1.5.25

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<fase tardia>20

[...]

“A idéia tola e funesta de opor o conhecimento aprofundado dos meios de execução— trabalho sensatamente mantido … ao ato impulsivo da sensibilidade singular é um dos traços mais certos e mais deploráveis da leviandade e da fraqueza de caráter que marcaram a era romântica. A preocupação com a duração das obras já se enfraquecia e cedia, nos espíritos, ao desejo de surpreender: a arte se viu condenada a um regime de rupturas sucessivas. Nasceu um automatismo da ousadia. Esta tornou-se imperativa como fora a tradição. Enfim, a Moda, que é a mudança em alta freqüência do gosto de uma clientela substituiu sua mobilidade essencial às lentas formações dos estilos, das escolas, das grandes celebridades. Mas dizer que a Moda se encarrega do destino das Belas Artes é o bastante para dizer que o comércio aí se intromete.” Paul Valéry, Pièces sur lArt, Paris, pp. 18-488 (“Sobre Corot”). 

[B 8, 2]

[...]

“Este gosto da modernidade vai tão longe que Baudelaire, como Balzac, o estende aos mais fúteis detalhes da moda e do vestuário. Ambos os estudam em si mesmos e elaboram com eles questões morais e filosóficas, porque eles representam a realidade imediata no aspecto mais agudo, mais agressivo, mais irritante, talvez, mas também mais vivido.” [Nota]: “Além disso, para Baudelaire, essas preocupações se voltam para sua importante teoria do Dandismo da qual, justamente, ele fez uma questão de moral e de modernidade.” Roger Caillois, “Paris, mythe moderne”, Nouvelle Revue Française XXV: 284, 1 de maio de 1937, p. 692.

 [B 8a, 2]

 “Grande acontecimento! As belas damas experimentam um dia a necessidade de inflar o traseiro. Depressa, aos milhares, fábricas de enchimentos! … Mas o que é uma simples guarnição sobre ilustres cóccix? Uma bugiganga, na verdade… ‘Abaixo os traseiros! Viva as crinolinas!’ E, de repente, o universo civilizado se transforma em manufatura de sinos ambulantes. Por que o sexo encantador esqueceu os badalos dos sininhos? … Ocupar um lugar não é tudo, é preciso fazer barulho lá embaixo… O quartier Breda e o faubourg Saint-Germain são rivais em piedade, tanto quanto em engomados e em coques. Que sigam o exemplo da Igreja! Nas vésperas, o órgão e o clero recitam alternadamente um versículo dos salmos. As belas damas e seus sinos poderiam seguir esse exemplo: palavras e tilintes retomando, cada um em sua vez, a seqüência da conversa.” Blanqui, Critique Sociale, Paris, 1885, vol. I, pp. 83-84 (“O luxo”). — “O luxo” é uma polêmica dirigida contra a indústria de luxo.

[B 8a, 3]

 Cada geração vivência a moda da geração imediatamente anterior como o mais radical dos antiafrodisíacos que se pode imaginar. Com esse veredicto, ela não comete um erro tão grande como se poderia supor. Em cada moda há um quê de amarga sátira ao amor; em cada uma delas delineiam-se perversões da maneira mais impiedosa. Toda moda está em conflito com o orgânico. Cada uma delas tenta acasalar o corpo vivo com o mundo inorgânico. A moda defende os direitos do cadáver sobre o ser vivo. O fetichismo que subjaz ao sex appeal do inorgânico é seu nervo vital.

 [B 9, 1] 

Nascimento e morte - o primeiro, pelas circunstâncias naturais; a segunda, por circunstâncias sociais — limitam consideravelmente a margem de liberdade da moda, quando se tornam atuais. Este estado de coisas é realçado por uma dupla circunstância. A primeira refere-se ao nascimento e mostra como a recriação natural da vida é “superada” pela novidade no domínio da moda. A segunda refere-se à morte. No que concerne à morte, ela não aparece menos “superada” na moda, quando esta liberta o sex appeal do inorgânico.

 [B 9, 2]

A descrição detalhada da beleza feminina, apreciada pela poesia barroca, que exalta cada um de seus pormenores através da comparação, associa-se secretamente à imagem do cadáver. Tal desmembramento da beleza feminina em suas partes gloriosas assemelha-se a uma dissecação, e as mais apreciadas comparações das partes do corpo com o alabastro, com a neve, com pedras preciosas ou outras matérias, sobretudo inorgânicas, reforçam esse sentimento. (Tais desmembramentos são encontrados também em Baudelaire, “Le beau navire ".) 

 [B 9, 3]

 [...]

 As modas são um medicamento que deve compensar na escala coletiva os efeitos nefastos do esquecimento. Quanto mais efêmera é uma época, tanto mais ela se orienta na moda. Cf. [K 2a, 3].

 [B 9 a, 1 ]

 [...]

 Dificilmente encontra-se uma peça de vestuário que pode expressar tantas tendências eróticas divergentes e fornecer tantas possibilidades para dissimulá-las quanto o chapéu feminino. Enquanto o significado da cobertura de cabeça masculina seguia estritamente, em sua esfera - a política -, alguns poucos modelos rígidos, as nuances do significado erótico do chapéu feminino são incalculáveis. Não são as diferentes possibilidades de sugerir simbolicamente os órgãos sexuais as que mais podem interessar aqui. Mais surpreendente pode ser a explicação que o chapéu fornece sobre a vestimenta. Helen Grund formulou a hipótese engenhosa de que o tipo de chapéu que é usado junto com a crinolina representa na verdade um modo de manejo desta última para os homens. As largas abas do chapéu são dobradas — indicando, desta maneira, como a crinolina deve ser dobrada para facilitar ao homem o acesso sexual à mulher. 

 [B 10, 9 ]

 [...]

 C

[Paris antiga. Catacumbas, Demolições, Declínio de Paris]

"Facilis descensus Averno."

Virgílio1 

"Aqui, mesmo os automóveis têm um ar de antiguidade"

Guilllaume Apollinaire2 

Como as grades — enquanto alegorias — se estabelecem no inferno. Na Passage Vivienne, esculturas sobre os portais, representando alegorias do comércio.

 [C 1, 1 ] 

O Surrealismo veio à luz numa passagem. E sob a proteção de que musas!

 [C 1, 2 ]

O pai do Surrealismo foi Dadá, a mãe foi uma passagem. Dadá já era velho quando se conheceram. No final de 1919, Aragon e Breton, por antipatia a Montpamasse e Montmartre, transferiram seus encontros com amigos para um café na Passage de L’Opéra. A construção do Boulevard Haussmann foi o seu fim. Sobre ela, Louis Aragon escreveu 135 páginas; na soma destes três dígitos mantém-se escondido o número nove, correspondente às nove musas que dotaram o Surrealismo recém-nascido com suas dádivas. Chamam-se: Luna, a condessa de Geschwitz, Kate Greenaway, Mors, Cléo de Mérode, Dulcinéia, Libido, Baby Cadum e Friederike Kempner. (Em vez da Condessa de Geschwitz: Tipse?)3

 [C 1, 3]

[...]

Pausânias escreveu uma topografia da Grécia em 200 d.C., quando os lugares sagrados e muitos outros monumentos começaram a ruir.

 [C 1, 5] 

 [...]

Construir a cidade topograficamente, dez vezes ou cem vezes, a partir de suas passagens e suas portas, seus cemitérios e bordéis, suas estações e seus...,4 assim como antigamente ela se definia por suas igrejas e seus mercados. E as figuras mais secretas, mais profundamente recônditas da cidade: assassinatos e rebeliões, os nós sangrentos no emaranhado das ruas, os leitos de amores e incêndios. ■ Flâneur ■

 [C 1, 8]

[...]

 Na antiga Grécia, mostravam-se lugares pelos quais se descia ao reino dos monos. Também nossa existência desperta é uma terra em que se desce ao reino dos mortos, cheia de lugares aparentemente insignificantes, onde desembocam os sonhos. Passamos por eles todos os dias sem nada suspeitar; porém, mal vem o sono, nos apressamos em voltar em sua direção, procurando-os pelo tato, e nos perdemos nos corredores sombrios. O labirinto de casas das cidades assemelha-se à luz do dia à consciência; as passagens (são elas as galerias que conduzem a sua existência anterior) desembocam de dia imperceptivelmente nas ruas. Entretanto, à noite, das massas de casas sombrias, emerge assustadora sua escuridão mais compacta e o transeunte tardio passa apressado por elas, a não ser que o tenhamos encorajado a empreender a viagem pela ruela estreita. Mas um outro sistema de galerias se estende nos subterrâneos de Paris: o metrô, onde à noite as luzes se acendem rubras, indicando o caminho ao Hades dos nomes. Combat — Elysée — Georges V — Etienne Marcei — Solférino — Invalides - Vaugirard arrancaram as correntes humilhantes da rua, da praça e tornaram-se aqui, na escuridão entrecortada por lampejos fulgurantes e apitos estridentes, deuses informes das cloacas, fadas das catacumbas. Este labirinto abriga em seu interior não um, e sim dúzias de touros cegos, enfurecidos, em cuja goela é preciso lançar não uma virgem tebana por ano, e sim, a cada manhã, milhares de jovens operárias anêmicas e caixeiros sonados. ■ Nomes de ruas ■ Aqui embaixo, nada mais do choque, do entrecruzamento de nomes que formam a rede lingüística na superfície. Cada um mora solitáno aqui, o inferno é sua corte; Amer, Picon, Dubonnet5 são os guardiões do limiar.

 [C 1a, 2]

 “Cada quartier não atinge seu apogeu propriamente dito pouco antes de estar completamente urbanizado? Seu planeta descreve então uma curva, aproximando-se do comércio, e nesse particular, primeiramente do grande comércio, em seguida do pequeno. Enquanto a rua ainda é relarivamente nova, ela pertence à gente humilde, e desvencilha-se desta quando a moda lhe sorri. Sem dar atenção ao dinheiro, os interessados disputam entre si as pequenas casas e apartamentos, mas apenas enquanto mulheres bonitas de fulgurante elegância, que embelezam não só os salões, mas também a casa e até mesmo a rua, promoverem aqui suas festas ou forem para elas convidadas. E ao tornar-se passante, a bela dama requer lojas e, freqüentemente, sai caro à rua ceder muito depressa a este desejo. Começa-se então a diminuir os pátios, alguns são suprimidos totalmente, as pessoas passam a espremer-se nas casas e, ao fim, chega um dia de Ano Novo, em que não é de bom-tom exibir tal endereço num cartão de visitas. Pois a maioria dos inquilinos é formada por pequenos negociantes e as entradas das casas não perdem muito se, de vez em quando, derem abrigo a pequenos artesãos, cujos míseros barracos de madeira tomaram o lugar das lojas.”6 Lefeuve, Les Anciennes Maisons de Paris sous Napoléon III, Paris e Bruxelas, vol. I, p. 482. ■ Moda ■

 [C 1a, 3]

[...]

Paris situa-se sobre um sistema de cavernas de onde ressoam ruídos do metrô e de trens e no qual cada ônibus e cada caminhão desperta um eco que se prolonga. E este grande sistema técnico de ruas e canalização entrecruza-se com as abóbadas antigas, minas de calcário, grutas, catacumbas, que foram aumentando durante séculos, desde o início da Idade Média. Ainda hoje é possível adquirir uma entrada por dois francos para uma visita a esta Paris mais noturna, que é muito mais barata e menos perigosa que aquela da superfície. A Idade Média via isso de maneira diferente. Fontes históricas nos informam que, vez por outra, pessoas espertas dispunham-se, mediante régio pagamento e voto de silêncio, a mostrar a seus concidadãos o demônio lá embaixo, em sua majestade infernal. Um empreendimento financeiro que era muito menos arriscado para as vítimas do que para o tratante. Não deveria a Igreja considerar uma falsa aparição do diabo quase equivalente a um sacrilégio? De resto, esta cidade subterrânea também rendeu lucros palpáveis àqueles que a conheciam bem. Pois suas ruas burlavam a grande barreira alfandegária através da qual os cobradores de impostos garantiam para si seus direitos a impostos de importação. Nos séculos XVI e XVIII, o contrabando prosperava principalmente sob a terra. Sabemos também que, em tempos de comoção pública, alastravam-se rapidamente rumores assombrosos sobre as catacumbas, sem falar dos espíritos proféticos e das mulheres adivinhas, a quem isso compete por direito. No dia após a fuga de Luís XVI, o governo revolucionário difundiu cartazes em que ordenava a busca mais minuciosa nesses subterrâneos. E alguns anos mais tarde, inesperadamente, circulou pelas massas o boato de que alguns bairros estavam prestes a afundar.

 [C 2, 1]

[...]

 Existem emblemas arquiteturais do comércio: degraus levam à farmácia, enquanto a tabacaria apossou-se da esquina. O comércio sabe tirar proveito do limiar: na entrada da passagem, da pista de patinação, da piscina pública, da plataforma de embarque, coloca-se a guardiã do limiar: uma galinha que bota automaticamente ovos de lata, contendo balas em seu interior; ao lado dela, uma vidente automática - um aparelho automático de impressão, com o qual podemos imprimir nosso nome numa tira de metal que nos prenderá ao pescoço o nosso destino.

[C 2, 4]

Na antiga Paris, havia execuções (por exemplo, pela forca) em plena rua.

[C 2, 5] 

[...]

Diante da entrada, uma caixa de correio: última oportunidade de enviar um sinal ao mundo que se abandona. 

 [C 2a, 6]

Passeio e visita subterrânea aos canais de esgoto. Percurso preferido: Châtelet-Madeleine.

 [C 2a, 7]

“As ruínas da Igreja e da Nobreza, as do Feudalismo, da Idade Média são sublimes e hoje enchem de admiração os vencedores, que ficam surpresos, boquiabertos; mas as da Burguesia serão um ignóbil detrito de cartonagem, de gessos, de coloridos.” Le Diable à Paris, Paris, 1845, vol. II, p. 18 (Balzac, “O que desaparece de Paris”). ■ Colecionador ■

 [C 2a, 8]

 ...tudo isso são as passagens a nossos olhos. E nada disso elas foram outrora. “Porque é somente hoje, quando as ameaça a picareta, que elas se tornaram efetivamente santuários de um culto do efêmero, que se tornaram a paisagem-fantasma dos prazeres e das profissões malditas, incompreensíveis ontem e que o futuro jamais conhecerá.” Louis Aragon, Le Paysan de Paris, Paris, 1926, p. 19. ■ Colecionador ■

 [C 2a, 9]

 Súbito passado de uma cidade: janelas iluminadas antes do Natal reluzem como se estivessem acesas desde antes de 1880.

 [C 2a, 10]

 O sonho — eis a terra onde se fazem as descobertas que testemunham a história primeva do século XIX. ■ Sonho ■

 [C 2a, 11]

 [...]

 O renascimento do drama arcaico dos gregos sobre os palcos de madeira das feiras. O Prefeito de Polícia somente autoriza diálogos sobre estes palcos. “Esse terceiro personagem é mudo, por ordem do Sr. Prefeito de Polícia, que só permite o diálogo nos teatros considerados itinerantes.” Gerard de Nerval, Le Cabaret de la Mère Saguet, Paris, 1927, pp. 259-260 (“Le Boulevard du Temple autrefois et aujourd’hui”).

 [C 3, 1]

 Diante da entrada da passagem uma caixa de correio: uma última oportunidade de enviar um sinal ao mundo que se abandona.

[C 3, 2]

Apenas na aparência a cidade é homogênea. Até mesmo seu nome assume um tom diferente nos diferentes lugares. Em parte alguma, a não ser em sonhos, é ainda possível experienciar o fenômeno do limite de maneira mais original do que nas cidades. Entender esse fenômeno significa saber onde passam aquelas linhas que servem de demarcação, ao longo do viaduto dos trens, através de casas, por dentro do parque, à margem do rio; significa conhecer estas fronteiras, bem como os enclaves dos diferentes territórios. Como limiar, a fronteira atravessa as ruas; um novo distrito inicia-se como um passo no vazio; como se tivéssemos pisado num degrau mais abaixo que não tínhamos visto.

 [C 3, 3] 

20 Devido a uma lacuna na edição alemã, referente à gênese do arquivo temático "B", não é possível determinar se a fase tardia se inicia com o fólio [B8] ou [B9] (cf. GS V, 1262). (w.b.)

1 "É fácil descer o Averno." Virgílio, Eneida, VI, v. 126. Cf. , segmento V. (R.T.; w.b.)

2 ( 3 . Apollinaire, Œuvres Poétiques, ed. org. por Marcei Adéma e Michel Décaudin, Paris, 1 956 (Bibliothèque de la Plêiade, 121), p. 39 ("Zone"). (R.T.)

3 Um catálogo de musas do Surrealismo já aparece em três fragmentos anteriores: "Passagens Parisienses ", e ; e "", ; ver também as respectivas notas: 27, 28 e 78. A única diferença desta lista de musas com a de é a substituição da "Condessa de Geschwitz" por uma personagem chamada “Tipse", não explicada por R.T. e “misteriosa" para J.L. e E/M. - Talvez Benjamin quisesse se referir a uma nova profissão feminina, em franca expansão nas metrópoles dos anos 1 920 e designada em alemão coloquial, com uma conotação levemente pejorativa, por Tippse, "datilógrafa", (w.b.)

4 Parece que no lugar destas reticências Benjamin iria colocar mais tarde uma palavra que não lhe ocorreu  na hora. (R.T.)

5 Três bebidas alcoólicas, cujos nomes apareciam em cartazes por toda a cidade, (w.b.) 6 Nossa tradução baseou-se no texto alemão de Benjamin, que em parte traduziu, em parte adaptou a passagem de Lefeuve, como se pode verificar ao consultar o original francês reproduzido nas notas da edição alemã (GS V, 1326). (w.b.)

BENJAMIN, Walter (1892-1940). Passagens / Das Passagen-WerkWalter Benjamin; edição alemã de Rolf Tiedemann; organização da edição brasileira Willi Bolle; colaboração na organização da edição brasileira Olgária Chain Féres Matos; tradução do alemão Irene Aron; tradução do francês Cleonice Paes Barreto Mourão; revisão técnica Patrícia de Freitas Camargo; pósfácios Willie Bolle e Olgária Chain Féres Matos; introdução à edição alemã (1982) Rolf Tiedemann. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.

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