“Alan: (...) Quanto à
menção e à aceitação de Jesus como ideia espiritual válida, teria de dizer que a pergunta provavelmente se origina de uma percepção do cristianismo e do panteísmo mágico como campos fixos inevitavelmente
opostos. Com certeza, grupos cristãos mais acalorados e fundamentalistas rotularem qualquer coisa que não seja sua vertente de cristianismo
como satanismo não ajuda a afastar essa noção. Por outro lado, ocultistas classe média que se rebelam (o que é mais que compreensível) contra os valores conformistas de seus familiares e que acabam se tornando
uma imagem oposta desses valores também não ajudam. Só para registrar, no que concerne à minha própria posição, a figura de Jesus Cristo
me parece tão verdadeira e válida, tão real e simbolicamente poderosa,
quanto qualquer outra divindade com quem tenha tido alguma experiência. Em alguns sentidos até, ao ocupar, como Cristo faz, a posição
chave da cabala no sefiroth Tiphereth, ele ganha grande importância
humana, até maior do que outras divindades mais remotas. Isso significa que aceito a existência histórica de Jesus, nascido da Virgem, crucificado e ressuscitado fisicamente? Até parece. Tanto quanto aceito o
fato de que Glycon era de fato o ressurgimento físico de Asclepius, e
que seu ventríloquo Alexander descendia mesmo de Perseu e de Zeus.
Creio, como já comentei antes, que os deuses são conjuntos complexos
de ideias divinas que não têm forma física ou expressão concreta, exceto pelo próprio universo. Em outras palavras, significa que seriam as
essências que precedem nossas formas materiais. Assim, tenho grande
respeito, amor até, e mesmo adoração pela figura de Jesus, do mesmo
modo que tenho por Glycon, Selene, Hermes, Afrodite, Indra, Odin ou
qualquer outra divindade deste mundo. Entretanto, não sou cristão,
pela mesma razão que não sou odinista, rosacrussiano, muçulmano ou
membro de qualquer religião (...). Basicamente, a
palavra religião vem da raiz latina ‘religare’, como em ‘ligadura’ ou ‘ligamento’, e refere-se literalmente a estar ‘unido sob uma única crença’. (...)
[...]
Alan: (...) Tudo o que diretamente vivemos é nossa própria consciência do universo. Quanto à consciência, essa misteriosa e adorável dádiva, é a única coisa que qualquer um de nós de fato possui ou é. A ciência é a ferramenta mais precisa que a consciência conseguiu desenvolver para testar a realidade, ainda que ironicamente a ciência não possa ou não consiga discutir ou explorar a própria consciência. Porque a realidade científica está baseada inteiramente em fenômenos empíricos que podem ser reproduzidos em laboratórios. A consciência claramente não cabe nessa categoria, e por isso, está de forma irritante além dos limites da ciência, ela se transmuta num literal ‘fantasma na máquina’. Como a consciência não pode provar sua própria existência, o ‘eu’ é seu próprio ponto cego. Como um fantasma, ninguém pode de fato saber o que a consciência é, ou de onde ela veio ou vem, e a única ferramenta que conseguimos criar para testar a realidade se mostra incapaz de detectar ou medir a consciência. Ou pior, talvez amargurada pela falha em descrever o fenômeno da consciência, a ciência tenha decidido tentar um exorcismo do fantasma na máquina, simplesmente sugerindo que a consciência, na verdade, não existe. Para citar uma teoria recente, é como uma ilusão resultante dos nossos processos biológicos. Ou ainda, como diz a tendência do momento, a consciência não existiria de fato, e é na verdade um fluxo continuo de ‘memes’, ideias virais que seriam mais ou menos contrapartes metafísicas dos genes. O problema dessas tentativas de varrer o fenômeno inexplicável e irritante da consciência para debaixo do tapete de certeza materialista é que tais esforços estão condenados de saída. A tentativa, por exemplo, de descrever a consciência como resultado da biologia deve ser tentadora para cientistas, sobretudo porque a biologia é compreensivelmente uma ciência fisica que se coloca sob fundação de química consistente, a coisa que, a principio faz todas essas glândulas e tecidos que nos dão a ilusão de consciência funcionarem. Ademais, a química é uma ciência exata também confortável, pois se fundamenta na sólida estrutura da física, o que explica per feita e sensivelmente como os elementos químicos se comportam num nível submolecular. Só vamos ter mais problemas quando examinamos de perto o quão supostamente sólida é essa base da física, pois descobrimos que é toda fundamentada nos princípios da física quântica, um espaço em que tudo se comporta e funciona de acordo com os parâmetros de Alice no Pais das Maravilhas, e que, ao menos como nos ensinam, não podemos escapar da influência da mente e da percepção, agentes que atuam nas partículas subatômicas que formam nossa existência inteira. O problema é que acabamos de provar que a mente não existe e que ela não passa de um subproduto da biologia, não? E se desejar descrever o fluxo de informação que percorre nossa consciência como ‘memes’ distintos e fragmentares, então vai lá, mas o quanto isso muda qualquer coisa, exceto no reino da semântica, eu não sei. Como disse, essas tentativas de descrever a consciência estão condenadas ou, na melhor das hipóteses, não passam de esperançosos, mas inadequados esforços em explicar nossos pensamentos e ações conscientes mais simples, deixando de fora, claro, os extremos rompantes mágicos de iluminação e clareza que eu acabei me interessando. Se eu desejar um modelo funcional de consciência, algo que tenha uso real para mim, pessoal ou profissionalmente, está claro que teria de construir tudo a partir dos meus próprios esforços. A ideia de adaptar uma metáfora espacial para tratar das propriedades da mente e da consciência surgiu naturalmente das metáforas qua se inteiramente espaciais que já usamos para se referir à consciência. Por exemplo, falamos de ter uma coisa na mente, de coisas que vem ou que estão frescas na cabeça, comentamos sobre perder a cabeça, clarear os pensamentos ou estar com a cabeça no lugar. No entanto, nosso crânio é inteiramente preenchido por um tipo de massa gosmenta, eletrificada e rosa-acinzentado em que nenhum espaço físico poderia existir dentro, em cima ou embaixo, na frente ou do lado. Quando falamos de uma consciência elevada, quantos metros acima do mar deveria estar? A ideia de uma consciência desperta ocupar qualquer tipo de espaço parece inteiramente natural para todos. Em vista disso, tentei criar uma hipótese para a possível natureza desse espaço hipotético, que chamei de ideário. Me ocorreu que espaço pode ser concebido como espaço de mútua utilização, embora cada um de nós tenha aparentemente, consciência própria e distinta. (...) possamos sair de nossos lares em direção à rua e ao mundo, espaço que por sua vez é mutuamente acessível e aberto a qualquer um. E se também fosse assim com a nossa mente?
E se fosse possível viajar além dos confins do espaço mental individual, em direção ao espaço exterior coletivo, onde podemos nos encontrar com a mente de outras pessoas num espaço compartilhado De saida, isso explicaria fenômenos no mínimo ambíguos como telepatia ou saberes compartilhados, vindos de diferentes lugares, mas também poderia explicar alguns eventos mais mundanos, embora não menos intrigantes. Quando James Watt descobriu a propulsão a vapor, por esemplo, houve muitos outros inventores que chegaram à mesma ideia de forma independente, no mesmo ano, embora tenham sido incapazes de bater Watt no Escritório de Patentes (imagine todos aqueles pequenos carros a vapor competindo para chegar lá, como na Corrida Maluca). Se o ideário não existe, então essas numerosas descobertas independentes de máquina a vapor não passariam de coincidências inacreditáveis Agora, se o ideário ou algo do tipo existir, então podemos supor que as ideias sejam o equivalente a objetos sólidos em termos de espaço. Uma ideia pode ser cascalho, pedra, montanha ou um continente inteiro em termos de tamanho, mas o mais importante é que existe, ao menos de maneira metafísica, como objeto sólido nesse território mutuamente acessível da mente, como monólito de granito numa paisagem física Na verdade, um número significativo de pessoas diferentes, todos ‘viajantes’ em suas mentes, poderiam concebivelmente esbarrar na mesma ideia de uma só vez, como diferentes andarilhos que acabam no mesmo ponto do mapa. Uma coisa que se esclarece quase que de imediato é que se a consciência for considerada espaço, então deve haver outras regras governando sua estrutura, regras diferentes daquelas que regem o espaço físico comum. A distância, por exemplo, só pode ser associativa no ideário. A Lands Ende a escocesa John O'Groats, embora reconhecidamente afastadas no mundo físico, são comumente mencionadas na mesma frase e são, na verdade, regiões muito próximas uma da outra, falando associativamente. A mente pula direto de uma ideia para outra. Além disso, a geografia do ideário também precisa ser instável, ou então fixada sob diferentes parâmetros, sobretudo se comparada à geografia do mundo material. Como Ruty Rucker observou no ensaio ‘Life a Fractal in Hilbert Space’ (como referenciei em Big Numbers),7 pensar em um cigarro, digamos, pode guiar a mente a inúmeras direções Você pode pensar na marca que gosta ou em amigos que fumam, ou então em câncer de pulmão, ou em uma memorável cena de filme que viu (provavelmente A Estranha Passageira), ou em seu primeiro cigarro em baixo das arquibancadas do estádio de beisebol com algum amigo de es cola quando vocês tinham onze anos de idade (esses são, à propósito exemplos de Rucket). Se você escolher pensar no primeiro cigarro em baixo das arquibancadas, seu próximo salto de pensamento pode levá-lo a um igualmente diverso numero de diferentes áreas. Você pode pensar em beisebol no geral, ou naquele estádio particular da infância ou então no time da casa. Você também pode pensar naquele amigo, ou ainda na sua escola ou na experiencia de ter onze anos. (...) O ponto é que quase quaisquer duas ideias concebíveis na existência, em ideário se você preferi, estão ligadas por apenas seis passos, exatamente como Kevin Bacon e qualquer outro ator hollywoodiano que queira mencionar. Isso significa que as leis de navegação no ideário são mais como as leis de navegação da internet, uma ideia é conectada a outra, do que as regras de navegação empregadas na viagem de carro. O que também significaria que o Tempo, como fenômeno, não se aplica do mesmo modo ao campo da mente como as domínios materiais do tempo cronológico. Podemos pensar facilmente em eventos de vinte anos atrás, assim como podemos revistar eventos que aconteceram nesta manhã, ou podemos pensar cm algo que possivelmente acontecerá amanhã, ou no próximo ano, ou dez mil anos frente. O ideário não é limitado pelas leis convencionais do tempo nem pelas leis convencionais do espaço. (...) até mesmo acontecimentos relativamente rotineiros, como o déjà vu. Outra noção que me ocorreu foi que esse hipotético ideário, onde filosofias são grandes territórios e religiões provavelmente constituem nações inteiras, é que ele deve conter floras e faunas nativas, criaturas desse mundo conceitual puramente feitas de ideias do mesmo modo que nós, criaturas do mundo material, somos feitos de matéria. (...) O ideário também poderia dar um toque de realidade a coisas que de outro modo seriam vistas apenas como conceitos poéticos, como as musas, por exemplo. Agora, tudo isso são aplicações do conceito de ideário talvez um tanto distantes da experiência diária de pessoas comuns, mas é minha crença que cada um de nós, ao longo de nossas vidas inteiras, estejamos despertos ou dormindo, interagimos com o ideário de um modo ou de outro, e essas interações podem ser fracas ou fortes. Se tivemos a ideia de beber um copo de água, então é uma ideia, mesmo se não for rara ou interessante. Ideias do dia a dia como essa podem ser vistas como peixinhos que nadam perto das águas costeiras do nosso oceano de ideário, ideias facilmente acessadas e alcançadas por qualquer um. Já ideias incomuns são mais raras, mais distantes, requerem um pouco mais de exploração ou até mesmo de mergulho profissional para ser localizadas. Artistas e escritores e outros criadores, sobretudo, tendem a ser julgados de acordo com a distância que percorrem na perseguição do objetivo. É seu trabalho encontrar uma ideia original que requeira uma longa viagem mental, muita pesquisa e exploração? Ou apenas compram ideias pré-cozidas e congeladas no mercado local, como qualquer um? Como disse desde o início, é tudo hipotético e especulativo, mas ao menos é uma tentativa de chegar a um modelo funcional para a consciência que pessoalmente acho frutífero e útil, e que pode concebivelmente ser útil para outra pessoa que esteja lutando com as mesmas questões. E dado o fato que o ideário é uma noção central no meu conceito de consciência e criatividade, você pode dizer que circundei a ideia em várias das minhas obras, tentando me aproximar dela por diferentes abordagens, ou tentando fazer uso de um conceito para formular novas ideias, ou como base hipotética a ser testada em futuros experimentos mágicos. De qualquer forma, o conceito funciona para mim. Agora, se funciona na prática para qualquer outra pessoa, realmente não sei dizer.
7 Projeto em quadrinhos de Alan Moore com Bill Sienkiewicz, que teve somente duas edições lançadas. A proposta é que fossem doze. [NE]”



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