“Sala do café da manhã
(...)
Aqueles que fogem ao contato com o dia, seja por receio dos homens, seja por necessidade de concentração interior, não querem comer e não dão importância ao café da manhã. Deste modo evitam a passagem brusca entre o mundo noturno e o diurno. Cuidados que apenas se justificam quando o sonho é queimado pelo trabalho matinal intenso, ou também pela oração, mas de outro modo leva a uma confusão dos ritmos de vida. Nesse estado, o relato dos sonhos é fatal, porque o indivíduo, em parte ainda entregue ao universo onírico, o trai nas palavras que usa e tem de contar com a sua vingança. Em termos mais modernos: trai-se a si mesmo. Libertou-se da proteção da ingenuidade sonhadora e, ao tocar sem reflexão nas suas visões oníricas, expõe-se. Pois só da outra margem, em pleno dia, se deve interpelar o sonho a partir de uma recordação distanciada. A esse além do sonho só se pode chegar através de uma purificação análoga à da lavagem, mas totalmente diferente dela, pois passa pelo estômago. Quem está em jejum fala do sonho como se falasse ainda de dentro do sono.
II. Devem introduzir-se termos técnicos para conceitos que, excluindo essa única definição, não serão novamente usados no livro.
III. As diferenciações conceituais penosamente conseguidas no texto deverão ser apagadas nas notas às passagens correspondentes.
IV. Devem dar-se exemplos para aqueles conceitos que são tratados apenas no seu significado geral. Por exemplo, quando se falar de máquinas devem enumerar-se todos os seus tipos.
V. Tudo o que esteja previamente esclarecido acerca de um assunto deve ser corroborado pelo maior número possível de exemplos.
VI. Os complexos de problemas suscetíveis de representação gráfica deverão ser descritos por palavras. Por exemplo, em vez de desenhar uma árvore genealógica, devem expor-se e descrever-se todas as relações de parentesco.
VII. Os vários opositores que partilham dos mesmos argumentos devem ser refutados um a um.
[...]
Para homens
Convencer é estéril.
[...]
Embaixada mexicana
Je ne passe jamais devant un fetiche de bois,
un Bouddha doré, une idole mexicaine sans me dire
C’est peut-être le vrai dieu.2
Charles Baudelaire
2 ‘Nunca passo diante de um fetiche de madeira, de um Buda dourado, de um ídolo mexicano, sem dizer a mim mesmo: Talvez seja o verdadeiro deus.’ (...)
Solicita-se ao público que proteja as áreas plantadas
(...)
O comentário e a tradução relacionam-se com o texto como o estilo e a
mimese com a natureza: o mesmo fenômeno sob pontos de vista diferentes.
Na árvore do texto sagrado, ambos são apenas as folhas eternamente
rumorejantes, na árvore do profano, os frutos que caem no tempo que é o
seu.
[...]
Ministério do Interior
Quanto maior for a hostilidade de alguém em relação à tradição, tanto mais implacável será a necessidade que tem de submeter a sua vida privada às normas que deseja elevar à condição de legisladoras de uma situação social futura. É como se estas lhe impusessem o dever de as antecipar pelo menos no seu círculo de vida próprio — a elas, que ainda se não concretizaram em lugar nenhum. Já o homem que se sabe em consonância com as mais antigas tradições da sua classe ou do seu povo, coloca de vez em quando a sua vida privada ostensivamente em
oposição às máximas que intransigentemente defende na vida pública e enaltece no seu intimo, sem quaisquer problemas de consciência, o seu próprio comportamento como a mais convincente prova da inabalável autoridade dos princípios que professa.
[...]
Kaiserpanorama [‘Panorama imperial’]
Viagem pela inflação alemã
II. (...) um cruzamento de estupidez e covardia, aquela que fala da catástrofe iminente — ao dizer ‘as coisas não podem continuar assim’ — dá particularmente que pensar (...) ele acha que tem de considerar instável toda a
situação que lhe retire posses. (...)
II. Um estranho paradoxo: as pessoas, quando agem, pensam apenas no
interesse pessoal mais mesquinho, mas ao mesmo tempo são, mais do que
nunca, determinadas no seu comportamento pelo instinto das massas. E
nunca como hoje os instintos das massas se enganaram tanto nem foram tão
estranhos à vida. Nas situações em que o obscuro instinto dos animais –
como tantas histórias contam – é capaz de encontrar saída para o perigo
iminente mas ainda invisível, esta sociedade, na qual cada um tem apenas
em vista a sua própria e mísera abastança, sucumbe, com uma insensibilidade animal, mas sem aquele saber inconsciente dos animais,
como uma massa cega, ao primeiro perigo com que se confronta, e a
diversidade dos objetivos individuais torna-se irrelevante perante a
identidade das forças determinantes. Por mais de uma vez foi demonstrado
que a sua dependência de uma vida a que se habituou, mas que se perdeu há
muito tempo, está tão empedernida que põe a perder a aplicação, tão
tipicamente humana, do intelecto sob a forma da previdência, mesmo em
situações drasticamente perigosas. E assim a imagem da estupidez se
consuma em tais situações: insegurança, mesmo perversão dos instintos
vitais e impotência, total abdicação do intelecto. E assim a imagem da estupidez se consuma em tais situações: insegurança, mesmo perversão dos instintos vitais e impotência, total abdicação do intelecto. (...)
III. Todas as relações humanas mais próximas são afetadas por uma limpidez penetrante, quase insuportável, à qual dificilmente conseguem resistir. De fato, como o dinheiro constitui, por um lado, o centro absorvente de todos os interesses da existência, e, por outro lado, esta é precisamente a barreira perante a qual quase todas as relações humanas fracassam, cada vez desaparecem mais, no plano natural como no moral, a confiança espontânea, a tranquilidade e a saúde.
IV. Não é por acaso que se fala da miséria ‘nua e crua’. O que há de mais funesto na exibição dessa miséria — que, sob o signo da necessidade, se tornou habitual, embora mostre apenas a milésima parte do que está escondido — não é a compaixão, nem a consciência, igualmente terrível, da imunidade própria, sentida por quem vê, mas a vergonha disso. Tornou-se impossível viver numa grande cidade alemã, onde a fome força os mais miseráveis a viver das notas de banco com que os transeuntes procuram tapar uma nudez que os fere.
V. ‘A pobreza não envergonha ninguém.’ E, no entanto, eles envergonham os pobres. Fazem isso, e ao mesmo tempo consolam-nos com a frase bonitinha. Que vem daqueles que em tempos teriam alguma aceitação, mas para quem há muito chegou a hora do declínio. É exatamente o que se passa com aquela outra frase brutal ‘Quem não trabalha não come’. Nos tempos em que o trabalho era o sustento de cada um também havia pobreza, que não envergonhava, se vinha das
más colheitas ou de qualquer outra fatalidade. O que envergonha é essa
penúria em que milhões já nascem e centenas de milhares são apanhados, caindo na pobreza. O esterco e a miséria crescem à sua volta como muros levantados por mãos invisíveis. E do mesmo modo que cada um, sozinho, é capaz de suportar muita coisa, mas sente uma compreensível vergonha quando a mulher o vê suportar tudo isso e o aceita, assim também cada indivíduo isolado pode aceitar muita coisa, desde que esteja sozinho, e tudo, desde que o esconda. Mas nunca ninguém poderá fazer as pazes com a pobreza quando esta se abate como sombra gigantesca sobre o seu povo e a sua casa. Nessa altura, o que tem a fazer é manter os sentidos despertos para toda a humilhação que sobre eles recaia, e controlá-los até que o seu sofrimento deixe de escorregar pelo plano inclinado da amargura, para enveredar pelo trilho ascendente da revolta. Mas toda esperança será vã enquanto todos esses destinos terríveis e sombrios forem apresentados pela imprensa diariamente, de hora a hora, sempre com causas e consequências fictícias, não ajudando ninguém a reconhecer as forças obscuras a que a sua vida passou a estar submetida.
(...)
VII. Vai-se perdendo a liberdade do diálogo. Antigamente era natural, entre pessoas que dialogavam, ir ao encontro do ponto de vista do outro; hoje, pergunta-se logo pelo preço dos sapatos ou do guarda-chuva. Qualquer conversa cai fatalmente no tema das condições de vida e do dinheiro. Mas não se trata das preocupações e dos sofrimentos de cada um, coisa em que talvez se pudessem ajudar uns aos outros — é a observação do todo que ocupa a conversa. É como se estivéssemos presos num teatro e fôssemos obrigados a seguir a peça que se desenrola no palco, quer quiséssemos, quer não, e tivéssemos de fazer dela, quer quiséssemos, quer não, o objeto do nosso pensamento e do nosso discurso.
VIII. Quem não fugir à percepção da decadência passará sem demora à justificação particular das razões pelas quais permanece e age neste caos e dele participa. A cada ponto de vista sobre o fracasso geral corresponde uma exceção para a sua própria esfera de ação, a sua morada e as suas circunstâncias particulares. Impõe-se quase por toda a parte a vontade cega de salvar a todo o custo o prestigio da existência pessoal, em vez de libertá-la da cegueira geral, desprezando soberanamente a sua impotência e o seu enredamento. (...)
IX. (...) Qualquer homem livre é para eles uma aparição extravagante. (...)
X. (...) Não esperam qualquer ajuda do próximo. Cobradores, funcionários, operários e vendedores — todos eles se sentem representantes de uma matéria recalcitrante cuja periculosidade se esforçam por revelar através da sua própria rudeza. E a própria terra se entregou à degeneração das coisas, pela qual, seguindo o exemplo da decadência humana, a castigam. (...)
XI. O desenvolvimento de todo movimento humano, quer ele derive de impulsos espirituais, quer naturais, pode contar com a resistência
desmesurada do meio circundante. (...) Poucas coisas reforçarão mais a
força fatal do impulso para o nomadismo que alastra do que as restrições
à liberdade de circulação; nunca foi tão grande a discrepância entre a liberdade de movimentos e a abundância de meios de transporte.
XII. Passa-se com a cidade o mesmo que com todas as coisas que vão perdendo a expressão da sua essência ao entrarem num processo incessante de promiscuidade e hibridação, que substitui o que é próprio pela ambiguidade.
(...)
XIV. Dos mais antigos usos dos povos parece chegar até nós a advertência que nos diz que devemos abster-nos do gesto da cobiça ao acolhermos aquilo que tão generosamente recebemos da natureza. Porque nada podemos oferecer de nosso à terra-mãe. Por isso, é preciso mostrar respeito ao receber, devolvendo-lhe de novo uma parte de tudo o que ela nos vai oferecendo, antes mesmo de nos apossarmos do que é nosso. É esse respeito que encontramos no antigo costume da libatio. Talvez seja também essa antiquíssima
experiência moral que sobrevive, transformada, na proibição de recolher as espigas esquecidas e apanhar as uvas caídas, na medida em que estas podem servir à terra ou aos antepassados que enviam as
suas bênçãos. O costume ateniense proibia que se apanhassem as migalhas
à refeição, porque estas pertencem aos heróis. Se a sociedade, presa da
necessidade e da cobiça, degenera a ponto de já só ser capaz de receber
os dons da natureza saqueando-a, se colhe os frutos verdes para poder
vendê-los a bom preço no mercado e se tem de esvaziar todas as travessas
só para se saciar, a sua terra empobrecerá e o campo terá más
colheitas.
[...]
Atenção aos degraus!
O trabalho numa prosa de boa qualidade tem très niveis: um musical, e da sua composição, um arquitetônico, o da sua construção, e por fim um têxtil, o da sua tecelagem.
Revisor tipográfico ajuramentado
O nosso tempo, a antítese perfeita do Renascimento, opõe-se particularmente à situação que viu nascer a invenção da imprensa. Por acaso, ou talvez não, o seu aparecimento na Alemanha dá-se na época em que o livro, no mais nobre sentido do termo, o Livro dos Livros, se tornou patrimônio popular através da tradução da Bíblia por Lutero. Ora, tudo parece indicar que o livro, nesta sua forma tradicional, tem os dias contados. Mallarmé, que descortinou no meio da cristalina construção da sua escrita, sem dúvida tradicionalista, a imagem autêntica do que estava para vir, integrou pela primeira vez, no Coup de dés, as tensões gráficas do reclame na escrita. As experiências com a escrita feitas depois dele pelos Dadaístas não partiam, é certo, do impulso construtivista, mas das reações nervosas e precisas dos literatos, e por isso foram muito menos consistentes do que as experiências de Mallarmé, que nasceram do âmago do seu próprio estilo. Mas permitem, por isso mesmo, reconhecer a atualidade de tudo aquilo que Mallarmé, como uma mônada, no seu mais hermético gabinete, vinha descobrindo, numa harmonia pré-estabelecida com tudo o que de decisivo acontece nos nossos dias na economia, na técnica, na vida pública. A escrita, que encontrara refúgio no livro impresso, onde levava uma existência autônoma, é implacavelmente arrastada para a rua pelos reclames e submetida às brutais heteronomias do caos econômico. É essa a severa escola da sua nova forma. Quando, há séculos, ela começou a deitar-se, transformando-se de inscrição na vertical em caligrafia que repousava na inclinação da estante, para finalmente encontrar no livro impresso a sua cama, hoje recomeça, igualmente de forma lenta, a levantar-se do chão. Já o jornal se lê mais na vertical do que na horizontal, e o cinema e o reclame forçam definitivamente a escrita a assumir uma verticalidade ditatorial. E antes de os nossos contemporâneos poderem abrir um livro já um denso turbilhão de letras em movimento, coloridas, concorrentes, lhes caiu diante dos olhos, tornando muito remotas as possibilidades de eles se concentrarem no silêncio arcaico do livro. As nuvens de gafanhotos da escrita, que hoje já encobrem o sol do pretenso espírito aos habitantes das metrópoles, tornar-se-ão mais densas a cada ano que passa. As renovadas exigências da vida dos negócios vão mais longe. O catálogo de fichas significa a conquista da escrita tridimensional, um contraponto surpreendente para a tridimensionalidade da escrita nas suas origens, como runa ou escrita de nós. (E já hoje, como ensinam os modos de produção científica atuais, o livro é uma mediação antiquada entre dois sistemas de fichagem, porque tudo o que é essencial se encontra no ficheiro do investigador que o organizou, e o erudito que por ele estuda assimila-o ao seu próprio ficheiro.) Mas não há dúvida de que a evolução da escrita não ficará previsivelmente ligada aos ditames de uma atividade caótica no âmbito da ciência e da economia; virá antes o momento em que a quantidade dará lugar à qualidade, e a escrita, que penetra cada vez mais fundo no âmbito gráfico da sua nova e excêntrica capacidade de se dar como imagem, se apoderará subitamente dos seus conteúdos adequados. Essa escrita da imagem só poderá ser manipulada por poetas que, como nas origens, serão sobretudo especialistas da escrita que terão de saber explorar os domínios nos quais (sem se considerarem demasiado importantes) tem lugar a construção dessas formas de escrita : os dos diagramas estatísticos e técnicos. Com a criação de uma escrita internacional conversível, eles renovarão a sua autoridade sobre a vida dos povos e descobrirão uma função em confronto com a qual todas as aspirações de renovação da retórica se revelarão ser devaneios antiquados.Material didático
Princípios dos calhamaços, a arte de fazer livros grossos
I. O desenvolvimento da obra deve ser permanentemente entrecortado pela apresentação prolixa do respectivo plano.II. Devem introduzir-se termos técnicos para conceitos que, excluindo essa única definição, não serão novamente usados no livro.
III. As diferenciações conceituais penosamente conseguidas no texto deverão ser apagadas nas notas às passagens correspondentes.
IV. Devem dar-se exemplos para aqueles conceitos que são tratados apenas no seu significado geral. Por exemplo, quando se falar de máquinas devem enumerar-se todos os seus tipos.
V. Tudo o que esteja previamente esclarecido acerca de um assunto deve ser corroborado pelo maior número possível de exemplos.
VI. Os complexos de problemas suscetíveis de representação gráfica deverão ser descritos por palavras. Por exemplo, em vez de desenhar uma árvore genealógica, devem expor-se e descrever-se todas as relações de parentesco.
VII. Os vários opositores que partilham dos mesmos argumentos devem ser refutados um a um.
A obra típica do erudito atual pede para ser lida como um catálogo. Mas quando chegaremos a escrever livros como catálogos? Quando a má qualidade do conteúdo contaminar assim a forma exterior, nascerá uma obra excelente, na qual se atribui um determinado valor a cada opinião, sem que, no entanto, essas opiniões sejam postas à venda.
A máquina de escrever só tornará estranha a caneta de tinta permanente na mão daqueles que escrevem quando a exatidão das soluções tipográficas for diretamente assimilada pela concepção dos seus livros. É provável que então sejam necessários novos sistemas capazes de produzir caracteres mais variáveis. Tais sistemas irão substituir a escrita manual pela ativação nervosa dos dedos que comandam teclas. Um período que, concebido em forma métrica, veja posteriormente o seu ritmo ser afetado num único lugar constitui a mais bela frase de prosa que se possa imaginar. Desse modo, um raio de luz penetra por uma pequena brecha na parede no laboratório do alquimista, fazendo resplandecer cristais, esferas e triângulos.
[...]
É proibido afixar cartazes!
A técnica do escritor em treze teses
I. Quem quiser lançar-se a escrever uma obra de fôlego, instale—se comodamente e conceda a si próprio ao fim de cada dia de trabalho tudo aquilo que não prejudique a sua continuação.
II. Fale do que escreveu, se quiser, mas não leia nada a ninguém enquanto o trabalho estiver em curso. Toda a satisfação que dai possa retirar retardará o seu ritmo. Seguindo esse regime, o desejo crescente de comunicação acabará por ser um estimulo à conclusão.
III. Quanto às condições de trabalho, procure fugir à mediocridade da vida quotidiana. O meio sossego, acompanhado de ruídos pouco
estimulantes, é degradante. Já o ruído de fundo de um estudo musical ou
da confusão de vozes pode ser tão importante para o trabalho quanto o silêncio tangível da noite. Se este afina o ouvido interior, aqueles se tornam pedra de toque de uma dicção cuja riqueza consegue absorver em si até esses ruídos excêntricos.
IV. Evite servir-se do primeiro instrumento de trabalho que tenha à mão. E útil o apego pedante a determinados tipos de papel, canetas, tintas. Sem luxos, mas com a indispensável abundância desses utensílios.
V. Não deixe que nenhum pensamento passe por você incógnito, e use o seu bloco de notas com o mesmo rigor com que os serviços oficiais fazem o registro dos estrangeiros.
VI. Torne a sua caneta avessa à inspiração, e ela a atrairá a si com a força de um imã. Quanto mais refletir antes de passar a escrito uma intuição, tanto mais amadurecida ela se te oferecerá. A fala conquista o pensamento, mas a escrita domina-o.
VII. Nunca deixe de escrever pelo fato de não o ocorrer mais nada. Um dos mandamentos da honra literária é o de interromper a escrita apenas quando há que respeitar uma hora marcada (uma refeição, um encontro) ou quando damos o trabalho por terminado.
VIII. Preencha os momentos de falta de inspiração passando a limpo o que já escreveu. Entretanto, a inspiração despertará.
IX. Nulla dies sine linea — mas semanas sim.
X. Nunca de uma obra por acabada sem ter mergulhado nela uma vez mais, desde o serão até ao nascer do dia.
XI. Não escreva a conclusão do trabalho no lugar onde habitualmente trabalha. Ai, perderia a coragem de fazê-lo.
XII. Graus da elaboração da obra: pensamento — estilo — escrita. A finalidade do passar a limpo é a de que agora toda a atenção se concentre na caligrafia. O pensamento mata a inspiração, o estilo aprisiona o pensamento, a escrita recompensa o estilo.
XIII. A obra é a máscara mortuária da sua concepção.
Treze teses contra os snobes
(O snobe no escritório particular da critica de arte. À esquerda um desenho de criança, à direita um fetiche. O snobe: ‘Perante isto. todo Picasso pode fazer as malas!’)
I. O artista faz uma obra.
O primitivo exprime-se por documentos.
II. A obra de arte só acessoriamente é um documento
Nenhum documento é, enquanto tal, uma obra de arte.
III.A obra de arte é uma obra-prima.
O documento tem função didática.
IV. Os artistas aprendem o seu oficio com a obra de arte.O público é educado perante os documentos.
V. As obras de arte distanciam-se umas das outras pela sua perfeição relativa.
Todos os documentos comunicam pelo lado dos conteúdos.
VI. Conteúdo e forma são uma só coisa na obra de arte: substância.
Nos documentos domina em absoluto o material.
VII. A substância é aquilo que foi comprovado.
A matéria é aquilo que foi sonhado.
VIII. Na obra de arte, a matéria é um lastro de que a contemplação se liberta.Quanto mais nos perdemos num documento, tanto mais denso ele se torna: matéria.
IX. Na obra de arte a lei da forma é decisiva.
No documento as formas só entram dispersamente.
X. A obra de arte é sintética: central de energia.
A fecundidade do documento pede: análise.
XI. A obra de arte potencializa-se na observação repetida.
Um documento só domina pela surpresa.
XII. A virilidade das obras reside no ataque.
A inocência serve de capa ao documento.
XIII. O artista parte à conquista de novas substâncias.
O homem primitivo entrincheira-se atrás dos materiais.
A técnica do critico em treze teses
I. O critico é um estrategista no combate literário.
II. Quem não souber tomar partido, que fique calado.
III. O critico não tem nada a ver com o exegeta de épocas artísticas passadas.
IV. A critica deve falar na linguagem dos artistas de variedades, porque os conceitos do cénacle são palavras de ordem. E é apenas nas palavras de ordem que ressoa o grito de guerra.
V. Será sempre preciso sacrificar a ‘objetividade’ ao espírito partidário, se a causa pela qual se trava o combate merecê-lo.
VI. A critica é uma questão de moral. Se Goethe ignorou Hölderlin e Kleist, Beethoven e Jean Paul, isso tem menos a ver com o seu sentido artístico do que com a sua moral.
VII. Para o crítico, a instância superior são os seus colegas, e não o público. E muito menos a posteridade.
VIII. A posteridade ou esquece ou enaltece. Só o critico julga tendo o autor à sua frente.
IX. Polêmica é destruir um livro com base em poucas das suas frases. Quanto menos foi estudado, melhor. Só quem é capaz de destruir é capaz de criticar.
X. A autêntica polêmica ocupa-se de um livro de forma tão dedicada quanto um canibal cozinha um bebê.
XI. O critico não conhece o entusiasmo pela arte. Nas suas mãos, a obra de arte é a arma desembainhada nas batalhas do espírito.
XII. O essencial da arte do critico: cunhar chavões sem trair as ideias. Os chavões de uma critica medíocre vendem os pensamentos à moda, e ao desbarato.
XIII. O público nunca pode ter razão, e apesar disso deve sentir sempre que é representado pelo critico.
Número 13
(...)
Le remploiement vierge du livre, encore, prête à
un sacrifice dont saigna la tranche rouge des
anciens tomes; l'introdution d'une arme, ou
coupe—papier, pour établir la prise de possession.
Stéphane Mallarmé”
[Le «livre»]
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única / Infância berlinense: 1900 / Walter Benjamin; edição e tradução de João Barrento. Einbahnstraße; Berliner Kindheit um 1900. —1a ed; 4a reimp— Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2022. — (Filô/Benjamin)

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