Aqueles que fogem ao contato com o dia, seja por receio dos homens, seja por necessidade de concentração interior, não querem comer e não dão importância ao café da manhã. Deste modo evitam a passagem brusca entre o mundo noturno e o diurno. Cuidados que apenas se justificam quando o sonho é queimado pelo trabalho matinal intenso, ou também pela oração, mas de outro modo leva a uma confusão dos ritmos de vida. Nesse estado, o relato dos sonhos é
fatal, porque o indivíduo, em parte ainda entregue ao universo onírico,
o trai nas palavras que usa e tem de contar com a sua vingança. Em
termos mais modernos: trai-se a si mesmo. Libertou-se da proteção da
ingenuidade sonhadora e, ao tocar sem reflexão nas suas visões oníricas,
expõe-se. Pois só da outra margem, em pleno dia, se deve interpelar o
sonho a partir de uma recordação distanciada. A esse além do sonho só se
pode chegar através de uma purificação análoga à da lavagem, mas
totalmente diferente dela, pois passa pelo estômago. Quem está em jejum
fala do sonho como se falasse ainda de dentro do sono.
[...]
Para homens
Convencer é estéril.
[...]
Embaixada mexicana
Je ne passe jamais devant un fetiche de bois,
un Bouddha doré, une idole mexicaine sans me dire
C’est peut-être le vrai dieu.2
Charles Baudelaire
2 ‘Nunca
passo diante de um fetiche de madeira, de um Buda dourado, de um ídolo
mexicano, sem dizer a mim mesmo: Talvez seja o verdadeiro deus.’ (...)
Solicita-se ao público que proteja as áreas plantadas
(...)
O comentário e a tradução relacionam-se com o texto como o estilo e a
mimese com a natureza: o mesmo fenômeno sob pontos de vista diferentes.
Na árvore do texto sagrado, ambos são apenas as folhas eternamente
rumorejantes, na árvore do profano, os frutos que caem no tempo que é o
seu.
[...]
Ministério do Interior
Quanto
maior for a hostilidade de alguém em relação à tradição, tanto mais
implacável será a necessidade que tem de submeter a sua vida privada às
normas que deseja elevar à condição de legisladoras de uma situação
social futura. É como se estas lhe impusessem o dever de as antecipar
pelo menos no seu círculo de vida próprio —
a elas, que ainda se não concretizaram em lugar nenhum. Já o homem que
se sabe em consonância com as mais antigas tradições da sua classe ou do
seu povo, coloca de vez em quando a sua vida privada ostensivamente em
oposição
às máximas que intransigentemente defende na vida pública e enaltece no
seu intimo, sem quaisquer problemas de consciência, o seu próprio
comportamento como a mais convincente prova da inabalável autoridade dos
princípios que professa.
[...]
Kaiserpanorama [‘Panorama imperial’]
Viagem pela inflação alemã
II. (...) um cruzamento de estupidez e covardia, aquela que fala da catástrofe iminente — ao dizer ‘as coisas não podem continuar assim’ — dá particularmente que pensar (...) ele acha que tem de considerar instável toda a
situação que lhe retire posses. (...)
II. Um estranho paradoxo: as pessoas, quando agem, pensam apenas no
interesse pessoal mais mesquinho, mas ao mesmo tempo são, mais do que
nunca, determinadas no seu comportamento pelo instinto das massas. E
nunca como hoje os instintos das massas se enganaram tanto nem foram tão
estranhos à vida. Nas situações em que o obscuro instinto dos animais –
como tantas histórias contam – é capaz de encontrar saída para o perigo
iminente mas ainda invisível, esta sociedade, na qual cada um tem apenas
em vista a sua própria e mísera abastança, sucumbe, com uma insensibilidade animal, mas sem aquele saber inconsciente dos animais,
como uma massa cega, ao primeiro perigo com que se confronta, e a
diversidade dos objetivos individuais torna-se irrelevante perante a
identidade das forças determinantes. Por mais de uma vez foi demonstrado
que a sua dependência de uma vida a que se habituou, mas que se perdeu há
muito tempo, está tão empedernida que põe a perder a aplicação, tão
tipicamente humana, do intelecto sob a forma da previdência, mesmo em
situações drasticamente perigosas. E assim a imagem da estupidez se
consuma em tais situações: insegurança, mesmo perversão dos instintos
vitais e impotência, total abdicação do intelecto. E assim a imagem da estupidez se consuma em tais situações: insegurança, mesmo perversão dos instintos vitais e impotência, total abdicação do intelecto. (...)
III.
Todas as relações humanas mais próximas são afetadas por uma limpidez
penetrante, quase insuportável, à qual dificilmente conseguem resistir.
De fato, como o dinheiro constitui, por um lado, o centro absorvente de
todos os interesses da existência, e, por outro lado, esta é
precisamente a barreira perante a qual quase todas as relações
humanas fracassam, cada vez desaparecem mais, no plano natural como no
moral, a confiança espontânea, a tranquilidade e a saúde.
IV. Não é por acaso que se fala da miséria ‘nua e crua’. O que há de mais funesto na exibição dessa miséria — que, sob o signo da necessidade, se tornou habitual, embora mostre apenas a milésima parte do que está escondido —
não é a compaixão, nem a consciência, igualmente terrível, da imunidade
própria, sentida por quem vê, mas a vergonha disso. Tornou-se
impossível viver numa grande cidade alemã, onde a fome força os mais
miseráveis a viver das notas de banco com que os transeuntes procuram
tapar uma nudez que os fere.
V. ‘A pobreza não envergonha ninguém.’ E, no entanto, eles envergonham os pobres.
Fazem isso, e ao mesmo tempo consolam-nos com a frase bonitinha. Que
vem daqueles que em tempos teriam alguma aceitação, mas para quem há
muito chegou a hora do declínio. É exatamente o que se passa com aquela outra frase brutal ‘Quem não trabalha não come’.
Nos tempos em que o trabalho era o sustento de cada um também havia
pobreza, que não envergonhava, se vinha das
más colheitas ou de qualquer outra fatalidade. O que envergonha é essa
penúria em que milhões já nascem e centenas de milhares são apanhados,
caindo na pobreza. O esterco e a miséria crescem à sua volta como muros
levantados por mãos invisíveis. E do mesmo modo que cada um, sozinho, é
capaz de suportar muita coisa, mas sente uma compreensível vergonha
quando a mulher o vê suportar tudo isso e o aceita, assim também cada
indivíduo isolado pode aceitar muita coisa, desde que esteja sozinho, e
tudo, desde que o esconda. Mas nunca ninguém poderá fazer as pazes com a
pobreza quando esta se abate como sombra gigantesca sobre o seu povo e a
sua casa. Nessa altura, o que tem a fazer é manter os sentidos
despertos para toda a humilhação que sobre eles recaia, e controlá-los
até que o seu sofrimento deixe de escorregar pelo plano inclinado da
amargura, para enveredar pelo trilho ascendente da revolta. Mas toda
esperança será vã enquanto todos
esses destinos terríveis e sombrios forem apresentados pela imprensa
diariamente, de hora a hora, sempre com causas e consequências
fictícias, não ajudando ninguém a reconhecer as forças obscuras a que a
sua vida passou a estar submetida.
(...)
VII. Vai-se
perdendo a liberdade do diálogo. Antigamente era natural, entre pessoas
que dialogavam, ir ao encontro do ponto de vista do outro; hoje,
pergunta-se logo pelo preço dos sapatos ou do guarda-chuva. Qualquer conversa cai fatalmente no tema das condições
de vida e do dinheiro. Mas não se trata das preocupações e dos
sofrimentos de cada um, coisa em que talvez se pudessem ajudar uns aos
outros —
é a observação do todo que ocupa a conversa. É como se estivéssemos
presos num teatro e fôssemos obrigados a seguir a peça que se desenrola
no palco, quer quiséssemos, quer não, e tivéssemos de fazer dela, quer
quiséssemos, quer não, o objeto do nosso pensamento e do nosso discurso.
VIII.
Quem não fugir à percepção da decadência passará sem demora à
justificação particular das razões pelas quais permanece e age neste
caos e dele participa. A cada ponto de vista sobre o fracasso geral
corresponde uma exceção para a sua própria esfera de ação, a sua morada e
as suas circunstâncias particulares. Impõe-se quase por toda a parte a vontade cega de salvar a todo o custo o prestigio da existência pessoal, em vez de libertá-la da cegueira geral, desprezando soberanamente a sua impotência e o seu enredamento. (...)
IX. (...) Qualquer homem livre é para eles uma aparição extravagante. (...)
X. (...) Não esperam qualquer ajuda do próximo. Cobradores, funcionários, operários e vendedores — todos
eles se sentem representantes de uma matéria recalcitrante cuja
periculosidade se esforçam por revelar através da sua própria rudeza. E a própria terra se entregou à degeneração das coisas, pela qual, seguindo o exemplo da decadência humana, a castigam. (...)
XI. O
desenvolvimento de todo movimento humano, quer ele derive de impulsos
espirituais, quer naturais, pode contar com a resistência
desmesurada do meio circundante. (...) Poucas coisas reforçarão mais a
força fatal do impulso para o nomadismo que alastra do que as restrições
à liberdade de circulação; nunca foi tão grande a discrepância entre a liberdade de movimentos e a abundância de meios de transporte.
XII. Passa-se com a cidade o mesmo que com todas as coisas que vão perdendo a expressão da sua essência ao entrarem num processo incessante de promiscuidade e hibridação, que substitui o que é próprio pela ambiguidade.
(...)
XIV. Dos mais antigos usos dos povos parece chegar até nós a advertência que nos diz que devemos abster-nos do gesto da cobiça
ao acolhermos aquilo que tão generosamente recebemos da natureza.
Porque nada podemos oferecer de nosso à terra-mãe. Por isso, é preciso
mostrar respeito ao receber, devolvendo-lhe de novo uma parte de tudo o
que ela nos vai oferecendo, antes mesmo de nos apossarmos do que é
nosso. É esse respeito que encontramos no antigo costume da libatio. Talvez seja também essa antiquíssima
experiência
moral que sobrevive, transformada, na proibição de recolher as espigas
esquecidas e apanhar as uvas caídas, na medida em que estas podem servir
à terra ou aos antepassados que enviam as
suas bênçãos. O costume ateniense proibia que se apanhassem as migalhas
à refeição, porque estas pertencem aos heróis. Se a sociedade, presa da
necessidade e da cobiça, degenera a ponto de já só ser capaz de receber
os dons da natureza saqueando-a, se colhe os frutos verdes para poder
vendê-los a bom preço no mercado e se tem de esvaziar todas as travessas
só para se saciar, a sua terra empobrecerá e o campo terá más
colheitas.
[...]
Atenção aos degraus!
O
trabalho numa prosa de boa qualidade tem très niveis: um musical, e da
sua composição, um arquitetônico, o da sua construção, e por fim um
têxtil, o da sua tecelagem.
Revisor tipográfico ajuramentado
O
nosso tempo, a antítese perfeita do Renascimento, opõe-se
particularmente à situação que viu nascer a invenção da imprensa. Por
acaso, ou talvez não, o seu aparecimento na Alemanha dá-se na época em
que o livro, no mais nobre sentido do termo, o Livro dos Livros, se
tornou patrimônio popular através da tradução da Bíblia por Lutero. Ora,
tudo parece indicar que o livro, nesta sua forma tradicional, tem os
dias contados. Mallarmé, que descortinou no meio da cristalina
construção da sua escrita, sem dúvida tradicionalista, a imagem
autêntica do que estava para vir, integrou pela primeira vez, no Coup de dés,
as tensões gráficas do reclame na escrita. As experiências com a
escrita feitas depois dele pelos Dadaístas não partiam, é certo, do
impulso construtivista, mas das reações nervosas e precisas dos
literatos, e por isso foram muito menos consistentes do que as
experiências de Mallarmé, que nasceram do âmago do seu próprio estilo.
Mas permitem, por isso mesmo, reconhecer a atualidade de tudo aquilo que
Mallarmé, como uma mônada, no seu mais hermético gabinete, vinha
descobrindo, numa harmonia pré-estabelecida com tudo o que de decisivo
acontece nos nossos dias na economia, na técnica, na vida pública. A
escrita, que encontrara refúgio no livro impresso, onde levava uma
existência autônoma, é implacavelmente arrastada para a rua pelos
reclames e submetida às brutais heteronomias do caos econômico. É essa a
severa escola da sua nova forma. Quando, há séculos, ela começou a
deitar-se, transformando-se de inscrição na vertical em caligrafia que
repousava na inclinação da estante, para finalmente encontrar no livro
impresso a sua cama, hoje recomeça, igualmente de forma lenta, a
levantar-se do chão. Já o jornal se lê mais na vertical do que na
horizontal, e o cinema e o reclame forçam definitivamente a escrita a
assumir uma verticalidade ditatorial. E antes de os nossos
contemporâneos poderem abrir um livro já um denso turbilhão de letras em
movimento, coloridas, concorrentes, lhes caiu diante dos olhos,
tornando muito remotas as possibilidades de eles se concentrarem no
silêncio arcaico do livro. As nuvens de gafanhotos da escrita, que hoje
já encobrem o sol do pretenso espírito aos habitantes das metrópoles,
tornar-se-ão mais densas a cada ano que passa. As renovadas exigências
da vida dos negócios vão mais longe. O catálogo de fichas significa a
conquista da escrita tridimensional, um contraponto surpreendente para a
tridimensionalidade da escrita nas suas origens, como runa ou escrita
de nós. (E já hoje, como ensinam os modos de produção científica atuais,
o livro é uma mediação antiquada entre dois sistemas de fichagem,
porque tudo o que é essencial se encontra no ficheiro do investigador
que o organizou, e o erudito que por ele estuda assimila-o ao seu
próprio ficheiro.) Mas não há dúvida de que a evolução da escrita não
ficará previsivelmente ligada aos ditames de uma atividade caótica no
âmbito da ciência e da economia; virá antes o momento em que a
quantidade dará lugar à qualidade, e a escrita, que penetra cada vez
mais fundo no âmbito gráfico da sua nova e excêntrica capacidade de se
dar como imagem, se apoderará subitamente dos seus conteúdos adequados.
Essa escrita da imagem só poderá ser manipulada por poetas que, como nas
origens, serão sobretudo especialistas da escrita que terão de saber
explorar os domínios nos quais (sem se considerarem demasiado
importantes) tem lugar a construção dessas formas de escrita: os dos
diagramas estatísticos e técnicos. Com a criação de uma escrita
internacional conversível, eles renovarão a sua autoridade sobre a vida
dos povos e descobrirão uma função em confronto com a qual todas as
aspirações de renovação da retórica se revelarão ser devaneios
antiquados.
Material didático
Princípios dos calhamaços, a arte de fazer livros grossos
I. O desenvolvimento da obra deve ser permanentemente entrecortado pela apresentação prolixa do respectivo plano.
II. Devem introduzir-se termos técnicos para conceitos que, excluindo essa única definição, não serão novamente usados no livro.
III. As diferenciações conceituais penosamente conseguidas no texto deverão ser apagadas nas notas às passagens correspondentes.
IV.
Devem dar-se exemplos para aqueles conceitos que são tratados apenas no
seu significado geral. Por exemplo, quando se falar de máquinas devem
enumerar-se todos os seus tipos.
V. Tudo o que esteja previamente esclarecido acerca de um assunto deve ser corroborado pelo maior número possível de exemplos.
VI.
Os complexos de problemas suscetíveis de representação gráfica deverão
ser descritos por palavras. Por exemplo, em vez de desenhar uma árvore
genealógica, devem expor-se e descrever-se todas as relações de
parentesco.
VII. Os vários opositores que partilham dos mesmos argumentos devem ser refutados um a um.
É proibido afixar cartazes!
A técnica do escritor em treze teses
I. Quem quiser lançar-se a escrever uma obra de fôlego, instale—se comodamente e conceda a si próprio ao fim de cada dia de trabalho tudo aquilo que não prejudique a sua continuação.
II.
Fale do que escreveu, se quiser, mas não leia nada a ninguém enquanto o
trabalho estiver em curso. Toda a satisfação que dai possa retirar
retardará o seu ritmo. Seguindo esse regime, o desejo crescente de
comunicação acabará por ser um estimulo à conclusão.
III. Quanto às condições de trabalho, procure fugir à mediocridade
da vida quotidiana. O meio sossego, acompanhado de ruídos pouco
estimulantes, é degradante. Já o ruído de fundo de um estudo musical ou
da confusão de vozes pode ser tão importante para o trabalho quanto o
silêncio tangível da noite. Se este afina o ouvido interior, aqueles se
tornam pedra de toque de uma dicção cuja riqueza consegue absorver em si
até esses ruídos excêntricos.
IV.
Evite servir-se do primeiro instrumento de trabalho que tenha à mão. E
útil o apego pedante a determinados tipos de papel, canetas, tintas. Sem
luxos, mas com a indispensável abundância desses utensílios.
V.
Não deixe que nenhum pensamento passe por você incógnito, e use o seu
bloco de notas com o mesmo rigor com que os serviços oficiais fazem o
registro dos estrangeiros.
VI.
Torne a sua caneta avessa à inspiração, e ela a atrairá a si com a
força de um imã. Quanto mais refletir antes de passar a escrito uma
intuição, tanto mais amadurecida ela se te oferecerá. A fala conquista o
pensamento, mas a escrita domina-o.
VII.
Nunca deixe de escrever pelo fato de não o ocorrer mais nada. Um dos
mandamentos da honra literária é o de interromper a escrita apenas
quando há que respeitar uma hora marcada (uma refeição, um encontro) ou
quando damos o trabalho por terminado.
VIII. Preencha os momentos de falta de inspiração passando a limpo o que já escreveu. Entretanto, a inspiração despertará.
IX. Nulla dies sine linea — mas semanas sim.
X. Nunca de uma obra por acabada sem ter mergulhado nela uma vez mais, desde o serão até ao nascer do dia.
XI. Não escreva a conclusão do trabalho no lugar onde habitualmente trabalha. Ai, perderia a coragem de fazê-lo.
XII. Graus da elaboração da obra: pensamento — estilo — escrita.
A finalidade do passar a limpo é a de que agora toda a atenção se
concentre na caligrafia. O pensamento mata a inspiração, o estilo
aprisiona o pensamento, a escrita recompensa o estilo.
XIII. A obra é a máscara mortuária da sua concepção.
Treze teses contra os snobes
(O snobe no escritório particular da critica de arte. À esquerda um desenho de criança, à direita um fetiche. O snobe: ‘Perante isto. todo Picasso pode fazer as malas!’)
I. O artista faz uma obra.
O primitivo exprime-se por documentos.
II. A obra de arte só acessoriamente é um documento
Nenhum documento é, enquanto tal, uma obra de arte.
III.A obra de arte é uma obra-prima.
O documento tem função didática.
IV. Os artistas aprendem o seu oficio com a obra de arte.O público é educado perante os documentos.
V. As obras de arte distanciam-se umas das outras pela sua perfeição relativa.
Todos os documentos comunicam pelo lado dos conteúdos.
VI. Conteúdo e forma são uma só coisa na obra de arte: substância.
Nos documentos domina em absoluto o material.
VII. A substância é aquilo que foi comprovado.
A matéria é aquilo que foi sonhado.
VIII. Na obra de arte, a matéria é um lastro de que a contemplação se liberta.Quanto mais nos perdemos num documento, tanto mais denso ele se torna: matéria.
IX. Na obra de arte a lei da forma é decisiva.
No documento as formas só entram dispersamente.
X. A obra de arte é sintética: central de energia.
A fecundidade do documento pede: análise.
XI. A obra de arte potencializa-se na observação repetida.
Um documento só domina pela surpresa.
XII. A virilidade das obras reside no ataque.
A inocência serve de capa ao documento.
XIII. O artista parte à conquista de novas substâncias.
O homem primitivo entrincheira-se atrás dos materiais.
A técnica do critico em treze teses
I. O critico é um estrategista no combate literário.
II. Quem não souber tomar partido, que fique calado.
III. O critico não tem nada a ver com o exegeta de épocas artísticas passadas.
IV. A critica deve falar na linguagem dos artistas de variedades, porque os conceitos do cénacle são palavras de ordem. E é apenas nas palavras de ordem que ressoa o grito de guerra.
V. Será sempre preciso sacrificar a ‘objetividade’ ao espírito partidário, se a causa pela qual se trava o combate merecê-lo.
VI. A critica é uma questão de moral. Se Goethe ignorou Hölderlin e Kleist, Beethoven e Jean Paul, isso tem menos a ver com o seu sentido artístico do que com a sua moral.
VII. Para o crítico, a instância superior são os seus colegas, e não o público. E muito menos a posteridade.
VIII. A posteridade ou esquece ou enaltece. Só o critico julga tendo o autor à sua frente.
IX.
Polêmica é destruir um livro com base em poucas das suas frases. Quanto
menos foi estudado, melhor. Só quem é capaz de destruir é capaz de
criticar.
X. A autêntica polêmica ocupa-se de um livro de forma tão dedicada quanto um canibal cozinha um bebê.
XI. O critico não conhece o entusiasmo pela arte. Nas suas mãos, a obra de arte é a arma desembainhada nas batalhas do espírito.
XII.
O essencial da arte do critico: cunhar chavões sem trair as ideias. Os
chavões de uma critica medíocre vendem os pensamentos à moda, e ao
desbarato.
XIII. O público nunca pode ter razão, e apesar disso deve sentir sempre que é representado pelo critico.
Número 13
(...)
Le remploiement vierge du livre, encore, prête à
un sacrifice dont saigna la tranche rouge des
anciens tomes; l'introdution d'une arme, ou
coupe—papier, pour établir la prise de possession.
Stéphane Mallarmé
[Le «livre»]
[...]
Relógios e joias de ouro
(...)
‘La tête, avec l’amas de sa crinière sombre
Et de ses bijoux précieux,
Sur la table de nuit, comme une renoncule,
Repose’. Baudelaire8
8 Linhas do poema ‘Une martyre’ d’As Flores do Mal. Na tradução de Maria Gabriela Llansol:
‘A
cabeça, num misto de cabeleira escura
E de jóias preciosas de ornato,
Sobre a mesa-de-cabeceira,
como uma flor,
Repousa...’
(Baudelaire, As Flores do Mal. Lisboa, Relógio d’Água, 2003, p. 253).
[...]
Alarme contra incêndio
A ideia que se tem da luta de classes pode ser enganadora. Não se trata
de uma prova de força em que se tenha de decidir a questão de saber quem
ganha e quem perde; não se trata de um combate depois do qual o vencedor
ficará bem, e o vencido, mal. Pois, quer a burguesia ganhe, quer ela perca
essa luta, ela está condenada a sucumbir às contradições internas que se
tornarão fatais ao longo da sua evolução. A questão é apenas a de saber seela se afundará por si própria ou pela ação do proletariado. A manutenção
ou o fim de uma evolução cultural com três mil anos serão decididos pela
resposta a essa pergunta. A história nada sabe sobre a imperfeita infinitude
simbolizada nos dois gladiadores eternamente em luta. O verdadeiro
político só faz projetos a prazo. E se a eliminação da burguesia não for
concretizada até um momento rapidamente calculável da evolução
econômica e técnica (...),
então tudo está perdido. É preciso cortar o rastilho antes que a centelha
chegue à dinamite. Intervenção, risco e rapidez do político são coisas
técnicas – não cavaleirescas.
Recordações de viagem
Atrani. A escadaria barroca, curva e de leve inclinação até a igreja. A
grade atrás da igreja. As ladainhas das velhas na hora das ave-marias:
entrada na escola, primeira classe da morte. Quando nos voltamos, a igreja
confina com o mar, como o próprio Deus. Todas as manhãs a era cristã
desponta no rochedo, mas entre as muralhas, lá embaixo, a noite continua a
dividir-se pelos quatro velhos bairros romanos. Ruelas como poços de
ventilação. Na praça do mercado, uma fonte. Ao cair da tarde, mulheres à
sua volta. Depois, a solidão: murmúrio arcaico da água.
(...)
Moscou, catedral de S. Basílio. Aquilo que a Madonna bizantina tem
nos braços é apenas um boneco de madeira em tamanho natural. A sua
expressão de dor diante de um Cristo cuja condição de criança é apenas
sugerida, apenas representada, é mais intensa do que a que ela poderia
mostrar com uma imagem autêntica do menino.
Boscotrecase. Nobreza de um bosque de pinheiros: o seu teto forma-se
sem entrelaçamentos.
Nápoles, Museu Nacional. Nos seus sorrisos, estátuas arcaicas
mostram a quem as observa a consciência do corpo, tal como uma criança
nos traz as flores que acabou de colher, soltas e dispersas; a arte mais
tardia, pelo contrário, marca de forma mais acentuada as expressões do
rosto, como o adulto que tece com ervas cortantes o ramo destinado a durar.
Florença, batistério. No portal, a ‘Spes’ (Esperança) de Andrea
Pisano. Está sentada e ergue, desesperada, os braços para um fruto que não
alcança. E no entanto é alada. Nada de mais verdadeiro.
Andrea Pisano, Spes (Florença)
Céu. Saí em sonhos de uma casa e olhei o céu noturno. Dele descia um
brilho muito forte. É que, estando sem estrelas, estavam nele fisicamente
presentes as figuras segundo as quais agrupamos as estrelas em signos. Um
leão, uma virgem, uma balança e muitas outras, em densas aglomerações de
astros, olhavam fixamente para a Terra cá em baixo. Da Lua, nem rastro.
Oculista
No verão são as pessoas gordas que dão nas vistas, no inverno as
magras.
Na primavera, em dias de sol claro, damos pelas folhas novas, nos de
chuva fria saltam-nos à vista os ramos ainda sem folhas.
Pela posição dos pratos e das xícaras, dos copos e das comidas, aquele
que ficou apercebe-se de como decorreu um serão em que se receberam
hóspedes.
Princípio básico da sedução: multiplicar-se por sete; colocar-se,
desdobrado em sete, em volta daquela que se deseja.
O olhar é a última gota do ser humano.
(...)
Policlínica
O autor coloca os pensamentos sobre a mesa de mármore do café.
Longa meditação: aproveita o tempo em que o vidro – a lente com a qual
examina o doente – ainda não está à sua frente. Depois, vai retirando os
seus instrumentos: caneta, lápis e cachimbo. A multidão dos
frequentadores, disposta em anfiteatro, constitui o seu público clínico. O
café, servido por mão solícita e assim saboreado, submete o pensamento aos
efeitos do clorofórmio. Aquilo em que pensa tem tanto a ver com a coisa
em si como o sonho do narcotizado com a intervenção cirúrgica. Fazem-se
incisões nas cuidadas linhas da caligrafia, o operador desloca acentos no seu interior, cauteriza as protuberâncias verbais e insere, como se fosse uma
costela de prata, uma palavra estrangeira. Por fim, costura tudo com os
pontos finos da pontuação e paga ao criado, seu assistente, em numerário.
Espaços livres para alugar
A estultícia daqueles que lamentam o declínio da crítica. Porque a hora
da crítica já há muito tempo que passou. A crítica é uma questão de
distância certa. O seu elemento é o de um mundo em que o que importa são
as perspectivas e os pontos de vista, e em que ainda era possível assumir
uma posição. Entretanto, as coisas tornaram-se excessivamente agressivas
para a sociedade humana. A ‘imparcialidade’, o ‘olhar livre’ são mentiras,
se não mesmo a mais ingênua expressão da pura incompetência. O olhar
hoje mais essencial, o olho mercantil que penetra no coração das coisas,
chama-se propaganda. Esta arrasa o espaço livre da contemplação e
aproxima tanto as coisas, coloca-as tão debaixo do nariz quanto o
automóvel que sai da tela de cinema e cresce, gigantesco, tremeluzindo em
direção a nós. E do mesmo modo que o cinema não oferece móveis e
fachadas a uma observação crítica completa, mas dá apenas a sua
espetacular, rígida e repentina proximidade, também a propaganda autêntica
transporta as coisas para primeiro plano e tem um ritmo que corresponde ao
de um bom filme. Com isso, foi-se de vez a ‘objetividade’, e diante das
imagens hiperdimensionais nas paredes das casas, onde o ‘Chlorodont’ e o ‘Sleipnir’ estão ao alcance das mãos de gigantes, o sentimentalismo curado
liberta-se à americana, como aquelas pessoas a quem já nada move nem
comove, e que aprendem novamente a chorar no cinema. Mas para o
homem da rua, aquilo que dele aproxima assim as coisas, o que estabelece o
contato decisivo com elas, é o dinheiro. E o crítico pago, que manipula o
valor dos quadros na galeria de arte do marchand, sabe sobre eles coisas
que, se não são melhores, são certamente mais importantes do que as que
sabe o amador de arte que os vê na vitrine. Solta-se do tema da obra um
calor que dá asas ao seu sentimento. O que é que torna, afinal, a propaganda
tão superior à crítica? Não será aquilo que diz a escrita elétrica e móvel do
anúncio – mas a poça de fogo que a reflete no asfalto.
Equipamento de escritório
O gabinete do chefe está abarrotado de armas. Aquilo que impressiona
quem entra, porque parece conforto, é de fato um arsenal escondido. O
telefone em cima da mesa está sempre a tocar. Interrompe-nos no momento
mais importante, e dá ao nosso interlocutor tempo para pensar na resposta
que lhe convém. Entretanto, alguns farrapos da conversa mostram como
aqui se trata de muitos assuntos bem mais importantes do que aquele que
viemos resolver. Dizemo-lo a nós próprios, e pouco a pouco começamos a
descrer do nosso ponto de vista. Começamos a perguntar-nos de quem se
estará falando ali, apercebemo-nos, assustados, de que o interlocutor parte
no dia seguinte para o Brasil e, logo depois, de que ele está de tal modo
solidário com a firma que a enxaqueca de que se queixa ao telefone é
apresentada como uma lamentável perturbação dos negócios, e não como
uma oportunidade de que se poderia tirar proveito. Chamada ou não, a
secretária acaba por entrar. É muito bonita. E se o patrão há muito pôs as
cartas na mesa quanto aos seus encantos, ou pela indiferença, ou pela
admiração, o novato a observará mais que uma vez, e ela sabe bem como
ganhar a aprovação do chefe. O seu pessoal atarefa-se, pondo sobre a mesa
vários ficheiros nos quais o visitante sabe estar incluído sob várias rubricas.
Começa a ficar cansado. Mas o outro, que tem a luz atrás de si, adivinha
com satisfação o que se passa, olhando para os traços do rosto do
interlocutor, ofuscado de tanta luz. Também a poltrona faz o seu efeito:
uma pessoa fica ali sentada afundando-se como no dentista, e acaba por
aceitar o penoso procedimento como se fosse a ordem natural das coisas.
Mais tarde ou mais cedo, seguir-se-á também a esse tratamento uma
liquidação.
[...]
Fechado para obras!
Em sonhos, pus fim à vida com uma espingarda. Quando soou o tiro não
acordei, mas vi-me durante algum tempo já cadáver. Só depois acordei.
Restaurante automático ‘Augias’
Esta é a mais séria objeção ao estilo de vida do solteirão: toma as
refeições sozinho. Comer só é meio caminho andado para nos tornarmos
insensíveis e rudes. Quem se habitua a isso tem de viver de forma
espartana, para não se degradar. Os eremitas alimentavam-se frugalmente,
por esta, se não por outra razão. Porque só em comunidade se faz justiça à
comida, que quer ser partilhada e repartida para fazer proveito. Quem quer
que fosse que o recebesse antigamente, um mendigo à mesa enriquecia
qualquer refeição. O importante é repartir e dar, não a conversação social à
volta da mesa. Mas, por outro lado, é surpreendente como a convivência se
torna crítica sem refeição. Quando se oferece alguma coisa para comer e
beber nivelam-se e unem-se as pessoas. O conde de Saint-Germain
mantinha-se em jejum diante de mesas fartas, e isso era suficiente para
dominar a conversação. Mas quando todos ficam de estômago vazio,
surgem logo as rivalidades e os seus conflitos.
(...)
Primeiros socorros técnicos
Nada de mais mísero do que uma verdade que se exprime tal como foi
pensada. Em tais casos, a sua passagem a escrito nem sequer chega a ser
uma má fotografia. E a verdade recusa-se também (como uma criança,
como uma mulher que não nos ama) a ficar quieta e com expressão amável
diante da objetiva da escrita depois de nos termos acocorado sob o pano
preto. Quer ser afugentada de súbito e de rompante, arrancada à
autocontemplação por um tumulto, por uma música, por gritos de socorro.
Quem iria contar os sinais de alarme com que está equipada a alma do
verdadeiro escritor? E ‘escrever’ mais não é do que pô-los a funcionar.
Então, a doce odalisca assusta-se, pega na primeira coisa que lhe vem à mão
no caos do seu boudoir, a nossa caixa craniana, veste-se dela e assim, quase
irreconhecível, foge de nós e cai no meio do povo. Mas terá de ser muito
bem constituída, de saudável compleição para se mostrar assim em público,
disfarçada, acossada, mas vitoriosa e amável.
(...)
(...)
De fato, em nenhuns outros como nesses documentos o capitalismo se
manifesta tão ingênuo na sua solene seriedade. O que não falta aqui são
crianças inocentes a brincar em volta de algarismos, deusas segurando
tábuas da lei, heróis maduros enfiando a espada na bainha perante unidades
monetárias – um mundo em si, a arquitetura da fachada do inferno. Se
Lichtenberg tivesse vivido em época de grande difusão do papel-moeda, o
plano dessa obra não lhe teria escapado.
Proteção legal gratuita
Editor: As minhas expectativas saíram gravemente frustradas. O que o
senhor escreve não tem qualquer efeito sobre o público, não atrai mesmo
nada. E olhe que eu não poupei no arranjo gráfico. Arruinei-me com os
custos da publicidade. O senhor sabe como continuo a apreciá-lo. Mas não poderá levar-me a mal por agora a minha consciência comercial também se
fazer sentir. Se há alguém que faz o que pode pelos seus autores, sou eu.
Mas, afinal, também eu tenho de pensar em mulher e filhos. Naturalmente
que não estou a insinuar que os prejuízos dos últimos anos são culpa sua.
Mas o sentimento de amarga desilusão, esse ficará. De momento não posso
de forma alguma continuar a dar-lhe o meu apoio.
Autor: (...) Podia
muito bem ter escolhido uma profissão honesta, como o seu pai. Mas não, a
vida é hoje, e amanhã logo se vê – a juventude é assim. Pode continuar a
entregar-se a esses seus hábitos. Mas evite fazer-se passar por um
comerciante honrado. Não ponha esse ar inocente se esbanjou tudo; não
venha com a história do seu dia de oito horas de trabalho e da noite em que
também quase não pregou olho. ‘Uma coisa acima de tudo, meu filho, sê
fiel e verdadeiro!’ E não faça cenas com os seus números, senão ainda o
põem na rua.
[...]
Agência de apostas
A existência burguesa é o regime dos assuntos privados. Quanto mais
importante e cheio de consequências for um modo de comportamento, tanto
mais aquela o dispensa de controle. Fé política, situação financeira, religião
– tudo isso quer esconder-se, e a família é a construção podre e sinistra em
cujos cubículos e recantos se instalaram os mais sórdidos instintos. O
filisteísmo proclama a privatização total da vida amorosa. Assim, fazer a
corte à mulher transformou-se num processo mudo e crispado a sós, e esse
modo de fazer a corte, totalmente privado, desvinculado de qualquer
responsabilidade, é o que há de realmente novo no flirt. Contra isso, o tipo
proletário e o feudal assemelham-se pelo fato de, nesse processo, terem de
vencer não tanto a mulher, mas os seus concorrentes. Mas isso é um sinal de
muito mais profundo respeito pela mulher, e não apenas da sua ‘liberdade’;
significa estar disposto a seguir a sua vontade sem lhe perguntar opinião.
Feudal e proletária é a transferência dos momentos eróticos para a esfera
pública. Mostrar-se com uma mulher nesta ou naquela ocasião pode
significar mais do que dormir com ela. E, consequentemente, também no
casamento aquilo que conta não é a estéril ‘harmonia’ dos cônjuges: tal
como o filho que nasce, também a força espiritual do casamento se
manifesta como efeito excêntrico das suas lutas e da sua concorrência.
[...]
Proibida a entrada a mendigos e vendedores ambulantes!
Todas as religiões tiveram grande respeito pelos mendigos, porque estes
são a prova de que o espírito e a regra, as consequências e o princípio
falham vergonhosamente numa coisa tão singela e banal quanto sagrada e
vivificante como era a esmola.
Queixamo-nos dos mendigos nos países do sul e esquecemo-nos de que
a insistência com que se nos colam é tão legítima quanto a obstinação do
estudioso perante um texto difícil. Não há sombra de hesitação, não há
indício, ainda que imperceptível, de vontade ou reflexão que eles não leiam
na nossa fisionomia. A telepatia do cocheiro que, com o seu chamamento,
nos vem realmente mostrar que não diríamos não a uma voltinha, e a do
vendedor que, do meio da sua quinquilharia, mostra o único colar ou
camafeu que nos poderia atrair têm a mesma natureza.
Para o planetário
Se, como Hillel24 fez em tempos para a doutrina judaica, quiséssemos
formular com a maior concisão, assentando num só pilar, a doutrina da
Antiguidade, teríamos de chegar à fórmula: ‘A Terra pertencerá apenas
àqueles que vivem das forças do cosmos’. Nada distingue mais o homem
antigo do moderno do que a sua entrega a uma experiência cósmica que este
último mal conhece. O declínio dessa faculdade anuncia-se já no
florescimento da astronomia no início da Idade Moderna. Kepler,
Copérnico, Tycho Brahe não foram certamente movidos apenas por
impulsos científicos. Apesar disso, há na acentuação exclusiva de uma
ligação ótica com o universo, a que a astronomia a breve trecho levou, um
sinal daquilo que estaria para vir. A relação antiga com o cosmos
processava-se de outro modo: pelo êxtase. De fato, o êxtase é a experiência
pela qual nos asseguramos do que há de mais próximo e de mais distante, e
nunca de uma coisa sem a outra. Mas isso significa que só em comunidade
o homem pode comunicar com o cosmos em êxtase. A desorientação que
ameaça os modernos vem-lhes de considerarem essa experiência irrelevante
e desprezível e de a verem apenas como vivência contemplativa individual
em belas noites estreladas. Não, ela voltará sempre a impor-se, e então nem
povos nem gerações lhe escaparão, como se viu, da forma mais terrível, na
última guerra, que foi uma tentativa de religação, nova e inaudita, com as
forças cósmicas. Massas humanas, gases, energias elétricas foram lançados em campo aberto, correntes de alta frequência atravessaram as paisagens,
novos astros apareceram no céu, o espaço aéreo e as profundezas dos mares
ressoavam de hélices, e por toda parte se escavavam fossas sacrificiais na
terra-mãe. Esse grande assédio feito ao cosmos consumou-se pela primeira
vez à escala planetária, isto é, no espírito da técnica. Mas como a avidez de
lucro da classe dominante pensava satisfazer a sua vontade à custa dela, a
técnica traiu a humanidade e transformou o tálamo nupcial num mar de
sangue. A dominação da natureza, dizem os imperialistas, é a finalidade de
toda técnica. Mas quem confiaria num mestre da palmatória que declarasse
como finalidade da educação a dominação das crianças pelos adultos? Não
será a educação, antes de mais nada, a indispensável ordenação das relações
entre as gerações, e, portanto, se quisermos falar de dominação, a
dominação dessas relações geracionais, e não das crianças? Assim também
a técnica não é dominação da natureza: é a dominação da relação entre a
natureza e a humanidade. É certo que os homens, enquanto espécie, estão
há dezenas de milhares de anos no fim da sua evolução; mas a humanidade,
enquanto espécie, está no começo. A técnica organiza para ela uma physis
na qual o seu contato com o cosmos se constitui de forma nova e diferente
do que acontece com os povos e as famílias. Basta lembrar a experiência
com velocidades por meio das quais a humanidade se prepara agora para
viagens vertiginosas ao interior do tempo, para deparar aí com ritmos que
servirão para fortalecer os doentes, como antes o faziam em altas
montanhas ou nos mares do Sul. Os lunaparques são uma prefiguração dos
sanatórios. O terror da autêntica experiência cósmica não se liga àquele
minúsculo fragmento de natureza que nos habituamos a designar de ‘natureza’. (...) O poder do proletariado é o índice do seu processo de cura. Se
a sua disciplina não o penetrar até a medula, nenhum argumento pacifista o
salvará. O ser vivo só supera a vertigem da destruição no êxtase da
procriação.
24 Hillel: sábio judeu que viveu na segunda metade do último século antes de Cristo e aproximadamente no primeiro quartel do século I da nossa era. Fundador e grande mestre da exegese
bíblica e primeiro nome importante da tradição talmúdica do judaísmo.”
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única / Infância berlinense: 1900 / Walter Benjamin; edição e tradução de João Barrento. Einbahnstraße; Berliner Kindheit um 1900. —1a ed; 4a reimp— Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2022. — (Filô/Benjamin)
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