MONTELLIER,
Chantal (1947-). Bruxas, minhas irmãs / Sorcières, mes sœurs / Chantal Montellier; prefácio Chantal Montellier; com textos de A Bruxa, de Jules Michelet; tradução Maria Clara Carneiro; 2006. São
Paulo: Veneta, 2023.
Bruxas, minhas irmãs
“Na ldade Média, quando os homens estavam na guerra do Senhor ou nas Cruzadas, todas as mulheres ficavam completamente sós nos campos, isoladas durante meses, meses e meses na floresta, em suas cabanas. É assim, a partir da solidão, de uma solidão inimaginável para nós hoje, que elas começaram a falar com as árvores, as plantas, os animais, os animais selvagens; quer dizer, a entrar, como posso dizer... a reinventar uma relação inteligente com a natureza, a reinventá-la.
Uma inteligência que, na verdade, tem sua origem na Pré-História. Então foi uma reconexão.
E essas mulheres foram chamadas de bruxas, e foram queimadas. Dizem que 1 milhão delas. Em toda a ldade Média e no começo do Renascimento. Queimaram as mulheres até o século XVII.
— Essas mulheres que encontramos em filmes e em livros, penso em uma mulher como Nathalie Granger (1972], em Élisabeth Alione em Destruir, Ela Disse [Détruire, dit-elle, 1969], em Vera Baxter em Baxter, Vera Baxter [Les plages de l’Atlantique, 1977], será que, de certa maneira, elas não seriam ainda bruxas de Michelet?
— A gente continua nisso, nós, as mulheres... Ainda estamos nisso... Sim, estamos nisso. Não mudou mesmo muito.”
— Marguerite Duras*
Se, do meu ponto de vista, as coisas até que mudaram, acredito, no entanto, que o imaginário e a sexualidade das mulheres continuam a dar medo, sobretudo quando elas gozam de certa liberdade. Medo de não poder controlá-las, dominá-las. Medo do incêndio que elas poderiam provocar.
A bruxa é desde sempre percebida como uma rebelde incontrolável, acusada de negociar com o “Mal” e de joga “mau-olhado”.
Insolente, ela provoca os poderes e seus representantes: o príncipe, o padre, o médico (cujo saber ele deve muito a ela). Autônoma, ela é perigosa para a ordem estabelecida, pois questiona a autoridade de clérigos e do clericato.
Jules Michelet**, que consagrou a ela um livro magnífico, corajoso e lúcido, parece, no entanto, crer que a bruxa tinha mesmo um laço com as potências ocultas. Segundo Georges Bataille, ela encarnaria a desordem dos sentidos, a parte maldita.
Para todos os poderosos e aqueles que os seguem, ela é a “cabra expiatória” da razão e da modernidade. Em nome da ciência e do “progresso”, essa figura de alteridade deve ser erradicada sem misericórdia.
É preciso dizer que ela ofende e disputa o saber oficial ao praticar a medicina das plantas e ao desenvolver uma estranha farmacopeia. Reprovam-Ihe também a sexualidade livre demais, até mesmo desenfreada. Falam da “vagina insaciável” das bruxas, que têm a reputação de cavalgar os homens e continuar a fazer amor depois da menopausa, prática muito malvista pela lgreja. Em suma, sua sexualidade é subversiva.
A solução é simples: é preciso queimar essas mulheres! A Inquisição atiça seu fogo contra elas. Por todo canto, padres acendem fogueiras nas quais elas desaparecerão aos milhares. Na Alemanha, na Suíça, na Espanha e, claro, na França, as bruxas perecem nas chamas, da mais humilde “feiticeira” à mais famosa: Joana d’Arc, que, isso é esquecido com muita frequência, foi condenada por heresia e bruxaria. Ela transgrediu os costumes esta belecidos, cortou os cabelos, se vestiu como homem, montou a cavalo, segurou a espada. Ela deve então perecer, quaisquer que sejam seus méritos e sua coragem. Aos heróis, as honras; às heroínas, a fogueira.
Diante dessa sentença atroz e bárbara, a bruxa se encontra só, reunindo, geralmente, todo o consenso contra ela. Protestantes e católicos se aliam contra as infelizes.
Herdeira dos tempos obscuros, essa terrível repressão perdurou até o Renascimento! Humanistas, de Cornelius Agrippa a Jean Bodin***, farão coro contra a “maldita”. O que pode suscitar algumas interrogações.
A bruxa atravessa os tempos, da fogueira à cadeira elétrica, passando pelas chamas revolucionárias em que a mulher Subversiva é, ainda e sempre, identificada com a bruxa. Assim seria Louise Michel, a “virgem vermelha”****.
O ano de 1968 vê certa reabilitação dessa figura sulfurosa. A escritora Xavière Gauthier cria até uma revista chamada Sorcières (bruxas ou feiticeiras]. Pena que não durou muito.
A “livraria-galeria das mulheres”, localizada na rua Saints-Pères [santos pais] em Paris — como é simbólico! —, não tardaria a deixar seu lugar para uma loja para gestantes. Outro simbolo.
A revista feminina Ah! Nana caía, no mesmo movimento, sob os golpes de uma censura exclusivamente masculina. As desenhistas francesas foram condenadas a retornar a Seus lugares, quer dizer, às publicações para crianças (Nicole Claveloux), ou a seus estudos (Trina Robbins e seus livros sobre mulheres desenhistas), ou, a longo prazo, para o uso somente de palavras, como eu mesma fiquei restrita por vários anos a viver de oficinas de texto (e não de artes plásticas). Ou, enfim, à invisibilidade: por onde andam Keleck, Liz Bijl, Marie-Noëlle Pichard...A sociedade patriarcal tem reflexos excelentes, pena que servem sobretudo para quebrar os talentos de suas mulheres. Algumas dessa geração conseguiram, com dificuldades, sobreviver por exemplo, Jeanne Puchol, cujo talento cresce em proporção inversa aos benefícios que ela ganha com ele. Outras, mais jovens, se alinharam ao imaginário dominante, ou já estão se apagando, preferindo uma vida “legal” à batalha incessante. É possível compreendê-las.
Outras também, como Catel Muller, parecem ter vontade de combater e se esforçam para conciliar a vida profissional exigente com a vida de esposa e mãe. Desejo a Catel boa sorte e lhe digo: “Irmã! Olhe com atenção à tua esquerda, irmã! Atenção à tua direita”. As fogueiras da Inquisição queimam ainda, mesmo se aqueles que as atiçam guardaram suas máscaras no vestiário e parecem ser dos nossos.
Chantal Montellier
* Trechos do documentário Les lieux de Marguerite Duras, realizado por Michell Porte.
** O francês Jules Michelet (1798-1874) foi um dos fundadores da historiografia moderna. Sua obra-prima é a monumental Histoire de France (dezenove volumes), mas a publicação dele que a autora cita na abertura dos capítulos deste livro é La Sorcière (A Bruxa, ou A Feiticeira), de 1862.
*** Heinrich Cornelius Agrippa (1486-1535) foi um teólogo alemão, autor de diversas obras sobre o ocultismo. Jean Bodin (1530-1596) foi jurista, filósofo e também autor de um influente tratado de demonologia.
**** Louise Michel (1830-1905) foi uma das líderes da Comuna de Paris (1871) e é considerada a grande pioneira do anarcofeminismo.
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