiquados.


Material didático
Princípios dos calhamaços, a arte de fazer livros grossos
I. O desenvolvimento da obra deve ser permanentemente entrecortado pela apresentação prolixa do respectivo plano.
II. Devem introduzir-se termos técnicos para conceitos que, excluindo essa única definição, não serão novamente usados no livro.
III. As diferenciações conceituais penosamente conseguidas no texto deverão ser apagadas nas notas às passagens correspondentes.
IV. Devem dar-se exemplos para aqueles conceitos que são tratados apenas no seu significado geral. Por exemplo, quando se falar de máquinas devem enumerar-se todos os seus tipos.
V. Tudo o que esteja previamente esclarecido acerca de um assunto deve ser corroborado pelo maior número possível de exemplos.
VI. Os complexos de problemas suscetíveis de representação gráfica deverão ser descritos por palavras. Por exemplo, em vez de desenhar uma árvore genealógica, devem expor-se e descrever-se todas as relações de parentesco.
VII. Os vários opositores que partilham dos mesmos argumentos devem ser refutados um a um.
 
A obra típica do erudito atual pede para ser lida como um catálogo. Mas quando chegaremos a escrever livros como catálogos? Quando a má qualidade do conteúdo contaminar assim a forma exterior, nascerá uma obra excelente, na qual se atribui um determinado valor a cada opinião, sem que, no entanto, essas opiniões sejam postas à venda.
 
A máquina de escrever só tornará estranha a caneta de tinta permanente na mão daqueles que escrevem quando a exatidão das soluções tipográficas for diretamente assimilada pela concepção dos seus livros. É provável que então sejam necessários novos sistemas capazes de produzir caracteres mais variáveis. Tais sistemas irão substituir a escrita manual pela ativação nervosa dos dedos que comandam teclas. Um período que, concebido em forma métrica, veja posteriormente o seu ritmo ser afetado num único lugar constitui a mais bela frase de prosa que se possa imaginar. Desse modo, um raio de luz penetra por uma pequena brecha na parede no laboratório do alquimista, fazendo resplandecer cristais, esferas e triângulos.
 
[...]
 
É proibido afixar cartazes!
A técnica do escritor em treze teses
I. Quem quiser lançar-se a escrever uma obra de fôlego, instalese comodamente e conceda a si próprio ao fim de cada dia de trabalho tudo aquilo que não prejudique a sua continuação.
II. Fale do que escreveu, se quiser, mas não leia nada a ninguém enquanto o trabalho estiver em curso. Toda a satisfação que dai possa retirar retardará o seu ritmo. Seguindo esse regime, o desejo crescente de comunicação acabará por ser um estimulo à conclusão.
III. Quanto às condições de trabalho, procure fugir à mediocridade da vida quotidiana. O meio sossego, acompanhado de ruídos pouco estimulantes, é degradante. Já o ruído de fundo de um estudo musical ou da confusão de vozes pode ser tão importante para o trabalho quanto o silêncio tangível da noite. Se este afina o ouvido interior, aqueles se tornam pedra de toque de uma dicção cuja riqueza consegue absorver em si até esses ruídos excêntricos.
IV. Evite servir-se do primeiro instrumento de trabalho que tenha à mão. E útil o apego pedante a determinados tipos de papel, canetas, tintas. Sem luxos, mas com a indispensável abundância desses utensílios.
V. Não deixe que nenhum pensamento passe por você incógnito, e use o seu bloco de notas com o mesmo rigor com que os serviços oficiais fazem o registro dos estrangeiros.
VI. Torne a sua caneta avessa à inspiração, e ela a atrairá a si com a força de um imã. Quanto mais refletir antes de passar a escrito uma intuição, tanto mais amadurecida ela se te oferecerá. A fala conquista o pensamento, mas a escrita domina-o.
VII. Nunca deixe de escrever pelo fato de não o ocorrer mais nada. Um dos mandamentos da honra literária é o de interromper a escrita apenas quando há que respeitar uma hora marcada (uma refeição, um encontro) ou quando damos o trabalho por terminado.
VIII. Preencha os momentos de falta de inspiração passando a limpo o que já escreveu. Entretanto, a inspiração despertará.
IX. Nulla dies sine linea  mas semanas sim.
X. Nunca de uma obra por acabada sem ter mergulhado nela uma vez mais, desde o serão até ao nascer do dia.
XI. Não escreva a conclusão do trabalho no lugar onde habitualmente trabalha. Ai, perderia a coragem de fazê-lo.
XII. Graus da elaboração da obra: pensamento estilo escrita. A finalidade do passar a limpo é a de que agora toda a atenção se concentre na caligrafia. O pensamento mata a inspiração, o estilo aprisiona o pensamento, a escrita recompensa o estilo.
XIII. A obra é a máscara mortuária da sua concepção. 

Treze teses contra os snobes
(O snobe no escritório particular da critica de arte. À esquerda um desenho de criança, à direita um fetiche. O snobe: Perante isto. todo Picasso pode fazer as malas!)
I. O artista faz uma obra.
O primitivo exprime-se por documentos.
II. A obra de arte só acessoriamente é um documento
Nenhum documento é, enquanto tal, uma obra de arte.
III.A obra de arte é uma obra-prima.
O documento tem função didática.
 IV. Os artistas aprendem o seu oficio com a obra de arte.
O público é educado perante os documentos.
V. As obras de arte distanciam-se umas das outras pela sua perfeição relativa.
Todos os documentos comunicam pelo lado dos conteúdos.
VI. Conteúdo e forma são uma só coisa na obra de arte: substância.
Nos documentos domina em absoluto o material.
VII. A substância é aquilo que foi comprovado.
A matéria é aquilo que foi sonhado.
 VIII. Na obra de arte, a matéria é um lastro de que a contemplação se liberta.
Quanto mais nos perdemos num documento, tanto mais denso ele se torna: matéria.
IX. Na obra de arte a lei da forma é decisiva.
No documento as formas só entram dispersamente.
X. A obra de arte é sintética: central de energia.
A fecundidade do documento pede: análise.
XI. A obra de arte potencializa-se na observação repetida.
Um documento só domina pela surpresa.
XII. A virilidade das obras reside no ataque.
A inocência serve de capa ao documento.
XIII. O artista parte à conquista de novas substâncias.
O homem primitivo entrincheira-se atrás dos materiais.
 
A técnica do critico em treze teses
I. O critico é um estrategista no combate literário.
II. Quem não souber tomar partido, que fique calado.
III. O critico não tem nada a ver com o exegeta de épocas artísticas passadas.
IV. A critica deve falar na linguagem dos artistas de variedades, porque os conceitos do cénacle são palavras de ordem. E é apenas nas palavras de ordem que ressoa o grito de guerra.
V. Será sempre preciso sacrificar a objetividade ao espírito partidário, se a causa pela qual se trava o combate merecê-lo.
VI. A critica é uma questão de moral. Se Goethe ignorou Hölderlin e Kleist, Beethoven e Jean Paul, isso tem menos a ver com o seu sentido artístico do que com a sua moral.
VII. Para o crítico, a instância superior são os seus colegas, e não o público. E muito menos a posteridade.
VIII. A posteridade ou esquece ou enaltece. Só o critico julga tendo o autor à sua frente.
IX. Polêmica é destruir um livro com base em poucas das suas frases. Quanto menos foi estudado, melhor. Só quem é capaz de destruir é capaz de criticar.
X. A autêntica polêmica ocupa-se de um livro de forma tão dedicada quanto um canibal cozinha um bebê.
XI. O critico não conhece o entusiasmo pela arte. Nas suas mãos, a obra de arte é a arma desembainhada nas batalhas do espírito.
XII. O essencial da arte do critico: cunhar chavões sem trair as ideias. Os chavões de uma critica medíocre vendem os pensamentos à moda, e ao desbarato.
XIII. O público nunca pode ter razão, e apesar disso deve sentir sempre que é representado pelo critico.

Número 13
(...)
Le remploiement vierge du livre, encore, prête à
un sacrifice dont saigna la tranche rouge des
anciens tomes; l'introdution d'une arme, ou
coupepapier, pour établir la prise de possession.
Stéphane Mallarmé
 [Le «livre»]
[...]
Relógios e joias de ouro
(...)

La tête, avec lamas de sa crinière sombre
Et de ses bijoux précieux,


Sur la table de nuit, comme une renoncule,
Repose’. Baudelaire8

8 Linhas do poema Une martyre d’As Flores do Mal. Na tradução de Maria Gabriela Llansol:  

A cabeça, num misto de cabeleira escura
E de jóias preciosas de ornato,


Sobre a mesa-de-cabeceira, como uma flor,
Repousa...

(Baudelaire, As Flores do Mal. Lisboa, Relógio d’Água, 2003, p. 253).

[...]
Alarme contra incêndio

A ideia que se tem da luta de classes pode ser enganadora. Não se trata de uma prova de força em que se tenha de decidir a questão de saber quem ganha e quem perde; não se trata de um combate depois do qual o vencedor ficará bem, e o vencido, mal. Pois, quer a burguesia ganhe, quer ela perca essa luta, ela está condenada a sucumbir às contradições internas que se tornarão fatais ao longo da sua evolução. A questão é apenas a de saber seela se afundará por si própria ou pela ação do proletariado. A manutenção ou o fim de uma evolução cultural com três mil anos serão decididos pela resposta a essa pergunta. A história nada sabe sobre a imperfeita infinitude simbolizada nos dois gladiadores eternamente em luta. O verdadeiro político só faz projetos a prazo. E se a eliminação da burguesia não for concretizada até um momento rapidamente calculável da evolução econômica e técnica (...), então tudo está perdido. É preciso cortar o rastilho antes que a centelha chegue à dinamite. Intervenção, risco e rapidez do político são coisas técnicas – não cavaleirescas.

Recordações de viagem

Atrani. A escadaria barroca, curva e de leve inclinação até a igreja. A grade atrás da igreja. As ladainhas das velhas na hora das ave-marias: entrada na escola, primeira classe da morte. Quando nos voltamos, a igreja confina com o mar, como o próprio Deus. Todas as manhãs a era cristã desponta no rochedo, mas entre as muralhas, lá embaixo, a noite continua a dividir-se pelos quatro velhos bairros romanos. Ruelas como poços de ventilação. Na praça do mercado, uma fonte. Ao cair da tarde, mulheres à sua volta. Depois, a solidão: murmúrio arcaico da água.

(...)
Moscou, catedral de S. Basílio. Aquilo que a Madonna bizantina tem nos braços é apenas um boneco de madeira em tamanho natural. A sua expressão de dor diante de um Cristo cuja condição de criança é apenas sugerida, apenas representada, é mais intensa do que a que ela poderia mostrar com uma imagem autêntica do menino.

Boscotrecase. Nobreza de um bosque de pinheiros: o seu teto forma-se sem entrelaçamentos.

Nápoles, Museu Nacional. Nos seus sorrisos, estátuas arcaicas mostram a quem as observa a consciência do corpo, tal como uma criança nos traz as flores que acabou de colher, soltas e dispersas; a arte mais tardia, pelo contrário, marca de forma mais acentuada as expressões do rosto, como o adulto que tece com ervas cortantes o ramo destinado a durar.

Florença, batistério. No portal, a Spes’ (Esperança) de Andrea Pisano. Está sentada e ergue, desesperada, os braços para um fruto que não alcança. E no entanto é alada. Nada de mais verdadeiro.

Andrea Pisano, Spes (Florença)

Céu. Saí em sonhos de uma casa e olhei o céu noturno. Dele descia um brilho muito forte. É que, estando sem estrelas, estavam nele fisicamente presentes as figuras segundo as quais agrupamos as estrelas em signos. Um leão, uma virgem, uma balança e muitas outras, em densas aglomerações de astros, olhavam fixamente para a Terra cá em baixo. Da Lua, nem rastro.

Oculista

No verão são as pessoas gordas que dão nas vistas, no inverno as magras.

Na primavera, em dias de sol claro, damos pelas folhas novas, nos de chuva fria saltam-nos à vista os ramos ainda sem folhas.

Pela posição dos pratos e das xícaras, dos copos e das comidas, aquele que ficou apercebe-se de como decorreu um serão em que se receberam hóspedes.

Princípio básico da sedução: multiplicar-se por sete; colocar-se, desdobrado em sete, em volta daquela que se deseja.

O olhar é a última gota do ser humano. 

(...)

Policlínica

O autor coloca os pensamentos sobre a mesa de mármore do café. Longa meditação: aproveita o tempo em que o vidro – a lente com a qual examina o doente – ainda não está à sua frente. Depois, vai retirando os seus instrumentos: caneta, lápis e cachimbo. A multidão dos frequentadores, disposta em anfiteatro, constitui o seu público clínico. O café, servido por mão solícita e assim saboreado, submete o pensamento aos efeitos do clorofórmio. Aquilo em que pensa tem tanto a ver com a coisa em si como o sonho do narcotizado com a intervenção cirúrgica. Fazem-se incisões nas cuidadas linhas da caligrafia, o operador desloca acentos no seu interior, cauteriza as protuberâncias verbais e insere, como se fosse uma costela de prata, uma palavra estrangeira. Por fim, costura tudo com os pontos finos da pontuação e paga ao criado, seu assistente, em numerário.

Espaços livres para alugar

A estultícia daqueles que lamentam o declínio da crítica. Porque a hora da crítica já há muito tempo que passou. A crítica é uma questão de distância certa. O seu elemento é o de um mundo em que o que importa são as perspectivas e os pontos de vista, e em que ainda era possível assumir uma posição. Entretanto, as coisas tornaram-se excessivamente agressivas para a sociedade humana. A imparcialidade’, o olhar livre são mentiras, se não mesmo a mais ingênua expressão da pura incompetência. O olhar hoje mais essencial, o olho mercantil que penetra no coração das coisas, chama-se propaganda. Esta arrasa o espaço livre da contemplação e aproxima tanto as coisas, coloca-as tão debaixo do nariz quanto o automóvel que sai da tela de cinema e cresce, gigantesco, tremeluzindo em direção a nós. E do mesmo modo que o cinema não oferece móveis e fachadas a uma observação crítica completa, mas dá apenas a sua espetacular, rígida e repentina proximidade, também a propaganda autêntica transporta as coisas para primeiro plano e tem um ritmo que corresponde ao de um bom filme. Com isso, foi-se de vez a objetividade, e diante das imagens hiperdimensionais nas paredes das casas, onde o Chlorodont e o Sleipnir estão ao alcance das mãos de gigantes, o sentimentalismo curado liberta-se à americana, como aquelas pessoas a quem já nada move nem comove, e que aprendem novamente a chorar no cinema. Mas para o homem da rua, aquilo que dele aproxima assim as coisas, o que estabelece o contato decisivo com elas, é o dinheiro. E o crítico pago, que manipula o valor dos quadros na galeria de arte do marchand, sabe sobre eles coisas que, se não são melhores, são certamente mais importantes do que as que sabe o amador de arte que os vê na vitrine. Solta-se do tema da obra um calor que dá asas ao seu sentimento. O que é que torna, afinal, a propaganda tão superior à crítica? Não será aquilo que diz a escrita elétrica e móvel do anúncio – mas a poça de fogo que a reflete no asfalto. 

Equipamento de escritório

O gabinete do chefe está abarrotado de armas. Aquilo que impressiona quem entra, porque parece conforto, é de fato um arsenal escondido. O telefone em cima da mesa está sempre a tocar. Interrompe-nos no momento mais importante, e dá ao nosso interlocutor tempo para pensar na resposta que lhe convém. Entretanto, alguns farrapos da conversa mostram como aqui se trata de muitos assuntos bem mais importantes do que aquele que viemos resolver. Dizemo-lo a nós próprios, e pouco a pouco começamos a descrer do nosso ponto de vista. Começamos a perguntar-nos de quem se estará falando ali, apercebemo-nos, assustados, de que o interlocutor parte no dia seguinte para o Brasil e, logo depois, de que ele está de tal modo solidário com a firma que a enxaqueca de que se queixa ao telefone é apresentada como uma lamentável perturbação dos negócios, e não como uma oportunidade de que se poderia tirar proveito. Chamada ou não, a secretária acaba por entrar. É muito bonita. E se o patrão há muito pôs as cartas na mesa quanto aos seus encantos, ou pela indiferença, ou pela admiração, o novato a observará mais que uma vez, e ela sabe bem como ganhar a aprovação do chefe. O seu pessoal atarefa-se, pondo sobre a mesa vários ficheiros nos quais o visitante sabe estar incluído sob várias rubricas. Começa a ficar cansado. Mas o outro, que tem a luz atrás de si, adivinha com satisfação o que se passa, olhando para os traços do rosto do interlocutor, ofuscado de tanta luz. Também a poltrona faz o seu efeito: uma pessoa fica ali sentada afundando-se como no dentista, e acaba por aceitar o penoso procedimento como se fosse a ordem natural das coisas. Mais tarde ou mais cedo, seguir-se-á também a esse tratamento uma liquidação.
[...]
Fechado para obras!

Em sonhos, pus fim à vida com uma espingarda. Quando soou o tiro não acordei, mas vi-me durante algum tempo já cadáver. Só depois acordei.

Restaurante automático Augias’

Esta é a mais séria objeção ao estilo de vida do solteirão: toma as refeições sozinho. Comer só é meio caminho andado para nos tornarmos insensíveis e rudes. Quem se habitua a isso tem de viver de forma espartana, para não se degradar. Os eremitas alimentavam-se frugalmente, por esta, se não por outra razão. Porque só em comunidade se faz justiça à comida, que quer ser partilhada e repartida para fazer proveito. Quem quer que fosse que o recebesse antigamente, um mendigo à mesa enriquecia qualquer refeição. O importante é repartir e dar, não a conversação social à volta da mesa. Mas, por outro lado, é surpreendente como a convivência se torna crítica sem refeição. Quando se oferece alguma coisa para comer e beber nivelam-se e unem-se as pessoas. O conde de Saint-Germain mantinha-se em jejum diante de mesas fartas, e isso era suficiente para dominar a conversação. Mas quando todos ficam de estômago vazio, surgem logo as rivalidades e os seus conflitos.

(...)

Primeiros socorros técnicos

Nada de mais mísero do que uma verdade que se exprime tal como foi pensada. Em tais casos, a sua passagem a escrito nem sequer chega a ser uma má fotografia. E a verdade recusa-se também (como uma criança, como uma mulher que não nos ama) a ficar quieta e com expressão amável diante da objetiva da escrita depois de nos termos acocorado sob o pano preto. Quer ser afugentada de súbito e de rompante, arrancada à autocontemplação por um tumulto, por uma música, por gritos de socorro. Quem iria contar os sinais de alarme com que está equipada a alma do verdadeiro escritor? E escrever’ mais não é do que pô-los a funcionar. Então, a doce odalisca assusta-se, pega na primeira coisa que lhe vem à mão no caos do seu boudoir, a nossa caixa craniana, veste-se dela e assim, quase irreconhecível, foge de nós e cai no meio do povo. Mas terá de ser muito bem constituída, de saudável compleição para se mostrar assim em público, disfarçada, acossada, mas vitoriosa e amável.

(...)

Consultor fiscal

(...)

De fato, em nenhuns outros como nesses documentos o capitalismo se manifesta tão ingênuo na sua solene seriedade. O que não falta aqui são crianças inocentes a brincar em volta de algarismos, deusas segurando tábuas da lei, heróis maduros enfiando a espada na bainha perante unidades monetárias – um mundo em si, a arquitetura da fachada do inferno. Se Lichtenberg tivesse vivido em época de grande difusão do papel-moeda, o plano dessa obra não lhe teria escapado.

Proteção legal gratuita

Editor: As minhas expectativas saíram gravemente frustradas. O que o senhor escreve não tem qualquer efeito sobre o público, não atrai mesmo nada. E olhe que eu não poupei no arranjo gráfico. Arruinei-me com os custos da publicidade. O senhor sabe como continuo a apreciá-lo. Mas não poderá levar-me a mal por agora a minha consciência comercial também se fazer sentir. Se há alguém que faz o que pode pelos seus autores, sou eu. Mas, afinal, também eu tenho de pensar em mulher e filhos. Naturalmente que não estou a insinuar que os prejuízos dos últimos anos são culpa sua. Mas o sentimento de amarga desilusão, esse ficará. De momento não posso de forma alguma continuar a dar-lhe o meu apoio.

Autor: (...) Podia muito bem ter escolhido uma profissão honesta, como o seu pai. Mas não, a vida é hoje, e amanhã logo se vê – a juventude é assim. Pode continuar a entregar-se a esses seus hábitos. Mas evite fazer-se passar por um comerciante honrado. Não ponha esse ar inocente se esbanjou tudo; não venha com a história do seu dia de oito horas de trabalho e da noite em que também quase não pregou olho. Uma coisa acima de tudo, meu filho, sê fiel e verdadeiro!’ E não faça cenas com os seus números, senão ainda o põem na rua.

[...]

Agência de apostas

A existência burguesa é o regime dos assuntos privados. Quanto mais importante e cheio de consequências for um modo de comportamento, tanto mais aquela o dispensa de controle. Fé política, situação financeira, religião – tudo isso quer esconder-se, e a família é a construção podre e sinistra em cujos cubículos e recantos se instalaram os mais sórdidos instintos. O filisteísmo proclama a privatização total da vida amorosa. Assim, fazer a corte à mulher transformou-se num processo mudo e crispado a sós, e esse modo de fazer a corte, totalmente privado, desvinculado de qualquer responsabilidade, é o que há de realmente novo no flirt. Contra isso, o tipo proletário e o feudal assemelham-se pelo fato de, nesse processo, terem de vencer não tanto a mulher, mas os seus concorrentes. Mas isso é um sinal de muito mais profundo respeito pela mulher, e não apenas da sua liberdade; significa estar disposto a seguir a sua vontade sem lhe perguntar opinião. Feudal e proletária é a transferência dos momentos eróticos para a esfera pública. Mostrar-se com uma mulher nesta ou naquela ocasião pode significar mais do que dormir com ela. E, consequentemente, também no casamento aquilo que conta não é a estéril harmonia dos cônjuges: tal como o filho que nasce, também a força espiritual do casamento se manifesta como efeito excêntrico das suas lutas e da sua concorrência. 

[...]

Proibida a entrada a mendigos e vendedores ambulantes!

Todas as religiões tiveram grande respeito pelos mendigos, porque estes são a prova de que o espírito e a regra, as consequências e o princípio falham vergonhosamente numa coisa tão singela e banal quanto sagrada e vivificante como era a esmola.

Queixamo-nos dos mendigos nos países do sul e esquecemo-nos de que a insistência com que se nos colam é tão legítima quanto a obstinação do estudioso perante um texto difícil. Não há sombra de hesitação, não há indício, ainda que imperceptível, de vontade ou reflexão que eles não leiam na nossa fisionomia. A telepatia do cocheiro que, com o seu chamamento, nos vem realmente mostrar que não diríamos não a uma voltinha, e a do vendedor que, do meio da sua quinquilharia, mostra o único colar ou camafeu que nos poderia atrair têm a mesma natureza.

Para o planetário

Se, como Hillel24 fez em tempos para a doutrina judaica, quiséssemos formular com a maior concisão, assentando num só pilar, a doutrina da Antiguidade, teríamos de chegar à fórmula: A Terra pertencerá apenas àqueles que vivem das forças do cosmos. Nada distingue mais o homem antigo do moderno do que a sua entrega a uma experiência cósmica que este último mal conhece. O declínio dessa faculdade anuncia-se já no florescimento da astronomia no início da Idade Moderna. Kepler, Copérnico, Tycho Brahe não foram certamente movidos apenas por impulsos científicos. Apesar disso, há na acentuação exclusiva de uma ligação ótica com o universo, a que a astronomia a breve trecho levou, um sinal daquilo que estaria para vir. A relação antiga com o cosmos processava-se de outro modo: pelo êxtase. De fato, o êxtase é a experiência pela qual nos asseguramos do que há de mais próximo e de mais distante, e nunca de uma coisa sem a outra. Mas isso significa que só em comunidade o homem pode comunicar com o cosmos em êxtase. A desorientação que ameaça os modernos vem-lhes de considerarem essa experiência irrelevante e desprezível e de a verem apenas como vivência contemplativa individual em belas noites estreladas. Não, ela voltará sempre a impor-se, e então nem povos nem gerações lhe escaparão, como se viu, da forma mais terrível, na última guerra, que foi uma tentativa de religação, nova e inaudita, com as forças cósmicas. Massas humanas, gases, energias elétricas foram lançados em campo aberto, correntes de alta frequência atravessaram as paisagens, novos astros apareceram no céu, o espaço aéreo e as profundezas dos mares ressoavam de hélices, e por toda parte se escavavam fossas sacrificiais na terra-mãe. Esse grande assédio feito ao cosmos consumou-se pela primeira vez à escala planetária, isto é, no espírito da técnica. Mas como a avidez de lucro da classe dominante pensava satisfazer a sua vontade à custa dela, a técnica traiu a humanidade e transformou o tálamo nupcial num mar de sangue. A dominação da natureza, dizem os imperialistas, é a finalidade de toda técnica. Mas quem confiaria num mestre da palmatória que declarasse como finalidade da educação a dominação das crianças pelos adultos? Não será a educação, antes de mais nada, a indispensável ordenação das relações entre as gerações, e, portanto, se quisermos falar de dominação, a dominação dessas relações geracionais, e não das crianças? Assim também a técnica não é dominação da natureza: é a dominação da relação entre a natureza e a humanidade. É certo que os homens, enquanto espécie, estão há dezenas de milhares de anos no fim da sua evolução; mas a humanidade, enquanto espécie, está no começo. A técnica organiza para ela uma physis na qual o seu contato com o cosmos se constitui de forma nova e diferente do que acontece com os povos e as famílias. Basta lembrar a experiência com velocidades por meio das quais a humanidade se prepara agora para viagens vertiginosas ao interior do tempo, para deparar aí com ritmos que servirão para fortalecer os doentes, como antes o faziam em altas montanhas ou nos mares do Sul. Os lunaparques são uma prefiguração dos sanatórios. O terror da autêntica experiência cósmica não se liga àquele minúsculo fragmento de natureza que nos habituamos a designar de natureza. (...) O poder do proletariado é o índice do seu processo de cura. Se a sua disciplina não o penetrar até a medula, nenhum argumento pacifista o salvará. O ser vivo só supera a vertigem da destruição no êxtase da procriação. 

24 Hillel: sábio judeu que viveu na segunda metade do último século antes de Cristo e aproximadamente no primeiro quartel do século I da nossa era. Fundador e grande mestre da exegese bíblica e primeiro nome importante da tradição talmúdica do judaísmo. 

 

Infância berlinense: 1900

(versão de última mão)
 

Oh, coluna da vitória, tostadinha, polvilhada

com o açúcar invernal dos dias da infância.1

 

1 A epígrafe resultou de alguns versos escritos por Benjamin sob o efeito do haxixe, reproduzidos na íntegra por G. Scholem no posfácio à edição de Berliner Chronik [Crônica Berlinense], Frankfurt/Main, 1970, p. 132.

 
 

<Palavras prévias> 

(...)

(...) Procurei, pelo contrário apoderar-me das imagens nas quais se evidencia a experiência da grande cidade por uma criança da classe burguesa.

Não me custa acreditar que tais imagens estão destinadas a ter um destino muito próprio. Elas não estão ainda presas a formas pré-definidas como aquelas que se oferecem há séculos, com referência ao sentimento da natureza, às recordações de uma infância passada no campo. Pelo contrário, as imagens da minha infância na grande cidade talvez estejam predestinadas, no seu núcleo mais íntimo, a antecipar experiências históricas posteriores.

(...)

Panorama imperial

(...)

No Panorama Imperial não havia música, (...). Havia um efeito insignificante, de fato perturbador, que a mim me parecia superior à música. Era um toque de campainha, que soava poucos segundos antes de a imagem desaparecer num salto, para, depois de um intervalo, aparecer a seguinte. E de cada vez que ela soava, a melancolia da despedida impregnava os montes até ao sopé, as cidades com as suas janelas cintilantes, as estações com o seu fumo amarelado, as vinhas até a mais ínfima folha. Convencia-me de que era impossível esgotar dessa vez o esplendor da paisagem. E depois vinha o propósito, nunca cumprido, de voltar no dia seguinte. Mas antes de eu me decidir toda a construção, da qual apenas um tapume de madeira me separava, estremecia; a imagem vacilava na sua pequena moldura para desaparecer rapidamente da minha vista, deslocando-se para a esquerda.

As artes que aqui perduraram morreram com o século XX.

(...) 

O telefone

A explicação pode estar na construção dos aparelhos ou na memória – mas o certo é que o ruído das primeiras conversas telefônicas ecoa no meu ouvido de modo muito diferente das atuais. Eram ruídos noturnos. Nenhuma musa os transmitia. A noite de onde vinham era a mesma que antecede qualquer verdadeiro nascimento. E era a voz de um recém-nascido aquela que cochilava nos aparelhos. Nesse exato momento o telefone tornou-se o meu irmão gêmeo. Pude assistir à superação das humilhações dos seus primeiros anos. Pois, numa altura em que os lustres, os guarda- fogos e as palmeiras de interior, os consoles, as mesinhas redondas e as balaustradas das varandas, que antigamente se destacavam nas salas de entrada, já estavam havia muito envelhecidos e esquecidos, o aparelho, qual herói lendário isolado no desfiladeiro da montanha, deixando para trás o corredor, fazia a sua entrada real nas salas aligeiradas e mais claras, habitadas por uma geração mais nova. Para esta, ele era o consolo da solidão. Para os desesperados que queriam deixar este mundo imperfeito, ele brilhava com a luz da última esperança. Partilhava a cama com os abandonados. Agora que todos esperavam pela sua chamada, a voz estridente que lhe viera do exílio soava mais quente e abafada.

Muito poucos dos que usam o aparelho conhecem a devastação que o seu aparecimento causou no seio das famílias. O toque que soava entre as duas e as quatro, sempre que um colega meu desejava falar comigo, era um sinal de alarme que punha em perigo não apenas a sesta dos meus pais, mas também a época em pleno centro da qual eles se lhe entregavam. Em regra seguiam-se divergências de opinião com a companhia, para já não falar das ameaças e imprecações que o meu pai soltava contra os serviços de reclamações. Mas as suas verdadeiras orgias vinham-lhe da manivela, à qual se entregava durante minutos, até se esquecer de si. A sua mão transformava-se então num dervixe dominado pelo transe. O meu coração palpitava, tinha a certeza de que nesses casos a funcionária corria sérios riscos de apanhar uma bofetada pelo seu desleixo.

Nesse tempo, o telefone lá estava, desfigurado e enjeitado, entre o cesto da roupa suja e o gasômetro, num canto do corredor das traseiras, a partir do qual o seu toque ampliava os sobressaltos da casa de Berlim. E quando eu, a muito custo senhor dos meus sentidos, lá chegava depois de muito tatear ao longo daquele tubo escuro para pôr fim à rebelião, arrancando os dois auscultadores, pesados como halteres, e metendo a cabeça entre eles, ficava sem apelo nem agravo entregue à voz que falava do outro lado. Nada podia atenuar o poder com que ela atuava sobre mim. Impotente, deixava que ela me anulasse a noção do tempo, dos meus propósitos e deveres. E tal como o medium obedece à voz que, do lado de lá, o domina, eu me rendia à primeira proposta que me chegava através do telefone.

(...)

Tiergarten7 

7 Grande parque no centro de Berlim. 

Não há nada de especial em não nos orientarmos numa cidade. Mas perdermo-nos numa cidade, como nos perdemos numa floresta, é coisa que precisa de se aprender. Os nomes das ruas têm então de falar àquele que por elas deambula como o estalar de ramos secos, e as pequenas vielas no interior da cidade mostrar-lhe a hora do dia com tanta clareza quanto um vale na montanha. Aprendi tarde essa arte; ela preencheu o sonho cujos primeiros vestígios foram os labirintos nos mata-borrões dos meus cadernos. Não, os primeiros não, porque antes deles houve um que lhes sobreviveu. (...) Desde cedo percebi que há qualquer coisa de especial nesse parque labiríntico; percebi-o pelo terreiro largo e banal que em nada deixava adivinhar que aqui, a poucos passos do caminho dos fiacres e carruagens, dormita a parte mais preciosa do parque.

Chegou-me cedo um sinal disso. (...)

Mais tarde descobri novos recantos; sobre outros vim a saber mais coisas. Mas nenhuma moça, nenhuma vivência, nenhum livro foram capazes de me dizer alguma coisa de novo sobre este. (...) Os seus passos ecoavam no asfalto que pisava. O gás que iluminava o pavimento lançava sobre este chão uma luz ambígua. As pequenas escadas, os alpendres sustentados por colunas, os frisos e as arquitraves das villas do Tiergarten, tudo isso era pela primeira vez por nós tomado à letra. Acima de tudo as escadas, ainda as mesmas, com as suas vidraças, se bem que no interior das habitações muita coisa tivesse mudado. Sei ainda os versos que, depois da escola, preenchiam os intervalos dos batimentos do meu coração quando fazia uma paragem ao subir a escada. Surgiram-me de uma luz difusa que vinha da vidraça onde uma mulher, pairando como a Madonna da Capela Sistina, saía do nicho com uma grinalda nas mãos. Aliviando com os polegares as correias da pasta nos ombros, li: O trabalho é a honra do cidadão / A bênção é o prêmio do esforço”. Lá em baixo, a porta fechava-se com um suspiro, como um fantasma que descesse ao túmulo. Lá fora talvez chovesse. Uma das vidraças coloridas estava aberta, e eu continuava a subir a escada ao ritmo das gotas.

Entre as Cariátides e os Atlantes, os putti e as Pomonas que nessa altura olhavam para mim, os que mais me atraíam eram os daquela estirpe poeirenta dos senhores dos umbrais, que guardam a entrada na existência ou numa casa. Porque esses sabem da arte da espera. Por isso, era-lhes indiferente esperar por um estranho, pelo regresso dos antigos deuses ou pela criança que, trinta anos antes, passara pelos seus pés de pasta às costas. Sob o seu signo, o velho bairro ocidental de Berlim transformava-se no lugar antigo de onde sopram os ventos de poente para os navegantes que sobem lentamente o Landwehrkanal com os seus barcos carregados das maçãs das Hespérides, para irem atracar junto à Ponte de Hércules. E, tal como na minha infância, lá estavam a Hidra e o Leão de Nemeia nos arbustos que cercam a Grande Estrela.9

Grande Estrela”: Großer Stern, praça que resulta da confluência de ruas no Tiergarten, e que é uma réplica da Place de l’Étoile em Paris.

Atrasado

O relógio no pátio da escola parecia estar danificado por culpa minha. Marcava a hora atrasado”. E ao corredor chegava, vindo das salas de aula por onde eu passava, o murmúrio de misteriosas conversações. Do lado de lá das portas, professores e alunos eram amigos. Ou então ficava tudo em silêncio, como se esperassem alguém. Imperceptivelmente, levei a mão à maçaneta da porta. O sol banhava de luz o ponto onde me encontrava. E eu, para entrar, profanei o meu dia ainda a nascer. Ninguém parecia conhecer- me, nem mesmo ver-me. Tal como o diabo ficou com a sombra de Peter Schlemihl10, também o professor reteve o meu nome no começo da aula. Eu já não ia ser chamado. Trabalhei com os outros em silêncio até o toque da campainha. Mas não havia nisso nada de reconfortante.

10 Protagonista da história do escritor romântico Adelbert von Chamisso (1781-1838) Peter Schlemihls wundersame Geschichte, que vende a sombra ao diabo (tradução portuguesa: A História Fabulosa de Peter Schlemihl, trad. e ensaio de João Barrento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2005).

Livros para rapazes

Os meus preferidos vinham da biblioteca da escola. Eram distribuídos nas primeiras classes. O diretor de turma dizia o meu nome, e o livro começava o seu trajeto sobre as carteiras, uns passavam-no ao seguinte, ou então pairava sobre as cabeças até chegar àquele que o tinha pedido, neste caso eu. As folhas traziam as marcas dos dedos que as tinham virado. O cordão que rematava a encadernação e sobressaía em cima e em baixo estava sujo. Mas a lombada é que teve de suportar mais maus-tratos, e por isso as duas capas estavam desencontradas e o topo de corte do livro formava escadinhas e terraços. Mas das suas folhas pendiam, como o verão tardio dos ramos das árvores, os ténues fios de uma rede na qual em tempos, quando aprendi a ler, me deixei enredar.

O livro estava em cima de uma mesa demasiado alta para mim. Eu tapava os ouvidos enquanto lia. Mas já tinha ouvido contar histórias assim em silêncio. Não as do meu pai, isso não. Mas às vezes, no inverno, quando estava à janela no quarto aquecido, o redemoinho de neve a cair lá fora me contava histórias em silêncio. É verdade que nunca consegui perceber bem o que ele me contava, porque muita coisa nova se metia sem parar e em grande quantidade entre a matéria já conhecida. Mal eu me tinha ligado mais intimamente a um grupo de flocos, percebia que ele tinha de me entregar a um outro que de repente o invadia. Mas agora tinha chegado o momento de seguir no redemoinho das letras as histórias que me tinham fugido à janela. As terras distantes que nelas encontrava envolviam-se, como os flocos, em jogos familiares umas com as outras. E como a distância, quando neva, já não nos leva para longe, mas para dentro, Babilônia e Bagdá, Akko e Alasca, Tromsö e o Transvaal estavam todas dentro de mim. O ar ameno dos calhamaços que a impregnava insinuava-se, com o seu sangue e o seu verniz, tão irresistivelmente no meu coração que este permanecia para sempre fiel a esses volumes usados.

Ou seria uma fidelidade a outros, mais velhos e mais difíceis de encontrar? Àqueles livros maravilhosos que só me era dado voltar a ver uma vez em sonhos? Que títulos tinham? Eu não sabia, só sabia que eram livros há muito desaparecidos, que eu nunca mais tinha encontrado. Mas agora estavam num armário que eu, ao acordar, sabia nunca ter visto antes. No sonho, o armário parecia-me antigo e bem conhecido. Os livros não estavam arrumados de pé, mas deitados, e no canto das tempestades. Trovejava neles. Se abrisse um, seria levado ao seio da trovoada, onde um texto instável e encoberto se nublava, prenhe de cores. Eram cores borbulhantes e fugidias, que iam sempre dar a um roxo que parecia vir das entranhas de um animal abatido no matadouro. Inomeáveis e pesados de sentido como essa cor roxa eram os títulos, cada um dos quais me parecia mais estranho e ao mesmo tempo mais familiar do que o anterior. Mas antes de me poder apoderar de qualquer um deles já estava acordado, sem ter nem sequer tocado em sonhos nos meus velhos livros de rapaz.

A meia

(...)

Tinha de abrir caminho até o seu canto mais escondido para encontrar o montinho das minhas meias, enroladas e viradas à maneira tradicional. Cada par parecia uma pequena bolsa. Nada me dava mais prazer do que enfiar a mão por elas adentro, o mais fundo possível. Não o fazia para lhes sentir o calor. O que me atraía para aquelas profundezas era antes o que eu trazia comigo, na mão que descia ao seu interior enrolado. Depois de a ter agarrado com a mão fechada e ter confirmado a minha posse daquela massa de lã macia, começava a segunda parte do jogo, que trazia consigo a revelação. Agora, tentava tirar para fora da bolsa de lã o que trazia comigo. Puxava, puxava, até que qualquer coisa de perturbador acontecia: eu tinha retirado o que trazia comigo, mas a bolsa onde isso estava já não existia. Nunca me cansei de pôr à prova esse exercício. Ele ensinou-me que a forma e o conteúdo, o invólucro e o que ele envolve, são uma e a mesma coisa. E levou-me a extrair da literatura a verdade com tanto cuidado quanto a mão da criança ia buscar a meia dentro da sua bolsa’.

 A Mummerehlen

Numa velha canção infantil aparece a Muhme Rehlen21. Como a palavra Muhme não me dizia nada, essa criatura transformou-se para mim num fantasma: a Mummerehlen.

Em boa hora aprendi a me disfarçar nas palavras, que de fato eram nuvens. O dom de reconhecer semelhanças não é mais do que uma fraca reminiscência da primitiva necessidade de nos tornarmos semelhantes e nos comportarmos de modo correspondente. As palavras exerciam sobre mim esse poder. Não aquelas que me tornavam igual às crianças exemplares, mas as que me aproximavam de casas, móveis, peças de roupa. Eu desfigurava- me pela semelhança com tudo o que existia à minha volta. Como um molusco na sua concha, vivia no século XIX, um tempo que agora me parece oco, como uma concha vazia. Levo-a ao ouvido, e que ouço? Não ouço o fragor de artilharia nem a música de baile de Offenbach, nem sequer os cascos dos cavalos na calçada ou as fanfarras da guarda na parada. Não, o que eu ouço é o ruído breve do antracito quando cai do recipiente de folha no fogão de ferro fundido, é o estalo seco que acompanha o acender da chama na camisa do candeeiro a gás, é o zumbir da chaminé no aro de latão da lanterna, quando um carro passa na rua. E há outros ruídos, como o chocalhar das chaves no cesto, as campainhas das portas da frente e das traseiras; e também uma canção infantil.

Vou contar-te a história antiga / da Mummerehlen amiga... A canção está desfigurada; mas é todo o mundo desfigurado da infância que nela se encontra. A Muhme Rehlen que em tempos nela viveu já tinha desaparecido quando me contaram a história pela primeira vez. E a Mummerehlen ainda era mais difícil de descobrir. Durante muito tempo ela estava para mim no padrão de losangos do prato fumegante de papas de cevadinha ou de tapioca. Eu ia comendo lentamente, para no fim encontrá- la no fundo do prato. Não sei o que me contaram dela – ou o que me quiseram contar. Ela própria nunca me confiou nada. Talvez quase nem tivesse voz. O seu olhar caía com os flocos indecisos da primeira neve. Se me tivesse atingido uma única vez, isso teria sido uma consolação para toda a vida.

 21 Muhme é uma palavra arcaica que significa tia; Rehlen é nome próprio.

Um anjo de Natal

(...) Depois, um belo dia, ela rebentava, e de dentro do embrulho saíam brinquedos, nozes, palhinhas e adornos para a árvore: era a quermesse de Natal. E com tudo isso saía também outra coisa: a pobreza. Tal como as maçãs e as nozes se podiam mostrar com um pouco de ouropel ao lado do marzipã no prato natalício, assim também se viam pessoas pobres ao lado da lametta e das velas coloridas nos melhores bairros. Os ricos mandavam os filhos comprar ovelhinhas de lã aos filhos dos pobres, ou dar-lhes a esmola que eles próprios, por pudor, não eram capazes de dar pessoalmente. (...) Finalmente, o prazo expirava e chegava aquele dia que relembro aqui a partir da minha memória dos mais recuados.

[...]

A Lua

A luz que escorre da Lua não se destina ao cenário da nossa existência diurna. O espaço que por ela é iluminado de forma indistinta parece pertencer a uma contra-Terra ou a uma Terra paralela, que não é aquela que o satélite Lua segue, mas antes aquela que se transformou ela própria num satélite da Lua. O seu amplo peito, cuja respiração era o tempo, já não se mexe; a criação regressou finalmente a casa, e agora pode voltar a pôr o véu de viúva que o dia lhe tinha roubado. O pálido raio que entrava no meu quarto através das venezianas deu-me a entender isso. O meu sono ficou inquieto; a Lua retalhava-o com o seu ir e vir. Quando ela me inundava o quarto e eu acordava, eu ficava sem teto, porque ele parecia querer abrigá-la só a ela. A primeira coisa sobre a qual caía o meu olhar eram as duas bacias de cor creme do lavatório. Durante o dia nem me lembrava de olhar para elas. Mas à luz da Lua a barra azul em volta de toda a borda superior da bacia irritava-me. Simulava uma fita de tecido passando por uma bainha. De fato, a borda das bacias tinha o franzido das golas. Entre as duas estavam os jarros bojudos, da mesma porcelana e com o mesmo padrão de flores. Quando eu descia da cama, eles tiniam, e esse tinido propagava-se, sobre o revestimento de mármore da mesa do lavatório, às taças e tigelas. Por um lado, ficava contente por ouvir um sinal de vida – ainda que fosse apenas o eco do meu próprio – vindo do ambiente noturno; mas por outro, era um sinal em que não podia confiar, e que só esperava, como um falso amigo, pelo melhor momento para me enganar. E isso acontecia quando eu pegava na garrafa e a levantava para deitar água num copo. O borbulhar desta água, o ruído com que eu pousava, primeiro a garrafa, depois o copo – tudo soava aos meus ouvidos como uma repetição. Pois todos os lugares daquela Terra paralela para onde eu me desterrara pareciam estar ocupados pelo passado. Tinha de me conformar com a situação. E quando voltava para a cama era sempre cheio de medo de me encontrar já estendido nela.

Só perdia completamente o medo quando sentia de novo o colchão nas costas. Então adormecia. A luz da Lua saía lentamente do meu quarto. E muitas vezes este já estava escuro quando eu acordava pela segunda ou terceira vez. A mão era a primeira a ter de arriscar o mergulho por cima da beira da trincheira em que tinha encontrado abrigo contra o sonho. Quando depois a luz trêmula do candeeiro de noite a apaziguava a ela e a mim, eu chegava à conclusão de que do mundo nada mais restava senão uma única e insistente pergunta: por que razão existem coisas no mundo, por que razão existe o mundo? Foi com grande espanto que concluí que nada nele me podia obrigar a pensá-lo. O seu não ser não me pareceria em nada mais duvidoso do que o seu ser, que parecia piscar o olho ao não ser. Quando a Lua ainda brilhava, o mar e os seus continentes levavam pouca vantagem sobre a louça do meu lavatório. Da minha própria existência nada mais restava senão o resíduo da sua solidão.

Duas charangas

Nunca mais houve música com uma natureza tão bárbara e despudorada quanto a da banda militar que travava a torrente de pessoas que se arrastava pela Lästerallee23, entre os cafés-restaurantes do Jardim Zoológico. Hoje sei de onde vinha a força dessa torrente. Para o berlinense não havia melhor escola do amor do que essa, rodeada que estava pelas cercas dos gnus e das zebras, pelas árvores despidas e por recifes onde abutres e condores faziam ninho, pelas jaulas fedorentas dos lobos e os lugares onde pelicanos e garças chocavam os ovos. As vozes e os gritos desses bichos misturavam-se com o barulho dos timbales e dos tambores. Era esse o ar em que pela primeira vez um rapaz ousava dirigir o olhar para uma moça que passava, falando ao mesmo tempo, muito excitado, como o amigo. E esforçava-se de tal modo para não denunciar o seu entusiasmo, nem no tom de voz nem no olhar, que acabava por não ver nada da moça que passava.

Muito antes, conhecera outro tipo de charanga. E que diferença entre as duas! Esta, que balançava, sufocante e sedutora, sob as abóbadas da folhagem e das tendas, e aquela, mais antiga, brilhante e ensurdecedora no ar frio, como sob uma fina campânula de vidro. Fazia-se ouvir da Ilha de Rousseau e inspirava os patinadores que no gelo do lago, o Neuer See, faziam as suas piruetas e curvas. Também eu me encontrava entre eles, muito antes de poder imaginar de onde vinha o nome daquela ilha, para não falar das dificuldades da sua ortografia. A localização dessa pista de gelo não tinha rival, e muito menos a sua vida ao longo das estações do ano. De fato, o verão transformava as outras em quê? Em campos de tênis. Aqui, porém, estendia-se sob os grandes ramos pendentes das árvores da margem o mesmo lago que me esperava, dentro de uma moldura, na escura sala de jantar da minha avó. Naquela época muitos gostavam de pintá-lo, com os seus cursos de água labirínticos. E agora se deslizava ao som de uma valsa vienense por baixo das mesmas pontes em que no verão, encostados ao parapeito, olhávamos para os barcos que cruzavam lentamente as águas escuras. Nas proximidades havia caminhos que se entrecruzavam e sobretudo, em lugares mais recuados, os refúgios – bancos só para adultos. Havia-os nas caixas de areia circulares dos parques infantis, onde os menores brincavam ou ficavam especados, pensativos, até que outro o empurrasse ou a criada chamasse do seu banco onde, atrás do carrinho, fazia aplicadamente a sua leitura e mantinha a criança debaixo de olho praticamente sem levantar o olhar.

Mas deixemos essas margens. O lago, no entanto, está ainda vivo em mim no ritmo dos pés pesados dos patins, que, depois de uma corrida pelo gelo, voltavam a sentir debaixo de si as tábuas, entrando ruidosamente numa barraca onde havia um fogão de ferro aceso. Ao lado, o banco onde pesávamos uma vez mais a carga dos pés antes de nos decidirmos a desapertar as fivelas. Quando, por fim, a perna repousava de través sobre o joelho e o patim se soltava, era como se nos crescessem asas nas solas dos pés, e saíamos com passos que faziam a sua reverência ao chão gelado. A música que vinha da ilha acompanhava-me ainda um pouco no caminho de casa.

23 O nome da alameda do Zoo em Berlim poderia traduzir-se por alameda da Má-Língua. Era um daqueles lugares, em parques públicos das grandes cidades de tradição liberal (como a Meckerwiese de Hamburgo ou o mais conhecido Hyde Park Corner de Londres), onde qualquer cidadão pode falar livremente e tentar captar a atenção dos transeuntes para o seu discurso.

O anãozinho corcunda

Na minha infância gostava de olhar através de umas grades horizontais que nos permitiam ficar diante de uma vitrine, ainda que debaixo dela houvesse uma abertura que servia para deixar entrar um pouco de luz e ar nas caves. As aberturas das caves eram mais entradas para o mundo subterrâneo do que saídas para o ar livre cá em cima. Isso explica a curiosidade com que eu olhava lá para baixo através das grades, para levar comigo, vinda do subterrâneo, a imagem de um canário, de um candeeiro ou de um dos moradores. Nos dias em que a busca tinha sido em vão, a noite seguinte por vezes virava o espeto, e os sonhos traziam-me olhares que me fixavam e prendiam, vindos desses buracos das caves. Eram-me lançados por gnomos com gorros pontiagudos. E mal ainda me tinham aterrorizado até a medula, logo desapareciam. Eu fiquei sabendo com o que contava quando um dia dei com estes versos no Deutsches Kinderbuch [O Livro Infantil Alemão]: Quis descer à minha adega / Para ir buscar o meu vinho, / Está lá um anão corcunda / Que me rouba o meu jarrinho. Eu conhecia os desta espécie, apostados em fazer mal e pregar peças, e não me admirava nada que gostassem de adegas. Era a canalhada24. Dessa espécie eram também os companheiros da noite, aqueles que atacam o Galinho e a Galinha no Monte das Nozes – a Agulha e o Alfinete, que aí gritam que a escuridão vai cair a pique. Eles provavelmente sabiam mais coisas desse corcunda. De mim não se aproximou. Só hoje sei como se chamava. Foi a minha mãe quem me disse. Já chegou o desastrado!, dizia ela quando eu quebrava alguma coisa ou caía. Agora entendo o que ela queria dizer. Referia-se ao anãozinho corcunda que tinha olhado para mim. Aqueles para quem ele olha não dão atenção ao que fazem. Nem a si, nem ao corcundinha. Ficam encavacados diante de um monte de cacos. Quis ir à minha cozinha / Fazer a sopa, e já nela / Me espera um anão corcunda / P’ra me partir a panela. Onde ele aparecesse, quem ficava a perder era eu. E o que perdia eram as coisas, até que no decorrer do ano o jardim se transformava num jardinzinho, o meu quarto num quartinho e o banco num banquinho. As coisas minguavam, e era como se lhes crescesse uma corcunda que as tornava coisas do anãozinho. O anãozinho antecipava-se- me em tudo. Antecipando-se, lá estava ele no meu caminho. De resto, não me fazia nada, esse bailio pardo, a não ser cobrar metade do esquecimento de cada coisa de que eu me aproximasse: Se pr’o quarto de comer / Com a minha papa vou, / Está lá um anão corcunda: / Já metade me levou. Era assim que o anãozinho aparecia muitas vezes. Mas eu nunca o vi. Só ele é que me via. Via-me no meu esconderijo e diante do poço da lontra, nas manhãs de inverno e diante do telefone no corredor da cozinha, no Brauhausberg com as borboletas e na minha pista de patinação ao som da música da banda. Há muito tempo que se despediu. Mas a sua voz, que é como o zumbido da camisa do candeeiro a gás, atravessa o limiar do século e vem sussurrar-me as palavras: Reza, meu menino, anda, / Pelo anãozinho corcunda!.

24 Canalhada [Lumpengesindel] é precisamente o título de um conto dos Irmãos Grimm, em que intervêm as personagens a seguir referidas: a galinha e o galinho, a agulha e o alfinete.

 

APÊNDICE  

O carrossel

A plataforma com os bichos de serviço gira rente ao chão. Tem a altura certa para se sonhar que se voa. A música começa, e a criança afasta-se da mãe aos solavancos. Primeiro, tem medo de deixar a mãe. Depois, o menino percebe como ele próprio lhe é fiel. Sentado no seu trono, domina, sobranceiro e fiel, um mundo que lhe pertence. Na linha tangencial, árvores e indígenas formam alas. E de repente, eis que a mãe volta a aparecer num Oriente. Da floresta virgem emerge depois uma copa alta, como a criança já a viu há milênios, como agora a vê no carrossel. O bicho que escolheu afeiçoa-se-lhe: cavalga sobre o seu peixe mudo como um silencioso Árion, um Zeus-touro de madeira rapta-a, qual Europa sem mácula. Há muito tempo que o eterno retorno de todas as coisas se fez sabedoria de criança, e a vida uma embriaguez de dominação primordial, com o realejo ensurdecedor ao centro, como tesouro da coroa. Quando o andamento começa a abrandar, o espaço começa a gaguejar e as árvores a voltar a si. O carrossel torna-se terreno inseguro. E aparece a mãe, a estaca tantas vezes abordada em volta da qual a criança, ao atracar, enrola a amarra do olhar.

O despertar do sexo

Numa daquelas ruas que eu mais tarde viria a percorrer de noite, em infindáveis caminhadas, surpreendeu-me o despertar da pulsão sexual, na altura certa mas em circunstâncias estranhas. Era o dia do ano novo judeu, e os meus pais tinham providenciado para que eu participasse de qualquer festividade religiosa. Talvez na comunidade reformada pela qual a minha mãe, por tradição familiar, nutria alguma simpatia. Tinham-me mandado

buscar um parente afastado, com quem devia ir. Mas, ou por ter esquecido a morada, ou por não conhecer bem a zona, começou a fazer-se cada vez mais tarde e a minha deambulação não tinha fim à vista. Não me atrevia a ir sozinho para a sinagoga, nem isso seria possível, pois era o meu protetor quem tinha as senhas de entrada. Os principais culpados do meu infortúnio eram a antipatia pelo quase estranho de quem dependia, e a suspeita em relação às cerimônias religiosas, que só prometiam uma situação embaraçosa. De repente, no meio daquela perplexidade, invadiu-me uma onda quente de medo (tarde demais para ir à sinagoga), e no mesmo instante, ainda antes de a primeira desaparecer, emergiu outra, agora de total irresponsabilidade (seja o que for que aconteça, isto não tem nada a ver comigo). E as duas ondas convergiram imparavelmente na primeira sensação de prazer, em que se misturavam a profanação do dia santo e a cumplicidade da rua, que aqui me fez antever pela primeira vez os serviços que iria prestar àquela pulsão desperta.

 Comentário  

NOTA

Este comentário segue, em todos os volumes, o da edição original alemã mais completa da Obras de Benjamin (Gesammelte Schriften, da responsabilidade de Rolf Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser), bem como, no caso de Rua de mão única, o da nova edição crítica (Werke und Nachlaß. Kritische Gesamtausgabe, vol. 8, ed. de Detlev Schöttker e Steffen Haug, Frankfurt/Main, Suhrkamp Verlag, 2008). Adaptei os comentários ao destinatário de língua portuguesa e atualizei lacunas. As passagens em itálico provêm todas de textos e cartas de Benjamin.

As citações das Cartas no aparato crítico da edição alemã das Obras de Walter Benjamin referem ainda à edição em dois volumes, organizada por G. Scholem e Adorno (W. Benjamin, Briefe [Cartas]. Herausgegeben und mit Anmerkungen versehen von Gershom Scholem und Theodor W. Adorno. Frankfurt/Main, Suhrkamp Verlag, 1966). Foi, entretanto, editada a correspondência completa de Benjamin (Gesammelte Briefe in sechs Bänden [Correspondência Completa, em seis volumes], org. de Christoph Gödde e Henri Lonitz [Arquivo Theodor W. Adorno], Frankfurt/Main, Suhrkamp Verlag, 1995-2000). Uma vez que é esta hoje a edição de referência para as Cartas de Benjamin, todas as citações no Comentário desta edição remeterão para ela, indicando, no entanto, também a fonte na primeira edição das Cartas. Para isso, serão usadas as siglas Br. (= Briefe, para a edição de Scholem/Adorno, em dois volumes) e GB (= Gesammelte Briefe, para a edição completa), seguidas do número de página e, no caso desta última edição, também o do volume. Sempre que apareça apenas a referência a GB, isso significa que a carta em questão não figura na edição de Scholem/Adorno. As referências à edição original das Obras (Gesammelte Schriften) utilizam a sigla GS, seguida do volume e do número de página.

Rua de mão única (p. 7-65)

(...)

Escrevi depois [...] algumas notas que me agradam muito; em particular uma, sobre marinheiros (e o modo como eles veem o mundo), outra sobre a propaganda, outras sobre vendedoras de jornais, a pena de morte, feiras, barracas de tiro, Karl Kraus – tudo ervas amargas, das que agora cultivo com paixão na minha horta (Br., 423; GB, III, 151). 

[...]

Sobre os textos

 [...]

Para homens

Este aforismo, o mais curto de todo o livro, pode ter uma dupla leitura, impossível de dar na tradução, mas que é importante comentar, na medida em que cruza um ponto de vista e uma convicção em que práticas de linguagem e práticas sexuais são vistas em analogia, o que não é raro em Benjamin. O original diz: Überzeugen ist unfruchtbar. Überzeugen significa, numa primeira acepção (a que ficou na tradução), convencer (e teria então a ver com uma prática linguístico-retórica meramente instrumental, e não criativa); mas pode também ser lido como über-zeugen, significando então procriação em excesso, e referindo-se a uma sexualidade meramente orientada para a procriação e, assim, paradoxalmente estéril, tal como acontece com a retórica da mera persuasão. Ver, sobre essa imagem de pensamento por excelência, o capítulo VII (Für Männer – Überzeugen ist unfruchtbar: Zum Zusammenhang von Eros und Sprache [Para Homens – Convencer/procriar em excesso é estéril: sobre a conexão entre Eros e a linguagem]) no livro de Sigrid Weigel, Entstellte Änhlichkeit. Walter Benjamins theoretische Schreibweise. Frankfurt/Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1997.

 [...]

Artigos de armarinho

O primeiro texto dessa série derivou provavelmente das seguintes anotações (Manuscrito 706):

Inexpressividade – caricatura

(Invisibilidade) máximo do que se pode exprimir

A caveira é ambas as coisas no seu máximo:
O máximo do grau zero da expressão
: as cavidades orbitais
O máximo do que se pode exprimir
: a dentadura arreganhada
O riso arreganhado
O riso que arreganha os dentes e a aparência estão intimamente ligados. Só quando uma aparência se coloca à frente de um ser (ou é esse ser) este ri arreganhando os dentes. Por isso é que há uma ligação com o arreganhar de dentes numa das formas de sorriso que assentam na aparência, e na outra não
: esta é a do sorriso infantil, feliz.

(Fonte. Arquivo Benjamin, manuscrito 706)

INFÂNCIA BERLINENSE: 1900 (p. 67-116)

[...] 

Apêndice

[...]

A caixa de leitura

Jamais poderemos reaver inteiramente o esquecido. E isso talvez seja bom. O choque da recuperação seria tão destruidor que nesse mesmo instante teríamos de deixar de entender a nossa nostalgia. É dessa maneira, porém, que a entendemos, e tanto melhor quanto mais fundo se acha em nós o esquecido. Tal como a palavra perdida, que ainda agora tínhamos na ponta da língua, lhe daria asas demostênicas, assim também o esquecido parece ter em si o peso da promessa de toda a vida vivida. Talvez aquilo que torna o esquecido tão pesado e promissor mais não seja que o vestígio de hábitos desaparecidos aos quais já não poderíamos regressar. Talvez o segredo da sua sobrevivência seja a amálgama com a fina poeira dos nossos invólucros desfeitos. Seja como for – todos temos certas coisas que despertaram em nós hábitos mais duradouros do que quaisquer outras. Com elas se formaram as capacidades que se tornaram determinantes da nossa existência. E como, no que à minha se refere, essas coisas foram o ler e o escrever, de tudo aquilo que me aconteceu na infância nada desperta em mim maior nostalgia que a caixa de leitura. Ela continha, em pequenas tabuinhas, as letras soltas, numa caligrafia gótica que lhes dava maior juventude e delicadeza do que em letra de imprensa. Deitavam-se, elegantes, no leito oblíquo, cada uma delas perfeita e inserida na sua sequência por meio da regra da sua Ordem – a palavra –, na qual se integravam como irmãs. Perguntava a mim mesmo como era possível existirem, juntos, tanta modéstia e tanto esplendor. Era um estado de graça. E a minha mão direita, que se esforçava obedientemente por alcançá-lo, não o encontrava. Tinha de ficar de fora, como o porteiro que está ali para deixar passar os eleitos. Assim, a sua relação com as letras era marcada pela renúncia. A nostalgia que desperta em mim mostra como ela esteve intimamente ligada à minha infância. O que, na verdade, nela busco, é a própria infância: toda a infância, contida naquele gesto com que a mão enfiava as letras na calha em que se alinhavam para formar palavras. A mão ainda é capaz de sonhar esse gesto, mas jamais de despertar para realizá-lo plenamente. Posso também sonhar com o modo como em tempos aprendi a andar. Mas isso de nada me serve. Agora, sei andar, mas já não posso aprender a andar.

[...]

Biblioteca escolar

Tudo se passava num intervalo das aulas: recolhiam-se os livros e voltava-se a distribuí-los pelos candidatos. E nem sempre eu era suficientemente ágil nessas ocasiões. Muitas vezes via os livros que eu mais desejava irem parar nas mãos de quem não sabia dar-lhes o devido valor. O mundo desses livros era muito diferente do dos manuais em cujas histórias tinha de assentar arraiais durante dias e mesmo semanas, como numa caserna que tinha à entrada um número, ainda antes do nome. Pior ainda eram as casamatas dos poemas patrióticos, em que cada verso era uma cela. Que mediterrânica e suave era, pelo contrário, a brisa tépida dos alfarrábios distribuídos no intervalo! Era o ar em que a catedral de Santo Estêvão acenava aos Turcos que sitiavam Viena, em que se formavam as nuvens de fumo azul dos cachimbos do círculo de fumadores, os flocos de neve dançavam no Beresina e uma luz pálida anunciava os últimos dias de Pompeia. Acontecia que esse ar já estava um tanto parado quando nos vinha dos livros de Oskar Höcker e W. O. von Horn, de Julius Wolff e Georg Ebers. Mas o que cheirava mais a mofo era o dos volumes da coleção Do Passado da Pátria”, e que eram tantos no primeiro ano do liceu que havia poucas probabilidades de lhes passar ao lado e apanhar um livro de Wörishöffer ou Dahn. Tinham gravada nas capas de linho vermelho a figura de um alabardeiro. No texto havia umas lindas flâmulas de cavaleiros, acompanhados de respeitáveis aprendizes de vários ofícios, de filhas louras de castelões e alfagemes, vassalos a prestar juramento de fidelidade ao suserano; e não faltavam também o falso senescal a tramar intrigas, nem os artífices em digressão, ao serviço do rei estrangeiro. Quanto menos nós, filhos de comerciantes e conselheiros, fazíamos ideia desse mundo de servos e senhores, tanto mais esse universo ordenado e cheio de ideais nos entrava pela casa adentro. O brasão sobre o portão do castelo feudal fui encontrá-lo no cadeirão de couro em frente à mesa do meu pai, as grandes canecas usadas na mesa dos banquetes do general Tilly lá estavam, nas consolas dos fogões de sala ou no armário do vestíbulo, e bancos como aqueles que nas tabernas, provocativamente colocados de través, barravam o caminho, havia-os também sobre os nossos tapetes de Aubusson, com a diferença de que agora nenhum dragão do regimento dos Prittwitzscher se sentava neles. Num caso, porém, a fusão desses dois mundos resultava plenamente. Acontecia sob o signo de um livro cujo título de modo nenhum ia com o conteúdo. Lembro-me apenas de uma parte a que se reportava uma pintura a óleo, e que eu abria sempre com a mesma impressão de terror. Fugia dessa imagem e ao mesmo tempo ela atraía-me. Passava-se o mesmo que mais tarde, com a imagem do Robinson em que Sexta-Feira encontra pegadas de estranhos e, perto delas, caveiras e esqueletos. Mas era muito mais soturno o terror que me vinha da mulher de camisola branca, de olhos abertos, mas parecendo dormir, que deambulava por uma galeria com um candelabro aceso. A mulher era cleptômana. E esta palavra, em que o som maligno e hostil da primeira parte distorcia as fantasmagóricas sílabas finais, como Hokusai transforma com algumas pinceladas o rosto de um morto num espetro – aquela palavra deixava-me transido de terror. Muito tempo depois de o livro – o seu título era Aus eigener Kraft [Por Vontade Própria] – já estar de novo arrumado no armário da turma, ainda aquele corredor da casa de Berlim que levava às salas das traseiras era para mim a longa galeria por onde a castelã se passeava à noite. Esses livros podiam ser reconfortantes ou aterrorizantes, monótonos ou excitantes, nada acrescentava ou diminuía a sua magia. Pois esta não dependia do seu conteúdo, estava toda naquele quarto de hora que me garantia e me fazia suportar o sacrifício da árida vida escolar. Alegrava-me logo quando, à noite, metia o livro na pasta arrumada, que ficava mais leve com essa carga. A escuridão que ele aí partilhava com os cadernos, os livros escolares, as caixas de aparos, ajustava-se aos acontecimentos misteriosos que a manhã seguinte lhe reservava. Era então que chegava o momento em que, na mesma sala que ainda há pouco fora cenário da minha humilhação, eu sentia em mim um poder semelhante ao de Fausto no momento em que Mefistófeles lhe aparece. O professor, que agora tinha descido do tablado para recolher os livros e voltar a distribuí-los junto do armário, afinal mais não era que um diabo menor que tinha de abdicar dos seus poderes maléficos para pôr a sua arte ao serviço dos meus desejos. E como falhavam todas as suas tentativas tímidas de influenciar a minha escolha com uma ou outra sugestão! Como o pobre diabo se sentia frustrado no seu trabalho de escravo, enquanto eu há muito tempo tinha saltado para o meu tapete voador, a caminho da tenda do último moicano ou do acampamento de Konradin von Staufen!

[...]

A carteira

(...) Podia regular-se o assento de modo a ele ficar mais ou menos afastado da prancha inclinada onde se escrevia; tinha também uma travessa horizontal para apoiar as costas, para não falar já de um pequeno apoio móvel para os livros, que coroava o conjunto. A carteira à janela em breve se tornou o meu lugar preferido.

[ou: tratado básico da ergonomia, de um futuro admirador de ВХУТЕМАС e Bauhaus]

BENJAMIN, Walter. Rua de mão únicaInfância berlinense: 1900 / Walter Benjamin; edição e tradução de João Barrento. Einbahnstraße; Berliner Kindheit um 1900. —1a ed; 4a reimp— Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2022. (Filô/Benjamin)

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