Sentimos tédio quando não sabemos o que estamos esperando. O fato de o sabermos ou imaginar que o sabemos é quase sempre nada mais que a expressão de nossa superficialidade ou distração. O tédio é o limiar para grandes feitos. — Seria importante saber: qual é o oposto dialético do tédio?
[D 2, 7]
[...]
O tédio é um tecido cinzento e quente, forrado por dentro com a seda das cores mais variadas e vibrantes. Nele nós nos enrolamos quando sonhamos. Estamos então em casa nos arabescos de seu forro. Porém, sob essa coberta, o homem que dorme parece cinzento e entediado. E quando então desperta e quer relatar o que sonhou, na maioria das vezes ele nada comunica além desse tédio. Pois quem conseguiria com um só gesto virar o forro do tempo do avesso? E, todavia, relatar sonhos nada mais é do que isso. E não podemos falar das passagens de outro modo. São arquiteturas nas quais revivemos em sonhos a vida de nossos pais, avos, tal qual o embrião dentro do ventre da mãe revive a vida dos animais. A existência nesses espaços decorre sem ênfase, como nos sonhos. O flanar é o ritmo desta sonolência. Em 1839, Paris foi invadida pela moda das tartarugas. É possível imaginar muito bem como as pessoas elegantes imitavam nas passagens, mais facilmente ainda que nos boulevards, o ritmo destas criaturas. ■ Flâneur ■
[D 2a, 1]
O tédio é sempre o lado externo dos acontecimentos inconscientes. Por isso o tédio parecia elegante aos grandes dândis. Ornamento e tédio.
[D 2a, 2]
Sobre o duplo significado de temps em francês.11
[D 2a, 3]
O trabalho na fabrica como infra-estrutura economica do tédio ideológico das classes superiores. “A triste rotina de um infindável sofrimento no trabalho, no qual o mesmo processo mecânico é repetido sempre, assemelha-se ao trabalho de Sísifo; o fardo do trabalho, tal qual a pedra de Sísifo, despenca sempre sobre o operário esgotado.” Friedrich Engels, Die Lage der arbeitenden Klasse in England, 2a ed, Leipzig, 1848, p. 217 (cit. em Matx, Das Kapital, Hamburgo, 1922, vol. I, p. 388).
[D 2a, 4]
O sentimento de uma “imperfeição incurável” (cf. Les Plaisirs et les Jours, cit. na homenagem de Gide) “na própria essência do presente”,12 foi talvez para Proust o motivo principal de procurar conhecer a sociedade mundana até suas últimas dobras, e talvez seja até mesmo um motivo fundamental das reuniões sociais dos homens em geral.
[D 2a, 5]
[...]
Jogadores de xadrez no Café de la Régence: “Era ali que se viam alguns hábeis jogadores fazerem seu jogo de costas para o tabuleiro: bastava que lhes dissessem a cada lance qual a peça que o adversário havia deslocado, para que eles estivessem certos de ganhar.” Histoire des Cafés de Paris, Paris, 1 857, p. 87.
[D 2a, 9]
<fase média>
[...]
“O primeiro Império copiou os arcos de triunfo e os monumentos dos dois séculos clássicos. Depois, procurou-se reinventar, reanimando modelos mais remotos: o Segundo Império imitou o Renascimento, o gótico, o pompeano. Depois, caiu-se na era da vulgaridade sem estilo.” Dubech e D’Espezel, Histoire de Paris, Paris, 1926, p. 464. ■ Intérieur ■
[D 3, 2]
[...]
“Engels contou-me que, em 1848 em Paris, no Café de la Régence, um dos primeiros centros da revolução de 1789, Marx lhe expôs pela primeira vez o determinismo econômico de sua teoria da concepção materialista da história.” Paul Lafargue: “Persönliche Erinnerungen an Friedrich Engels”, Die Neue Zeit, XXIII, 2, Stuttgart, 1905, p. 558.
[D 3, 6]
O tédio — como índice da participação no sono do coletivo. Seria o tédio por isso tão elegante a ponto de ser ostentado pelo dândi?
[D 3, 7]
Em 1757 só havia três cafés em Paris.
[D 3a, 1]
Máximas da pintura do Império: “Os artistas novos só admitiam o ‘estilo heróico, o sublime’, e o sublime só podia ser alcançado com ‘o nu e o drapeado’... Os pintores deviam procurar suas inspirações em Plutarco ou Homero, em Tito Lívio ou Virgílio, e escolher, de preferência,
segundo a recomendação de David a Gros..., ‘temas conhecidos de todos’... Os temas tirados da vida contemporânea eram, por causa do estilo dos trajes, indignos da ‘grande arte’.” A. Malet e R Grillet, XIXe Siècle, Paris, 1919, p. 158. ■ Moda ■
[D 3a, 2]
“Feliz o homem que é um observador! Para ele o tédio é uma palavra vazia de sentido.” Victor Fournel, Ce Qu’on Voit dans les Rues de Paris, Paris, 1858, p. 271.
[D 3a, 3]
O tédio começou a ser visto como uma epidemia nos anos quarenta. Lamartine teria sido o primeiro a ter dado expressão a este mal. Ele tem um papel numa pequena história que trata do famoso comediante Deburau. Certa feita, um grande neurologista foi procurado por um paciente que o visitava pela primeira vez. O paciente queixou-se do mal do século - a falta de vontade de viver, as profundas oscilações de humor, o tédio. 'Nada de grave”, disse o médico após minucioso exame. “O senhor apenas precisa repousai, razer algo para se distrair. Uma noite dessas vá assistir a Deburau e o senhor logo vera a vida com outros olhos.” “Ah, caro senhor”, respondeu o paciente, “eu sou Deburau”.
[D 3a. 4]
[...]
“A introdução do sistema Mac Adam para a pavimentação dos boulevards deu nascimento a inúmeras caricaturas. Cham mostra os parisienses cegos com a poeira e propõe erigir ... uma estátua com a inscrição: A Macadam, dos oculistas e comerciantes de óculos, em reconhecimento!’ Outras representam os transeuntes suspensos em pernas de pau, percorrendo assim os pântanos e as poças d’água.” Paris sous la République de 1848: Exposition de la Bibliothèque et des Travaux Historiques de la Ville de Paris, 1909 [Poëte, Beaupaire, Clouzot, Henriot], p. 25.
[D 3a. 6]
“Somente a Inglaterra podia ter produzido o dandismo; a França é tão incapaz de produzir seu equivalente quanto sua vizinha o é de oferecer o equivalente de nossos ... ‘leões’, tão apressados em agradar quanto os dândis em desprezar ... D’Orsay ... agradava naturalmente e apaixonadamente a todo o mundo, mesmo aos homens, enquanto que os dândis só agradavam desagradando... Do leão ao pretendente a dândi há um abismo; mas quão maior é o abismo entre o pretendente a dândi e o miserável!” Larousse, Grand Dictionnaire Universel du Dix-neuviòne Siecle, vol VI, Paris, 1870, p. 63 (verbete “art dandy”).
[D 4, 1]
[...]
O capítulo referente a Guys em L’Art Romantique, sobre os dândis: “Todos são representantes ... dessa necessidade, hoje muito rara, de combater e destruir a trivialidade... O dandismo é o último brilho de heroísmo na decadência; e o tipo do dândi, encontrado pelo viajante na América do Norte, não enfraquece em nada essa idéia, porque nada nos impede de supor que as tribos que chamamos de selvagens sejam remanescentes de grandes civilizações desaparecidas... Seria preciso dizer que Monsieur G., quando desenha um de seus dândis no papel, confere-lhe sempre seu caráter histórico, até mesmo lendário, ousaria dizer, se não fosse questão do tempo presente e de coisas consideradas geralmente como brincadeira.' Baudelaire, L’Art Romantique (ed. Hachette, tomo III), Paris, pp. 94-95.17
[D 5, 1]
[...]
A multidão aparece como supremo remédio contra o tédio no ensaio sobre Guys: “‘Todo homem’, disse certa vez Monsieur G., numa dessas conversas que ele ilumina com um olhar intenso e com um gesto evocativo, ‘todo homem ... que se entedia no meio da multidão é um tolo! Um tolo! E eu o desprezo!’” Baudelaire, L’Art Romantique, p. 65. 19
[D 5, 3]
[...]
“A monotonia se nutre de novo!” Jean Vaudal, Le Tableau Noir, cit. em E. Jaloux, “L’esprit des livres”, Nouvelles Littéraires, 20 de novembro de 1937.
[D 5, 6]
Contrapartida da visão de mundo de Blanqui: o universo é um lugar de catástrofes permanentes.20
[D 5, 7]
Sobre L’Etemité par les Astres: Blanqui, que à beira do túmulo sabe que o Fort Du Taureau será sua derradeira prisão, escreve este livro para abrir a si mesmo as portas de novos cárceres.
[D 5a. 1]
Sobre L’Etemité par les Astres: Blanqui submete-se à sociedade burguesa. Mas cai de joelhos diante dela com tanta força que o trono começa a balançar.
[D 5a, 2]
Sobre L’Eternite par les Astres: neste texto está disposto o céu no qual os homens do século XIX vêem as estrelas.
[D 5a, 3]
A figura de Blanqui talvez esteja presente nas “Litanias de Satanás” (Baudelaire, Œuvres, ed. Le Dantec, vol. I, Paris, 1931, p. 138): “Tu que diriges aos proscritos esse olhar calmo e altivo. De fato, existe um desenho feito de memória por Baudelaire, representando a cabeça de Blanqui.
[D 5a, 4]
Para entender o significado da nouveauté, é preciso retornar à novidade na vida cotidiana. Por que todo o mundo comunica as ultimas novidades aos outros? Provavelmente para triunfar sobre os mortos. Isto apenas quando não há realmente nada de novo.
[D 5a, 5]
O último texto de Blanqui, escrito em sua ultima prisão, permaneceu a meu ver totalmente despercebido ate hoje. Trata-se de uma especulação cosmológica. É preciso admitir que, ao primeiro olhar, o texto parece banal e de mau gosto. Entretanto, as desajeitadas reflexões de um autodidata são apenas o prelúdio de uma especulação que não se imaginaria de modo algum encontrar neste revolucionário. Na medida em que o inferno é um objeto teológico, esta especulação pode ser denominada de teológica. A visão cósmica que expõe Blanqui, tomando seus dados à ciência natural mecanicista da sociedade burguesa, é uma visão do inferno - e é, ao mesmo tempo, um complemento da sociedade que Blanqui, no fim de sua vida, foi obrigado a reconhecer como vitoriosa. O que causa um choque é a ausência de qualquer traço de ironia nesse esboço. É uma rendição incondicional, porém, ao mesmo tempo, a acusação mais terrível contra uma sociedade que projeta no céu esta imagem do cosmos como imagem de si mesma. O texto, estilisticamente muito marcante, contém as mais notáveis relações tanto com Baudelaire quanto com Nietzsche. (Carta de 6 de janeiro de 1938 a Horkheimer).21
[D 5a. 6]
<fase tardia>
11 "Tempo cronológico" e "tempo atmosférico". Cf. K°, 23. (w.b.)
12 Marcel Proust, Jean Santeuil precedido de Les Plaisirs et les Jours, ed. org. por Pierre Clarac, com a colaboração de Yves Sandre, Paris, 1971 (Bibliothèque de la Plêiade, 228), p. 139; ver também vol II p. 312. (R.T.)
17 Op. cit, pp. 711-712. (R.T.)
18 Op. cit., p. 712. (R.T.)
19 Op. cit, p 692. (R.T.)
20 Cf. as teses de W. Benjamin "Sobre o Conceito de História", IX (GS I, 697). Na tradução brasileira: "Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, e/e [sc. o anjo da história] enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés." Teses, p. 87. (J.L.; w.b.)
21 Carta de 6 de janeiro de 1938 a Max Horkheimer, in: Briefe, vol. II, ed. org. por Gershom Scholem e Theodor W.Adorno, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1978, pp. 740-743: a passagem citada encontra-se nas pp. 741-742. (J.L.; w.b.)
BENJAMIN, Walter (1892-1940). Passagens / Das Passagen-Werk / Walter Benjamin; edição alemã de Rolf Tiedemann; organização da edição brasileira Willi Bolle; colaboração na organização da edição brasileira Olgária Chain Féres Matos; tradução do alemão Irene Aron; tradução do francês Cleonice Paes Barreto Mourão; revisão técnica Patrícia de Freitas Camargo; pósfácios Willie Bolle e Olgária Chain Féres Matos; introdução à edição alemã (1982) Rolf Tiedemann. — Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.

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