12.7.24

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Alarme contra incêndio

A ideia que se tem da luta de classes pode ser enganadora. Não se trata de uma prova de força em que se tenha de decidir a questão de saber quem ganha e quem perde; não se trata de um combate depois do qual o vencedor ficará bem, e o vencido, mal. Pois, quer a burguesia ganhe, quer ela perca essa luta, ela está condenada a sucumbir às contradições internas que se tornarão fatais ao longo da sua evolução. A questão é apenas a de saber seela se afundará por si própria ou pela ação do proletariado. A manutenção ou o fim de uma evolução cultural com três mil anos serão decididos pela resposta a essa pergunta. A história nada sabe sobre a imperfeita infinitude simbolizada nos dois gladiadores eternamente em luta. O verdadeiro político só faz projetos a prazo. E se a eliminação da burguesia não for concretizada até um momento rapidamente calculável da evolução econômica e técnica (...), então tudo está perdido. É preciso cortar o rastilho antes que a centelha chegue à dinamite. Intervenção, risco e rapidez do político são coisas técnicas – não cavaleirescas.

Recordações de viagem

Atrani. A escadaria barroca, curva e de leve inclinação até a igreja. A grade atrás da igreja. As ladainhas das velhas na hora das ave-marias: entrada na escola, primeira classe da morte. Quando nos voltamos, a igreja confina com o mar, como o próprio Deus. Todas as manhãs a era cristã desponta no rochedo, mas entre as muralhas, lá embaixo, a noite continua a dividir-se pelos quatro velhos bairros romanos. Ruelas como poços de ventilação. Na praça do mercado, uma fonte. Ao cair da tarde, mulheres à sua volta. Depois, a solidão: murmúrio arcaico da água.

(...)
Moscou, catedral de S. Basílio. Aquilo que a Madonna bizantina tem nos braços é apenas um boneco de madeira em tamanho natural. A sua expressão de dor diante de um Cristo cuja condição de criança é apenas sugerida, apenas representada, é mais intensa do que a que ela poderia mostrar com uma imagem autêntica do menino.

Boscotrecase. Nobreza de um bosque de pinheiros: o seu teto forma-se sem entrelaçamentos.

Nápoles, Museu Nacional. Nos seus sorrisos, estátuas arcaicas mostram a quem as observa a consciência do corpo, tal como uma criança nos traz as flores que acabou de colher, soltas e dispersas; a arte mais tardia, pelo contrário, marca de forma mais acentuada as expressões do rosto, como o adulto que tece com ervas cortantes o ramo destinado a durar.

Florença, batistério. No portal, a Spes (Esperança) de Andrea Pisano. Está sentada e ergue, desesperada, os braços para um fruto que não alcança. E no entanto é alada. Nada de mais verdadeiro.

Andrea Pisano, Spes (Florença)

Céu. Saí em sonhos de uma casa e olhei o céu noturno. Dele descia um brilho muito forte. É que, estando sem estrelas, estavam nele fisicamente presentes as figuras segundo as quais agrupamos as estrelas em signos. Um leão, uma virgem, uma balança e muitas outras, em densas aglomerações de astros, olhavam fixamente para a Terra cá em baixo. Da Lua, nem rastro.

Oculista

No verão são as pessoas gordas que dão nas vistas, no inverno as magras.

Na primavera, em dias de sol claro, damos pelas folhas novas, nos de chuva fria saltam-nos à vista os ramos ainda sem folhas.

Pela posição dos pratos e das xícaras, dos copos e das comidas, aquele que ficou apercebe-se de como decorreu um serão em que se receberam hóspedes.

Princípio básico da sedução: multiplicar-se por sete; colocar-se, desdobrado em sete, em volta daquela que se deseja.

O olhar é a última gota do ser humano. 

(...)

Policlínica

O autor coloca os pensamentos sobre a mesa de mármore do café. Longa meditação: aproveita o tempo em que o vidro – a lente com a qual examina o doente – ainda não está à sua frente. Depois, vai retirando os seus instrumentos: caneta, lápis e cachimbo. A multidão dos frequentadores, disposta em anfiteatro, constitui o seu público clínico. O café, servido por mão solícita e assim saboreado, submete o pensamento aos efeitos do clorofórmio. Aquilo em que pensa tem tanto a ver com a coisa em si como o sonho do narcotizado com a intervenção cirúrgica. Fazem-se incisões nas cuidadas linhas da caligrafia, o operador desloca acentos no seu interior, cauteriza as protuberâncias verbais e insere, como se fosse uma costela de prata, uma palavra estrangeira. Por fim, costura tudo com os pontos finos da pontuação e paga ao criado, seu assistente, em numerário.

Espaços livres para alugar

A estultícia daqueles que lamentam o declínio da crítica. Porque a hora da crítica já há muito tempo que passou. A crítica é uma questão de distância certa. O seu elemento é o de um mundo em que o que importa são as perspectivas e os pontos de vista, e em que ainda era possível assumir uma posição. Entretanto, as coisas tornaram-se excessivamente agressivas para a sociedade humana. A imparcialidade, o olhar livre são mentiras, se não mesmo a mais ingênua expressão da pura incompetência. O olhar hoje mais essencial, o olho mercantil que penetra no coração das coisas, chama-se propaganda. Esta arrasa o espaço livre da contemplação e aproxima tanto as coisas, coloca-as tão debaixo do nariz quanto o automóvel que sai da tela de cinema e cresce, gigantesco, tremeluzindo em direção a nós. E do mesmo modo que o cinema não oferece móveis e fachadas a uma observação crítica completa, mas dá apenas a sua espetacular, rígida e repentina proximidade, também a propaganda autêntica transporta as coisas para primeiro plano e tem um ritmo que corresponde ao de um bom filme. Com isso, foi-se de vez a objetividade, e diante das imagens hiperdimensionais nas paredes das casas, onde o Chlorodont e o Sleipnir estão ao alcance das mãos de gigantes, o sentimentalismo curado liberta-se à americana, como aquelas pessoas a quem já nada move nem comove, e que aprendem novamente a chorar no cinema. Mas para o homem da rua, aquilo que dele aproxima assim as coisas, o que estabelece o contato decisivo com elas, é o dinheiro. E o crítico pago, que manipula o valor dos quadros na galeria de arte do marchand, sabe sobre eles coisas que, se não são melhores, são certamente mais importantes do que as que sabe o amador de arte que os vê na vitrine. Solta-se do tema da obra um calor que dá asas ao seu sentimento. O que é que torna, afinal, a propaganda tão superior à crítica? Não será aquilo que diz a escrita elétrica e móvel do anúncio – mas a poça de fogo que a reflete no asfalto. 

Equipamento de escritório

O gabinete do chefe está abarrotado de armas. Aquilo que impressiona quem entra, porque parece conforto, é de fato um arsenal escondido. O telefone em cima da mesa está sempre a tocar. Interrompe-nos no momento mais importante, e dá ao nosso interlocutor tempo para pensar na resposta que lhe convém. Entretanto, alguns farrapos da conversa mostram como aqui se trata de muitos assuntos bem mais importantes do que aquele que viemos resolver. Dizemo-lo a nós próprios, e pouco a pouco começamos a descrer do nosso ponto de vista. Começamos a perguntar-nos de quem se estará falando ali, apercebemo-nos, assustados, de que o interlocutor parte no dia seguinte para o Brasil e, logo depois, de que ele está de tal modo solidário com a firma que a enxaqueca de que se queixa ao telefone é apresentada como uma lamentável perturbação dos negócios, e não como uma oportunidade de que se poderia tirar proveito. Chamada ou não, a secretária acaba por entrar. É muito bonita. E se o patrão há muito pôs as cartas na mesa quanto aos seus encantos, ou pela indiferença, ou pela admiração, o novato a observará mais que uma vez, e ela sabe bem como ganhar a aprovação do chefe. O seu pessoal atarefa-se, pondo sobre a mesa vários ficheiros nos quais o visitante sabe estar incluído sob várias rubricas. Começa a ficar cansado. Mas o outro, que tem a luz atrás de si, adivinha com satisfação o que se passa, olhando para os traços do rosto do interlocutor, ofuscado de tanta luz. Também a poltrona faz o seu efeito: uma pessoa fica ali sentada afundando-se como no dentista, e acaba por aceitar o penoso procedimento como se fosse a ordem natural das coisas. Mais tarde ou mais cedo, seguir-se-á também a esse tratamento uma liquidação.

BENJAMIN, Walter. Rua de mão únicaInfância berlinense: 1900 / Walter Benjamin; edição e tradução de João Barrento. Einbahnstraße; Berliner Kindheit um 1900. —1a ed; 4a reimp— Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2022. (Filô/Benjamin)

 

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