9.5.25

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Capítulo final (VIII  “Résumé”) de LEternité par les Astres, de Blanqui: "O universo inteiro é composto de sistemas estelares. Para criá-los, a natureza tem apenas cem corpos simples a sua disposição. Apesar da vantagem prodigiosa que ela sabe tirar desses recursos, e do número incalculável de combinações que eles oferecem à sua fecundidade, o resultado é necessariamente um número finito, como o dos próprios elementos; para preencher sua extensão, a natureza deve repetir ao infinito cada uma de suas combinações originais ou tipos. / Todo astro, qualquer que seja, existe portanto em número infinito no tempo e no espaço, não apenas sob um de seus aspectos, mas tal como se encontra em cada segundo de sua duração, do nascimento à morte. Todos os seres distribuídos em sua superfície, grandes ou pequenos, vivos ou inanimados, partilham o privilégio dessa perenidade. / A terra é um desses astros. Todo ser humano é, pois, eterno em cada um dos segundos de sua existência. O que escrevo neste momento, numa cela do Fort du Taureau, eu o escrevi e o escreverei por toda a eternidade, à mesa, com uma pena, vestido como estou agora, em circunstâncias inteiramente semelhantes. Assim paia cada um. / Todas essas terras se abismam, uma após a outra, nas chamas renovadoras, para delas renascer e recair ainda, escoamento monótono de uma ampulheta que se vira e se esvazia eternamente a si mesma. Trata-se do novo sempre velho, e do velho sempre novo. / Os curiosos em relação à vida extraterrestre poderão, entretanto, sorrir diante de uma conclusão matemática que lhes conceda não apenas a imortalidade, mas a eternidade? O número de nossos sósias é infinito no tempo e no espaço. Em sã consciência, não se poderia exigir mais. Esses sósias são de carne e osso, até mesmo de calças e paletó, de crinolina e de coque. Não são fantasmas, são a atualidade eternizada. / Eis, entretanto, uma grande falha: não há progresso. Infelizmente! Não, são reedições vulgares, repetições. Assim são os exemplares dos mundos passados, e assim também os dos mundos futuros. Somente o capítulo das bifurcações permanece aberto à esperança. Não nos esqueçamos que tudo o que poderíamos ter sido aqui em baixo, nós o somos em alguma outra parte. O progresso aqui embaixo é apenas para nossos descendentes. Eles têm mais sorte que nós. Todas as coisas belas que o nosso globo verá, nossos futuros descendentes já as viram, vêem-nas neste momento e as verão sempre, é claro, sob a forma de sósias que os precederam e que os sucederão. Filhos de uma humanidade melhor, eles já nos ultrajaram muito e nos vaiaram muito sobre as terras mortas, passando por elas depois de nós. Continuam a nos fustigar sobre as terras vivas de onde nós desaparecemos, e nos perseguirão para sempre com seu desprezo sobre as terras a nascer. / Eles e nós  e todos os hóspedes de nosso planeta  renascemos prisioneiros do momento e do lugar que os destinos nos designam na série de suas metamorfoses. Nossa perenidade é um apêndice da sua. Não somos senão fenômenos parciais de suas ressurreições. Homens do século XIX, a hora de nossas aparições está para sempre fixada e nos reconduz sempre os mesmos, na melhor hipótese com a perspectiva de variantes felizes. Nada aí que satisfaça muito a sede de algo melhor. O que fazer? Não procurei meu prazer, procurei a verdade. Não há aqui revelação nem profeta, mas uma simples dedução da análise espectral e da cosmogonia de Laplace. Essas duas descobertas nos fazem eternos. Seria um ganho? Aproveitemos. Seria uma mistificação? Resignemo-nos / ... / No fundo, e melancólica essa eternidade do homem pelos astros, e mais triste ainda é esse seqüestro dos mundos irmãos pela inexorável barreira do espaço. Tantas populações idênticas que passam sem ter suspeitado de sua mútua existência! Pois bem! Nós a descobrimos, enfim, no século XIX. Mas quem desejará acreditar nisso? / E depois, até aqui, o passado para nós representava a barbárie, e o futuro significava progresso, ciência, felicidade, ilusão! Esse passado viu desaparecer, sobre todos os nossos globos-sósias, as mais brilhantes civilizações, sem deixar um rastro, e elas desaparecerão ainda sem deixar outros. O futuro reverá sobre bilhões de terras a ignorância, as tolices, as crueldades de nossas velhas eras! / Na hora presente, a vida inteira de nosso planeta, do nascimento à morte, é vivida em parte aqui e em parte la, dia a dia, em miríades de astros-irmãos, com todos os seus crimes e suas desgraças. O que chamamos de progresso está enclausurado em cada terra e desaparece com ela. Sempre e em todo lugar, no campo terrestre, o mesmo drama, o mesmo cenário, sobre o mesmo palco estreito uma humanidade barulhenta, enfatuada de sua grandeza, acreditando ser o universo e vivendo em sua prisão como numa imensidão, para logo desaparecer com o globo que carregou com o mais profundo desprezo o fardo de seu orgulho. Mesma monotonia, mesmo imobilismo nos astros estrangeiros. O universo se repete, sem fim, e patina no mesmo lugar. A eternidade perfaz imperturbavelmente ao infinito as mesmas representações.” A. Blanqui, LEternité par les Astres. Hypothèse Astronomique, Paris, 1872, pp. 73-76. O trecho que falta detém-se no “consolo” proporcionado pela idéia de que os entes queridos que se foram desta terra fazem companhia, enquanto sósias, nesta mesma hora, ao nosso sósia, num outro planeta.

[D 7; D 7a]

“Pensemos este pensamento em sua forma mais terrível: a existência, tal como ela é, sem sentido ou objetivo, porém, repetindo-se inevitavelmente, sem um final, no nada: o eterno retorno’. [p. 45] Negamos objetivos finais: se a existência tivesse um, este deveria ter sido atingido.” Friedrich Nietzsche, Gesammelte Werke, Munique, 1926, vol. XVIII, Der Wille zur Macht (A vontade de Poder), Livro I, p. 46.

[D 8, 1]

“A doutrina do eterno retorno teria pressupostos eruditos.” Nietzsche, Gesammelte Werke, Munique, vol. XVIII, p. 49 ( Der Wille zur Macht, Livro I).

[D 8, 2]

Contudo, o velho hábito de imaginar um objetivo para cada acontecimento é tão poderoso que o pensador precisa se esforçar para não pensar a falta mesma de objetivo do mundo como intencional. Esta idéia — de que, portanto, o mundo evita intencionalmente um objetivo ... — impõe-se a todos aqueles que querem atribuir ao mundo a faculdade da eterna novidade [p. 369] ... O mundo, enquanto força, não deve ser pensado como ilimitado, pois ele não pode ser pensado dessa forma... Falta, portanto, ao mundo também a faculdade da eterna novidade.” Nietzsche, Gesammelte Werke, vol. XIX, Munique, 1926, p. 370 (Der Wille zur Macht, Livro IV).

[D 8, 3]

“O mundo ... vive de si mesmo: seus excrementos são seu alimento. Nietzsche, Gesammelte Werke, vol. XIX, p. 371 (Der Wille zur Macht, Livro IV).

[D 8, 4]

O mundo “sem objetivo final, a menos que na felicidade do círculo resida um objetivo final; sem vontade, a menos que um anel voltando sobre si mesmo tenha boa vontade”. Nietzsche, Gesammelte Werke, Munique, vol. XIX, p. 374 (Der Wille zur Macht, Livro IV).

[D 8, 5]

A propósito do eterno retorno: “O grande pensamento como cabeça de Medusa: todos os traços do mundo se enrijecem, uma agonia congelada.” Friedrich Nietzsche, Gesammelte Werke, Munique, 1925, vol. XIV, Aus dem Nachlass 1822-1888 (Do Espólio), p. 188.

[D 8, 6]

“Criamos o pensamento mais pesado  criemos agora o ser para quem esse pensamento seja leve e bem-aventurado!” Nietzsche, Gesammelte Werke, Munique, vol. XIV (Aus dem Nachlass 1822-1888, p. 179).

[D 8, 7]

Analogia entre Engels e Blanqui: um como o outro se voltou tardiamente para as ciências naturais.

[D 8, 8]

“Se o mundo pode ser pensado como uma grandeza determinada de força e como um número determinado de centros de força  e qualquer outra representação seria ... inútil , resulta daí que ele deve passar por um número calculável de combinações no grande jogo de dados de sua existência. Num tempo infinito, qualquer combinação possível seria atingida um dia; além disso, ela seria atingida infinitas vezes. E como entre cada combinação e seu retorno seguinte precisariam ter sido percorridas todas as combinações ainda possíveis ... seria provado com isso um círculo de séries absolutamente idênticas... Esta concepção não é simplesmente mecanicista; pois se o fosse, ela não determinaria um retorno infinito de casos idênticos, e sim um estado final. Porque o mundo não o atingiu, o mecanicismo deve nos parecer uma hipótese incompleta e apenas provisória. Nietzsche, Gesammelte Werke, Munique, 1926, vol. XIX, p. 373 (Der Wille zur Macht, Livro IV).

[D 8a, 1]

UN COUP DE DÉS

 NABOLIRA

JAMAIS                                                                LE HASARD

Mallarmé

Na idéia do eterno retorno, o historicismo do século XIX se derruba a si mesmo. Segundo ela, toda tradição, mesmo a mais recente, torna-se a tradição de algo que já se passou na noite imemorial dos tempos. Com isso, a tradição assume o caráter de uma fantasmagoria, na qual a história primeva desenrola-se nos palcos sob a mais moderna ornamentação.

[D 8a, 2]

A observação de Nietzsche, segundo a qual a doutrina do eterno retorno não implica o mecanicismo, parece invocar o fenômeno do perpetuum mobile (o mundo não seria nada além disso segundo sua doutrina) como argumento contra a concepção mecanicista do mundo.

[D 8a, 3] 

Sobre o problema da Modernidade e Antiguidade: “Esta existência que se tornou inconstante e absurda e este mundo que se tornou inconcebível e abstrato se conjugam na vontade do eterno retorno, do igual como tentativa de repetir, no auge da modernidade, no símbolo, a vida dos gregos no cosmos vivo do mundo visível.” Karl Lüwith, Nietzsches Philosophie der ewigen Wiederkunft des Gleichen, Berlim, 1935, p. 83.

[D 8a, 4]

LEternité par les Astres foi escrito quatro, no máximo, cinco anos após a morte de Baudelaire no mesmo tempo da Comuna de Paris?).  Mostra-se neste texto o que as estrelas provocam naquele mundo do qual Baudelaire, com justa razão, as excluiu.

[D 9, 1]

 

BENJAMIN, Walter (1892-1940). Passagens / Das Passagen-WerkWalter Benjamin; edição alemã de Rolf Tiedemann; organização da edição brasileira Willi Bolle; colaboração na organização da edição brasileira Olgária Chain Féres Matos; tradução do alemão Irene Aron; tradução do francês Cleonice Paes Barreto Mourão; revisão técnica Patrícia de Freitas Camargo; pósfácios Willie Bolle e Olgária Chain Féres Matos; introdução à edição alemã (1982) Rolf Tiedemann. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.

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