Já
ouvi o senhor falar que tentou acabar com o Festival várias vezes, mas
sempre te impedem e falam para continuar. Sempre cobraram muito do
senhor, e o senhor sempre diz ser um compositor e não um empresário. Mas
agora com o Lorenzo Mammì cuidando da parte administrativa, e o Luiz
Gustavo Petri, o senhor fica só na direção artística. Ainda pensa em
desistir?
Agora é como eu sempre desejei que tivesse sido, e
aconteceu porque há dois, três anos, eu encerrei um deles, e até fico
pensando que eu poderia ter encerrado há mais tempo porque assim
apareceriam as pessoas interessadas (risos), como aconteceu agora. Eu me
acostumei com a idéia de ter acabado o Festival, e não pretendia,
realmente, fazer mais. Mas como é um espaço para músicos, há uma pressão
grande para que continue. E o Lorenzo Mammì lá do Centro Maria Antônia,
que é da USP (e eu também sou professor aposentado da USP, somos
colegas), ele propôs fazer lá. Eu disse: –Tudo bem, mas vocês fazem. Eu
não quero mais mexer nessas coisas, correr atrás de verba, nada disso. E
eles se encarregariam disso, eu ficaria simplesmente como diretor de
honra, diretor artístico. Opinar, dizer sim, não, está bem, está legal,
dar o molde da coisa, mas sem precisar entrar em contato com o dinheiro.
Mas em Santos acharam ruim, porque o pessoal de Santos e outras
Sociedades aqui, Aplauso (que é uma associação da Orquestra Sinfônica
Municipal, maestro Luiz Gustavo Petri), também quiseram fazer em Santos.
Eu falei a mesma coisa, que tudo bem que eles fizessem, eu ficaria
muito contente. Agora eles estão no terceiro ano.
No
debate que ocorreu no auditório da Folha, o senhor estava comentando a
falta de divulgação da música de nosso tempo e da música de alto
repertório em geral. Falam que o povo não quer saber dessas coisas, e o
senhor disse que a situação atual é, na verdade, responsabilidade das
pessoas que cuidam disso, dos responsáveis que são ignorantes...
Não
há a menor dúvida. Ninguém dá dinheiro para o Festival. Mas embora eu
consiga geralmente verbas pequenas para ele, ele é super bem sucedido. A
função dele não é ser um Festival como Campos do Jordão, esse tipo de
coisa, é um Festival de compositores que se reuniram para mostrar a sua
própria música e, posteriormente, conforme foi continuando, daqueles que
aderiram à nossa linha de programa. Depois começam os contatos,
primeiro latino-americano, depois mundial, internacional, virou um
movimento realmente grande. Eu não queria ir atrás de bastante dinheiro.
Eu não sou nem empresário e nem produtor. Na verdade eu preferiria um
Festival de porte pequeno, mas que não desse trabalho. Se tivesse muito
dinheiro na minha mão eu teria que alugar umas duas salas, ter
secretárias e ficar trabalhando o tempo todo com a organização do
Festival, mas não é o meu campo esse aí (risos), eu sou compositor.
E até perderia a liberdade do Festival...
E o caráter também não é esse.
O
Festival sempre traz coisas interessantes, como nesta edição que tem o
Dieter Schnebel e o Ensemble Orchestral Contemporain...
O
Festival este ano é muito pequeno porque entrou muito pouco dinheiro. No
ano passado, por exemplo, foi maior. Então muita coisa a gente cortou. É
muito pequeno, com sete eventos no total. Mas está muito bom, não é?
Sim, está pequeno, mas está muito bom...
O
Dieter Schnebel, que é uma das figuras maiores deste movimento da Neue
Musik – Música Nova – aqui presente. Figura histórica, uma das maiores
figuras da Música Nova, um dos maiores compositores da Alemanha, e a
Alemanha foi a comandante deste movimento. Tem também o Ensemble
Orchestral Contemporain que vai ser muito bom. Tem uma obra até do
Pierre Boulez no meio...
Edgard Varèse...
Varèse
também, e um compositor da nova geração que é muito interessante. Uma
pianista inglesa muito curiosa também que vai tocar um programa com
composições da Renascença, Bach, Ligeti...
E música pop também...
Pop,
músicas dela mesma, muito interessante. E também uma flautista
holandesa muito boa vai tocar com a Orquestra Sinfônica de Santos um
concerto para flauta e orquestra que é do próprio marido dela, que é
compositor também, ele é norte-americano, mas é radicado na Holanda.
Além das presenças estrangeiras boas, grupos brasileiros também. Desta
vez não deu para formar grupos de câmara – trios, quintetos, etc. Não é
possível fazer milagres. A Orquestra de Câmara do departamento de música
da Usp e a Banda Sinfônica têm muita música brasileira. O Festival
sempre apresenta música brasileira...
E agora não tem mais a Sinfonia Cultura.
É,
tivemos esta perda lamentável que se deve a esses fatos de que falava
aqui. As pessoas que às vezes ocupam certos cargos de direção de TV e de
rádio, elas levam para ali a sua ignorância. Acham: (fazendo outra voz)
“Não! O povo não quer ouvir isso.” Mas não consultaram ninguém. É isso.
Na verdade, eles é que não gostam. Porque o cara que gosta da alta
cultura e que está em um cargo de direção artística, um cara que ama a
alta cultura, aí ele vai repugnar essas coisas. Como agora a TV Cultura
abaixou o nível da programação, não é?
Muito, e a Rádio também.
É,
a Rádio e a TV. Para quê? Para atingir o grande público. E é inclusive
burrice, porque não atinge. Quem ouve a Cultura não vai ver a televisão e
ouvir, por causa dessa mudança, e vai perder o público que tinha. Quem
gosta da alta cultura, não tem mais rádio, não liga mais para lá. Não
existe com essa finalidade. A direção, eles é que não gostam. O que
precisa, o fundamental de todo projeto cultural, mesmo educacional, o
fundamento dessa mecânica é dar chance de escolha. Porque ficar com esse
preconceito – porque isso é um preconceito, preconceito de ignorante:
“Não! Esses caras não querem.” O cara que está dizendo isso. Eles não
gostam e não toleram esse tipo de coisa. E não é nada disso, tem que
mostrar tudo, para a pessoa optar. Eu, que peguei os anos antigos, tenho
bastante idade e ouvi rádio nos anos 30 e tal, tinha uma opção incrível
naquela época. Só na área popular, você ouvia grupos da Hungria, grupos
da Tchecoslováquia, grupos dos Estados Unidos, música francesa, ouvia
de tudo. Rádio é popular, ainda mais naquele tempo. Então eu fui formado
pela melhor música, a mais variada possível. A geração de hoje não tem
opção, você liga o rádio e é tudo rock. Só tem a música ruim e não a
boa. Então não há mais a chance da opção. Opção é fundamental. Colocar
tudo e é o público que deve decidir. Eles só mostram uma coisa. E a TV
Cultura agora faz coisas como o programa da Silvia Poppovic (risos).
Eles têm que perceber que deviam deixar essa vulgaridade para as
outras...
Que fazem melhor isso...
Que
fazem melhor, não é? E ninguém vai deixar de ver a outra para ver essa
aí. Vai perder o público que já tinha para alguma concorrente.
O
senhor já disse que compõe para poder escutar os grandes mestres. O
Festival Música Nova acabou chegando em um ponto que estréia no Brasil
muitas obras, tanto de compositores brasileiros quanto estrangeiros. O
senhor não acha que com o Festival o senhor também acabou conseguindo
pagar um tributo, tanto aos mestres quanto aos contemporâneos?
Essa
frase que eu disse uma vez, na verdade eu escrevi. É que volta e meia
perguntam para a gente: “Por que você compõe?” E a gente tem umas
respostas meio padronizadas, nós, os compositores. Mas no fim eu pensei
bem, e o porquê de eu compor é estar como que a merecer ouvir a grande
música de Bach, Beethoven, Renascença, Idade Média, grandes
contemporâneos... Merecer. Acho que tem que merecer ouvir essa gente.
Não precisa se tornar um grande compositor. Grandes compositores são
poucos no mundo, na história da humanidade. Eu quero apenas ser um
compositor, aí eu me sinto como que no direito a poder ouvir. Uma vez eu
li aquele escritor, um escritor russo, que escreveu o Doutor Jivago,
Pasternak. Uma vez ele declarou que quando ele foi criança, ouviu
Scriabin ou alguma coisa assim, e ele quis ser músico. Engraçado... E
tentou, estudou, tal e tal, mas parece que não foi adiante, não tinha
talento. E aí ele desistiu, se interessou pela literatura, e disse que
nunca mais quis ouvir música... Engraçado. E ele gostava muito a ponto
de querer ser compositor, ele queria ser músico. Pelo menos não sei se a
vida toda, mas em um dado momento ele se desinteressou. Eu pensei bem –
eu passei por uma fase um pouco assim, quando eu estudava música, ainda
não era ninguém na música, na década de 40, eu às vezes pensava um
pouco assim. Mas felizmente hoje eu posso ouvir música com muito prazer.
Ruim ou não, eu me tornei um compositor.