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(...) Do ponto de vista das classes dominantes, o sertão já virou mar e o mar já virou sertão.
As palavras acima foram escritas pelo sociólogo Octavio Ianni. Estão no prefácio do livro Origens agrárias do Estado brasileiro, lançado pela Editora Brasiliense nos idos de 1984. (...)
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(...) Não deixa de lembrar a famosa frase do Leopardo, de Tomasi di Lampedusa — Se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. (...)
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Fiquemos, por ora, com a tragédia urbana brasileira. Ela é eclética — está nos excessos e na monumentalidade do que é privado, no descaso crônico com o que é comum, na superposição incongruente de estilos, na aglomeração ou no abandono de espaços segundo as conveniências do mercado imobiliário e as omissões do poder público. Além de eclética, é uma tragédia bem distribuída: podemos encontrá-la tanto nas partes ricas como nas partes pobres das cidades, em praticamente todas elas. Nos arranha-céus à beira-mar (alô, Balneário Camboriú), nos shopping centers que parecem bunkers de costas para a rua (olá, Shopping Iguatemi), nos condomínios dos ricaços e nos seus genéricos voltados aos remediados (os nomes, um certificado de cafonice, quase sempre remetem a títulos nobiliárquicos ou são em língua estrangeira), no Templo de Salomão da Igreja Universal do Reino de Deus, de Edir Macedo, no mar de lajes das grandes periferias, sem respiros ou áreas verdes, nas favelas sem-fim país afora (não é o caso de romantizá-las). A lista é virtualmente infinita, somos inventivos.
A menção de honra fica com o estilo greco-goiano, consagrado na residência do compositor e cantor sertanejo Gusttavo Lima, construída numa área total de 15 mil m², nas proximidades de Goiânia. Dublé de artista e bet boy, apontado pela polícia no ano passado como sócio oculto de uma casa de apostas esportivas da qual foi garoto-propaganda, indiciado por lavagem de dinheiro numa investigação ainda em curso, Gusttavo Lima flertou com a candidatura à Presidência da República no início do ano. Em fevereiro, seu nome apareceu em pesquisas de opinião, empatado em segundo lugar com o governador Tarcísio de Freitas, só atrás de Lula. Em março, no entanto, ele anunciou pelas redes sociais que havia desistido de concorrer ao Planalto. Por enquanto, ao menos.
A política o persegue. Sua mansão, em estilo neoclássico anabolizado, é um pastiche da Casa Branca, de onde vem sua inspiração. Do horror disponível pelas imagens da internet, que inclui carros de luxo estacionados na sala como parte da decoração, minha atenção se detém no detalhe no frontão, onde está desenhado em relevo um busto carregando um violão, com contornos dourados contra o fundo branco. Branco com dourado é um caminho sem volta. Pior que isso, só as réplicas da Estátua da Liberdade nas lojas da Havan.
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Em seu livro sobre a formação de Sorriso, Luiz Felipe de Farias fala do descolamento do centro de gravidade das estruturas de poder no país:
As últimas duas décadas têm sido marcadas no Brasil pela erosão dos aparelhos de hegemonia que haviam permitido às frações das classes dominantes no Sudeste mais industrializado dirigirem a sociedade civil em escala nacional ao longo do século XX. [...] Paralelamente, as burguesias agrária e agroindustrial parecem assumir crescente protagonismo dentre as frações das classes dominantes que compõem o bloco no poder.
O sertão e o mar estão trocando de posição.
Este é o pano de fundo que ajuda a entender (embora absolutamente não justifique) o comportamento recente dos senadores em relação a Marina Silva, convidada para falar na Comissão de Infraestrutura da Casa. Embora o clima de animosidade fosse generalizado, as baixezas contra a ministra do Meio Ambiente partiram de três marmanjos.
SILVA, Fernando de Barros e. O Mar virou sertão / Fernando de Barros e Silva; Revista Piauí, 225, junho, 2025.
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