PRELÚDIO, TOCCATA E FUGA
Quando me encontrei onde nasci, pela primeira vez, de uma vez que deslembro, a ânsia de beleza em mim era anterior a mim. Poucos, aos poucos, vi aqui ali outros ansiando pela beleza. Há no homem ânsia de beleza; como há estâncias do mal. Instâncias de feiúra em ouro: desdouros.
E no princípio era o ondear das mulheres, sinuosas melodias das curvas, canções, cabelos soltos, perfumes, melancolias.
E no princípio eram os contos de fadas, de fados, e as imaginações.
E no princípio era o instante que um encanto visiona guardado (imenso) na relembrança, fixado pela música que se desse pelo ar. A música não tinha que ser bela, ela se alava à beleza pelo que haveria de ser o mimo da memória.
Como cantares de fundo de quintal de pequeninas casas nos confins das cidades em manhãs de domingo. Como sobejos de rádios remotos. Como cantoria de alto-falantes de parques de diversões. Como realejos. Como cantos de rua. Sinos dobrando. Chiados de velhos discos de cantigas longínquas. A polonaise de Chopin, o concerto de Rachmaninov, Noches de Ronda aconteciam na obscuridade do cinema. Le lac de Côme. A vendedora de flores, e pianos antigos, escuros esguios olorosos.
II. Agitato molto rubato
Atrás dos princípios vieram os anos de aprendizado, de educação sentimental – o romance de formação.
Tal Colombo, qual Cabral, há quinhentos anos: em trajetos de descobertas do novo mundo, eu singrava “velhos mares há muito navegados” em percursos de descobertas do velho mundo. Zingro, ainda. “Dez caravelas e três navios redondos”.
— Como um navio redondo?
A educação — ao mesmo tempo alambica memórias e estrutura preconceitos. A beleza existia — em parte antes de mim — em parte enquanto me disseram dela. Gostava que a beleza tivesse sempre existido. Talvez que a beleza tenha sempre existido, mas sabemos tão pouco dela: duas ou três coisas: e mais não compreenderíamos quanto de eternidades e infinitos. “Essas coisas não são segredos, mas mistérios”. Sem acordos nem certezas. “Pergunte a um sapo se ele acha Sharon Stone mais bela que uma sapa?”
“Alcandorou-se em seu saber” (Laudelino Freire)
Hoje me sublimo em pensar nos tempos de aprendizado; não, certamente, em saberes que alcandoram. Alcândoras. Ai de mim, os falcoeiros! Em francês: LEURRER (voir a ce mot).
“A arte burguesa não é eterna, como se pensa, é apenas arte de uma classe, da classe dominante”. (Eisler)
“A ideologia pode não explicar tudo, mas impregna tudo”. (Girard)
III. Precipitato, senza affretare
“A produção capitalista é hostil a determinados aspectos da produção intelectual, como a arte, a poesia”. (Marx)
E não há uma língua musical erudita falada no capitalismo. Mesmo que existam pessoas falando. Muitos dão a impressão de loucos que falam sozinhos. Mas não existe língua que assegure entendimento entre as partes: nem de quem fala, nem de quem escuta. E a beleza se torna difícil, muito difícil.
“No equilíbrio do homem não cabe a exploração capitalista. Um estômago com fome não é um corpo com fome mas um espírito humilhado”.
E a beleza se torna difícil, muito difícil. Como trabalharia Bach entre nós, hoje? Cantatas já não se cantam, Toccatas não se tocam, Suítes (de rocks?). E Mozart, Schubert, como haveriam de organizar as alturas? E se Monteverdi estivesse desempregado na atual economia de mercado global — sem brilhos evidentes de inteligência emocional — que Gonzaga avaliaria, entre tantas, a beleza de sua música?
“Dom Quixote já expiou o erro de acreditar que a cavalaria andante era compatível com todas as formas econômicas da sociedade”.
“O meio de produção na vida material determina os processos da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência moral dos homens que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social que lhes determina a consciência moral”.
Tudo o que tinha solidez e permanência extingue-se em fumaça, todo o sagrado é profanado, e os homens vêem-se finalmente obrigados a encarar as suas condições de existência e relações recíprocas com expressões de desilusão.
CODA I.
Uma reticência...
Musicalmente, duas verdades são possíveis de serem expressas: uma estrutural e outra passional; mas é na estrutural que todo o pensamento musical encontra sua unidade.
De um lado temos, pois, a verdade passional, interpretando a “outra área do discurso”: as sensações. E qualquer definição e/ou explicação que se proponha nesta área desembocaria inevitavelmente numa aporia.
O conjunto de nossos sentimentos integra nossa linguagem privada (uma e uma só para cada indivíduo) e qualquer esforço de verbalização deve ser estimado como uma tentativa (prenhe de “sugestões” mas ineficaz ao nível de definição) e que ainda será submetida a uma outra apreensão (modulada pela linguagem privada de um ou outro indivíduo) à qual eu não tenho pleno acesso.
Assim, recordemos Wittgenstein: “o que não se pode falar deve-se calar”. O silêncio consentido, o silêncio com sentido. E ainda: a paixão prescinde da razão para se impor, e revela-se por isso mesmo ineficiente para nos conduzir até a ontologia da linguagem; e muito menos como ferramenta de análise para um juízo de valor. A paixão é do domínio da “sugestão”, da ambigüidade, do inefável.
A verdade estrutural é apodíctica [incontestável]. Move-se pela consistência dos relacionamentos entre os elementos (factuais) que compõem os discursos. A Sintaxe.
II. ... entre parênteses
Estão no modo como os elementos se organizam, os dados para a decodificação semântica: signos que não apontam para fora — não simbolizam — se auto-denotam expressando funções (“vigiando/ duvidando/ rolando/ brilhando e meditando/ antes de se deter/ em algum ponto último que o sagre”): as significações se estabelecendo em função do contexto.
Cada obra lançando seus dados, emitindo seu próprio código! E, quanto mais estreitas as relações; quanto mais numerosas sejam as trocas de informações entre os elementos; quanto mais orgânico se manifesta o todo, uno.
A verdade estrutural é humana (sensível) porquanto se mostra como metáfora da vida orgânica e não como se pretende (partindo-se de quantas direções filosóficas!), formalista e desvinculada do Homem: como se o Homem fosse só paixão: como se o pensamento lógico não fosse (de resto) o elemento distintivo entre o Homem e o animal.
A verdade estrutural alia o conhecimento das operações (lúdicas) à capacidade criativa (imponderável) o que torna possível novas operações, e só então se revela a ontologia de linguagem musical. O jogo estrutural manifesta no máximo uma capacidade imaginativa atada à mimeses; a verdade estrutural é o testemunho da capacidade criativa (e transformadora; o domínio do Homem sobre a Natureza).
Se a verdade estrutural exclui o jogo estrutural porque o ultrapassa, não exclui a verdade passional porque não a alcança. Mas a verdade passional só é efetiva quando se apropria da verdade estrutural para se tornar transparente. A verdade estrutural é uma manifestação da “paixão” do pensamento lógico.
Aquilo que não se pode falar, deve-se silenciar. Aqui não é o resto que é silêncio, é tudo.