1º esboço sobre palestra que eu darei na Casa das Rosas — Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura (13/11/2008 — 18h30)
Na obra de Poe, alguns elementos insinuados em um conto, desenvolvem-se mais amplamente em outro. O que é parte ou detalhe em um conto, torna-se espinha dorsal de outro. Cria-se, assim, um sistema de referências internas, muitos rebatimentos de um conto a outro: duplicações, espelhamentos, labirintos textuais. Em todos os seus contos existem obsessões ficcionais.
A loucura pessoal dentro da lógica racional
“Este orgulhoso é um fraco, (...) Poe a resolve [a sua fraqueza] num orgulho que o obriga a dar o melhor de si naquelas páginas escritas sem compromissos exteriores, escritas a sós, divorciadas de uma realidade bem cedo considerada precária, insuficiente, falsa. E o orgulho assume ainda o matiz característico do egoísmo. Poe é um dos egoístas mais cabais da literatura. Se no fundo ignorou sempre o diálogo, a presença do tu, que é a autêntica inauguração do mundo, isto se deve ao fato de que só consigo mesmo se dignava a falar. Por isso, não lhe importava que os seres queridos o compreendessem. Bastava-lhe o carinho e o cuidado; não necessitava deles para a confidência intelectual (...). Por fim o egotismo desembocará na loucura. (...) A conseqüência inevitável de todo orgulho e todo egotismo é a incapacidade de compreender o humano, de se aproximar dos outros, de medir a dimensão alheia. Por isso, Poe não conseguirá criar nunca uma só personagem com vida interior; o chamado romance psicológico o teria desconcertado”. (Cortázar sobre Poe) Criam-se assim “personagens anormais”, para utilizar o termo que Cortázar aplica. O material que Edgar Poe utiliza para construir os personagens é apenas o que ele possui: ele mesmo. Na sua Filosofia da Composição, explica resumidamente o processo criativo de O Corvo. O ensaio foi escrito após a publicação do poema, que levou alguns anos na sua elaboração. No texto racionalista, coloca como ponto pacífico o seguinte: “a morte, pois, de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo...” (Filosofia da Composição, Poe)
Para Poe, o personagem principal seria: “um estudante, ocupado em folhear um volume e sonhar com uma adorada amante morta (...). O Corvo, interrogado responde com seu costumeiro ´Nunca mais’, frase que logo encontra eco no coração melancólico do estudante, que, dando expressão, em voz alta, a certos pensamentos sugeridos pelo momento, é de novo surpreendido pela repetição do ‘Nunca mais’ do Corvo. O estudante adivinha então a real causa do acontecimento [a repetição irracional por parte do animal], mas é impelido, como já explanei, pela sede humana de autotortura, (...), a propor questões tais a ave que só lhe trarão, ao amante, o máximo da volúpia da tristeza, graças à esperada frase ‘Nunca mais’. Levando até o extremo essa autotortura, ...”. (Filosofia..., Poe)
Cenários Fechados
“sempre me pareceu que uma circunscrição fechada do espaço é absolutamente necessária para o efeito do incidente insulado”. (Poe)
Mulher Amada
A mulher amada morta apresenta-se sempre como uma constante, e o amante é sempre o seu assassino – consciente ou inconscientemente, direta ou indiretamente (característica bastante comentada por Cortázar). A constante relação amante/amada na obra de Poe remete ao que será falado sobre a questão do duplo, e a dialética vida/morte implícita nesta.
O amante, sempre acaba por idealizar a sua amada, transformando-a em um signo, e, por conseqüência, matando-a. Citando o final do conto “O Retrato Oval”: “ – É a vida, é a própria Vida que eu aprisionei na tela! E quando se voltou para contemplar sua esposa... Estava morta!” No conto “Ligéia”, se observarmos com atenção, não é Ligéia que ressuscita e sim os seus olhos, pois era a única coisa que o narrador dizia no início não conseguir definir. O resto era pura idealização, de um amante com assumida doença de memória, que só se lembrava de sua amada descrevendo-a como um mosaico de citações, ou seja, uma imagem construída por ele. Essa idealização apresenta-se como fuga, pois ao invés de relacionar-se diretamente com a mulher, e, conseqüentemente, com o lado perene da vida, o narrador prefere construir para ele um signo dela (evitaremos aqui os sempre presentes comentários autobiográficos sobre Poe).
Julio Cortázar assim define os elementos do poema O Corvo: “a melancolia, a noturnidade, a necrofilia, o angelismo e a paixão desapaixonada, isto é, a paixão a salvo de efetivação, a paixão-recordação daquele que chora invariavelmente por determinada morta, por alguém que já não pode ameaçá-lo deliciosamente com a presença temporal. E assim [Poe] pensará ter reduzido livremente que a ‘morte de uma formosa mulher’ é o mais poético dos temas [na Filosofia da Composição], quando nada de livre há nessa imposição profunda da sua natureza, e o ‘princípio’ lhe parecerá tão racional como os princípios meramente técnicos do verso.”
Em toda a obra de Edgar Allan Poe, seja em poesia, seja em prosa, a mulher amada, enquanto “viva” no processo de idealização, tem os cabelos negros e encaracolados, e, quando morta, tem os cabelos loiros e lisos – mas todas elas apresentam uma testa avantajada (talvez originada pela crença de Poe na frenologia).
Duplo/Morte/Espelhamento
O Duplo é presente em toda obra de Poe, justamente na época da invenção da máquina fotográfica, que causou enorme impacto na época:
O registro do objeto nunca é o próprio objeto, e sim a sua representação. Um instante congelado e eternizado em uma fotografia, apenas demonstra o seu inverso: a morte e a evanescência de cada instante vivido. Qualquer signo, em relação com o objeto, é um duplo. A única foto que se tem de Poe foi tirada um dia após a sua tentativa de suicídio.
O duplo aparece de várias formas na obra de Poe e manifesta-se tanto aos estados psicológicos, quanto à linguagem e à estrutura, formando verdadeiras Gestalts compactas. Quebra-cabeças semióticos. Como disse Decio Pignatari, após uma brilhante análise heurística do conto “Berenice”: “o conto de terror era afinal um puzzle”, e, segundo ele, o conto “O Retrato Oval” é uma “vinheta da alienação que o signo – a consciência do signo – produz em relação à vida”. O duplo chega até as formas mais radicais, como no conto William Wilson.
Toda questão da morte, na obra poeana, ocorre tanto no texto quanto no sub-texto. A simples presença constante do duplo e dos espelhamentos já a torna evidente. Esta relação torna-se óbvia no conto “William Wilson”, onde, mais do que qualquer outro, a questão do duplo aflora na própria superfície do texto.
Tanto a estrutura, como os procedimentos de linguagem, são decisivos para obter, nas palavras do próprio E. A. Poe, as “correntes subjacentes de significado”. Utilizando-se esses procedimentos, o escritor apresenta como constante, em toda a sua obra, uma obsessão pelos processos de inversão ou reversão do signo sobre si mesmo. Em 1925, W. Carlos Williams já percebia no escritor “o hábito, emprestado talvez da álgebra, de equilibrar suas frases no meio, ou de invertê-las na última cláusula, um sentido de jogo, como se se tratasse de objetos...”. Essa mesma fascinação de Poe, foi demonstrada por Roman Jakobson no seu estudo do poema O Corvo: no refrão Never more/ Never more, tem-se o “never”: imagem especular de “raven” (corvo). O mesmo jogo de inversão entre “raven” e “never” pode também ser encontrado no fragmento final do conto “Ligéia”.
Decio Pignatari já disse que o escritor “compõe ao revés, no componedor, palavras e frases, assim Poe endereça a linguagem à sua função poética por processos anagramáticos e hipogramáticos...”.
Em toda obra de Poe, o espelhamento é sempre uma constante.
No Raven (Never), por exemplo, a ave surge como uma projeção e exteriorização do personagem (espelhamento – duplo), para conseguir colocar para fora, através do desabafo, os seus questionamentos. Como diz Poe, na Filosofia da Composição, ele o faz pela simples “autotortura”, e, como também é dito neste ensaio, pergunta motivado pela segurança de ter o controle da situação (que ele tanto busca, por temer as suas dúvidas e incertezas), pois sabe que terá apenas uma única resposta.
O poema, como já é de se esperar, apresenta uma estrutura dividida ao meio, sendo uma metade uma inversão da outra. Na primeira, que tem como característica mais evidente o refrão “nada mais”, o personagem passa por um processo de auto-ilusão, imaginando coisas que quer que aconteçam, e banalizando os seus anseios e a sua decepção pelas ilusões que não se concretizam, com frases do tipo: “É apenas isso e nada mais”. Atitude que apenas torna patente a sua insegurança.
Na segunda parte ocorre o inverso: a, crescente e contínua, desilusão do personagem é refletida na imagem do Corvo (símbolo do mau agouro), pois, como dizem Jakobson e Pignatari, a ave é aquilo que diz (a desilusão) e diz a si mesmo (como a ave, no poema, fala com o personagem, e, como foi dito, ela fala a si mesmo, ela não é nada mais nada menos que a projeção do personagem).
É bastante comum o espelhamento geral de toda a estrutura de quase tudo de Poe, como n’O Barril de Amnontillado, onde – na metade do conto – aprece o “intervalo entre dois colossais pilares de teto das catacumbas”, que é o elemento mais importante do conto; e na Queda da Casa de Usher, que tem um poema bem no centro do conto, como se fosse a “fenda (...) descendo em ziguezague” pelo meio da casa (com “janelas vazias, semelhando olhos”) no ponto onde ela é rompida no final do conto.
“O leitor deve ter em mente que a base de toda a arte da solução, no que respeita esses assuntos, deve ser encontrada nos princípios gerais da própria linguagem”. (Poe)
“No caso presente – assim como em todos os casos de escrita cifrada – a primeira questão diz respeito à linguagem”. (O Escaravelho de Ouro, Poe)
“Há em nós uma presença obscura de Poe, uma latência de Poe. Todos nós, em algum lugar de nossa pessoa, somos ele, e ele foi um dos grandes porta-vozes do homem, aquele que anuncia o seu tempo noite adentro.”
Cortázar
Não Palavra
No conto “O Poder das Palavras”, ele afirma que a emissão das palavras modifica toda a estrutura do cosmos, alterando o curso das estrelas, criando e tirando vida. Como resposta ao uso banalizado que julgava ser feito das palavras na sua época, Edgar Poe explorou também a não-palavra, acreditando também que somente assim determinados sentimentos e impressões poderiam ser expressos.
Fixação de Poe pelos pêndulos
Uma característica presente em toda a obra de Edgar Poe é a fixação por movimentos pendulares, presentes tanto nos textos quanto nas próprias estruturas. Podemos observar tanto em exemplos óbvios, como “O Poço e o Pêndulo” entre outros, como na estrutura de poemas, como “The Bells”, ou na própria repetição nothing more/ nevermore, do poema O Corvo. Não raro os movimentos pendulares são associados aos ciclos naturais e cósmicos; e principalmente à morte como, por exemplo, no “Colóquio Entre Monos e Una” onde lemos a seguinte descrição de desfalecimento: “E então, do aniquilamento e do caos dos sentidos normais pareceu-se ter-se erguido dentro de mim um sexto sentido, inteiramente perfeito.(...) Deixa-me denominá-la uma pulsação mental pendular. Era a corporificação moral da idéia abstrata que o homem tem do Tempo. Em absoluta consonância com esse movimento – ou coisa equivalente – é que os ciclos dos próprios orbes celestiais foram ajustados.”
“O pêndulo oscilava para lá e para cá, com um tique-taque vagaroso, pesado, monótono. E quando o ponteiro dos minutos concluía o circuito do mostrador e a hora ia soar, emanava dos pulmões de bronze do relógio um som claro, elevado, agudo e excessivamente musical, mas tão enfático e característico que, de hora em hora, os músicos da orquestra viam se forçados a parar por instantes a execução da música para ouvir-lhe o som (...).”
A Máscara da Morte Rubra, Poe
Poe e Webern
Podemos encontrar diversas semelhanças estruturais na obra poeana e weberniana. Uma delas é a fixação por formas espelhadas. Webern radicalizou o dodecafonismo schoenberguiano, com utilização das formas espelho, caranguejo e retrógrado construindo espelhamentos em todos os sentidos, construindo diamantes musicais, o que levou Herbert Eimert denominá-lo “o arquiteto monádico da forma-espelho” – Poe foi denominado por muitos como o engenheiro dos espelhos. Assim, como o escritor, o compositor buscava montar estruturas simétricas e bipartidas, tanto nas macro como nas micro-estruturas.
A loucura pessoal dentro da lógica racional
“Este orgulhoso é um fraco, (...) Poe a resolve [a sua fraqueza] num orgulho que o obriga a dar o melhor de si naquelas páginas escritas sem compromissos exteriores, escritas a sós, divorciadas de uma realidade bem cedo considerada precária, insuficiente, falsa. E o orgulho assume ainda o matiz característico do egoísmo. Poe é um dos egoístas mais cabais da literatura. Se no fundo ignorou sempre o diálogo, a presença do tu, que é a autêntica inauguração do mundo, isto se deve ao fato de que só consigo mesmo se dignava a falar. Por isso, não lhe importava que os seres queridos o compreendessem. Bastava-lhe o carinho e o cuidado; não necessitava deles para a confidência intelectual (...). Por fim o egotismo desembocará na loucura. (...) A conseqüência inevitável de todo orgulho e todo egotismo é a incapacidade de compreender o humano, de se aproximar dos outros, de medir a dimensão alheia. Por isso, Poe não conseguirá criar nunca uma só personagem com vida interior; o chamado romance psicológico o teria desconcertado”. (Cortázar sobre Poe) Criam-se assim “personagens anormais”, para utilizar o termo que Cortázar aplica. O material que Edgar Poe utiliza para construir os personagens é apenas o que ele possui: ele mesmo. Na sua Filosofia da Composição, explica resumidamente o processo criativo de O Corvo. O ensaio foi escrito após a publicação do poema, que levou alguns anos na sua elaboração. No texto racionalista, coloca como ponto pacífico o seguinte: “a morte, pois, de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo...” (Filosofia da Composição, Poe)
Para Poe, o personagem principal seria: “um estudante, ocupado em folhear um volume e sonhar com uma adorada amante morta (...). O Corvo, interrogado responde com seu costumeiro ´Nunca mais’, frase que logo encontra eco no coração melancólico do estudante, que, dando expressão, em voz alta, a certos pensamentos sugeridos pelo momento, é de novo surpreendido pela repetição do ‘Nunca mais’ do Corvo. O estudante adivinha então a real causa do acontecimento [a repetição irracional por parte do animal], mas é impelido, como já explanei, pela sede humana de autotortura, (...), a propor questões tais a ave que só lhe trarão, ao amante, o máximo da volúpia da tristeza, graças à esperada frase ‘Nunca mais’. Levando até o extremo essa autotortura, ...”. (Filosofia..., Poe)
Cenários Fechados
“sempre me pareceu que uma circunscrição fechada do espaço é absolutamente necessária para o efeito do incidente insulado”. (Poe)
Mulher Amada
A mulher amada morta apresenta-se sempre como uma constante, e o amante é sempre o seu assassino – consciente ou inconscientemente, direta ou indiretamente (característica bastante comentada por Cortázar). A constante relação amante/amada na obra de Poe remete ao que será falado sobre a questão do duplo, e a dialética vida/morte implícita nesta.
O amante, sempre acaba por idealizar a sua amada, transformando-a em um signo, e, por conseqüência, matando-a. Citando o final do conto “O Retrato Oval”: “ – É a vida, é a própria Vida que eu aprisionei na tela! E quando se voltou para contemplar sua esposa... Estava morta!” No conto “Ligéia”, se observarmos com atenção, não é Ligéia que ressuscita e sim os seus olhos, pois era a única coisa que o narrador dizia no início não conseguir definir. O resto era pura idealização, de um amante com assumida doença de memória, que só se lembrava de sua amada descrevendo-a como um mosaico de citações, ou seja, uma imagem construída por ele. Essa idealização apresenta-se como fuga, pois ao invés de relacionar-se diretamente com a mulher, e, conseqüentemente, com o lado perene da vida, o narrador prefere construir para ele um signo dela (evitaremos aqui os sempre presentes comentários autobiográficos sobre Poe).
Julio Cortázar assim define os elementos do poema O Corvo: “a melancolia, a noturnidade, a necrofilia, o angelismo e a paixão desapaixonada, isto é, a paixão a salvo de efetivação, a paixão-recordação daquele que chora invariavelmente por determinada morta, por alguém que já não pode ameaçá-lo deliciosamente com a presença temporal. E assim [Poe] pensará ter reduzido livremente que a ‘morte de uma formosa mulher’ é o mais poético dos temas [na Filosofia da Composição], quando nada de livre há nessa imposição profunda da sua natureza, e o ‘princípio’ lhe parecerá tão racional como os princípios meramente técnicos do verso.”
Em toda a obra de Edgar Allan Poe, seja em poesia, seja em prosa, a mulher amada, enquanto “viva” no processo de idealização, tem os cabelos negros e encaracolados, e, quando morta, tem os cabelos loiros e lisos – mas todas elas apresentam uma testa avantajada (talvez originada pela crença de Poe na frenologia).
Duplo/Morte/Espelhamento
O Duplo é presente em toda obra de Poe, justamente na época da invenção da máquina fotográfica, que causou enorme impacto na época:
O registro do objeto nunca é o próprio objeto, e sim a sua representação. Um instante congelado e eternizado em uma fotografia, apenas demonstra o seu inverso: a morte e a evanescência de cada instante vivido. Qualquer signo, em relação com o objeto, é um duplo. A única foto que se tem de Poe foi tirada um dia após a sua tentativa de suicídio.
O duplo aparece de várias formas na obra de Poe e manifesta-se tanto aos estados psicológicos, quanto à linguagem e à estrutura, formando verdadeiras Gestalts compactas. Quebra-cabeças semióticos. Como disse Decio Pignatari, após uma brilhante análise heurística do conto “Berenice”: “o conto de terror era afinal um puzzle”, e, segundo ele, o conto “O Retrato Oval” é uma “vinheta da alienação que o signo – a consciência do signo – produz em relação à vida”. O duplo chega até as formas mais radicais, como no conto William Wilson.
Toda questão da morte, na obra poeana, ocorre tanto no texto quanto no sub-texto. A simples presença constante do duplo e dos espelhamentos já a torna evidente. Esta relação torna-se óbvia no conto “William Wilson”, onde, mais do que qualquer outro, a questão do duplo aflora na própria superfície do texto.
Tanto a estrutura, como os procedimentos de linguagem, são decisivos para obter, nas palavras do próprio E. A. Poe, as “correntes subjacentes de significado”. Utilizando-se esses procedimentos, o escritor apresenta como constante, em toda a sua obra, uma obsessão pelos processos de inversão ou reversão do signo sobre si mesmo. Em 1925, W. Carlos Williams já percebia no escritor “o hábito, emprestado talvez da álgebra, de equilibrar suas frases no meio, ou de invertê-las na última cláusula, um sentido de jogo, como se se tratasse de objetos...”. Essa mesma fascinação de Poe, foi demonstrada por Roman Jakobson no seu estudo do poema O Corvo: no refrão Never more/ Never more, tem-se o “never”: imagem especular de “raven” (corvo). O mesmo jogo de inversão entre “raven” e “never” pode também ser encontrado no fragmento final do conto “Ligéia”.
Decio Pignatari já disse que o escritor “compõe ao revés, no componedor, palavras e frases, assim Poe endereça a linguagem à sua função poética por processos anagramáticos e hipogramáticos...”.
Em toda obra de Poe, o espelhamento é sempre uma constante.
No Raven (Never), por exemplo, a ave surge como uma projeção e exteriorização do personagem (espelhamento – duplo), para conseguir colocar para fora, através do desabafo, os seus questionamentos. Como diz Poe, na Filosofia da Composição, ele o faz pela simples “autotortura”, e, como também é dito neste ensaio, pergunta motivado pela segurança de ter o controle da situação (que ele tanto busca, por temer as suas dúvidas e incertezas), pois sabe que terá apenas uma única resposta.
O poema, como já é de se esperar, apresenta uma estrutura dividida ao meio, sendo uma metade uma inversão da outra. Na primeira, que tem como característica mais evidente o refrão “nada mais”, o personagem passa por um processo de auto-ilusão, imaginando coisas que quer que aconteçam, e banalizando os seus anseios e a sua decepção pelas ilusões que não se concretizam, com frases do tipo: “É apenas isso e nada mais”. Atitude que apenas torna patente a sua insegurança.
Na segunda parte ocorre o inverso: a, crescente e contínua, desilusão do personagem é refletida na imagem do Corvo (símbolo do mau agouro), pois, como dizem Jakobson e Pignatari, a ave é aquilo que diz (a desilusão) e diz a si mesmo (como a ave, no poema, fala com o personagem, e, como foi dito, ela fala a si mesmo, ela não é nada mais nada menos que a projeção do personagem).
É bastante comum o espelhamento geral de toda a estrutura de quase tudo de Poe, como n’O Barril de Amnontillado, onde – na metade do conto – aprece o “intervalo entre dois colossais pilares de teto das catacumbas”, que é o elemento mais importante do conto; e na Queda da Casa de Usher, que tem um poema bem no centro do conto, como se fosse a “fenda (...) descendo em ziguezague” pelo meio da casa (com “janelas vazias, semelhando olhos”) no ponto onde ela é rompida no final do conto.
“O leitor deve ter em mente que a base de toda a arte da solução, no que respeita esses assuntos, deve ser encontrada nos princípios gerais da própria linguagem”. (Poe)
“No caso presente – assim como em todos os casos de escrita cifrada – a primeira questão diz respeito à linguagem”. (O Escaravelho de Ouro, Poe)
“Há em nós uma presença obscura de Poe, uma latência de Poe. Todos nós, em algum lugar de nossa pessoa, somos ele, e ele foi um dos grandes porta-vozes do homem, aquele que anuncia o seu tempo noite adentro.”
Cortázar
Não Palavra
No conto “O Poder das Palavras”, ele afirma que a emissão das palavras modifica toda a estrutura do cosmos, alterando o curso das estrelas, criando e tirando vida. Como resposta ao uso banalizado que julgava ser feito das palavras na sua época, Edgar Poe explorou também a não-palavra, acreditando também que somente assim determinados sentimentos e impressões poderiam ser expressos.
Fixação de Poe pelos pêndulos
Uma característica presente em toda a obra de Edgar Poe é a fixação por movimentos pendulares, presentes tanto nos textos quanto nas próprias estruturas. Podemos observar tanto em exemplos óbvios, como “O Poço e o Pêndulo” entre outros, como na estrutura de poemas, como “The Bells”, ou na própria repetição nothing more/ nevermore, do poema O Corvo. Não raro os movimentos pendulares são associados aos ciclos naturais e cósmicos; e principalmente à morte como, por exemplo, no “Colóquio Entre Monos e Una” onde lemos a seguinte descrição de desfalecimento: “E então, do aniquilamento e do caos dos sentidos normais pareceu-se ter-se erguido dentro de mim um sexto sentido, inteiramente perfeito.(...) Deixa-me denominá-la uma pulsação mental pendular. Era a corporificação moral da idéia abstrata que o homem tem do Tempo. Em absoluta consonância com esse movimento – ou coisa equivalente – é que os ciclos dos próprios orbes celestiais foram ajustados.”
“O pêndulo oscilava para lá e para cá, com um tique-taque vagaroso, pesado, monótono. E quando o ponteiro dos minutos concluía o circuito do mostrador e a hora ia soar, emanava dos pulmões de bronze do relógio um som claro, elevado, agudo e excessivamente musical, mas tão enfático e característico que, de hora em hora, os músicos da orquestra viam se forçados a parar por instantes a execução da música para ouvir-lhe o som (...).”
A Máscara da Morte Rubra, Poe
Poe e Webern
Podemos encontrar diversas semelhanças estruturais na obra poeana e weberniana. Uma delas é a fixação por formas espelhadas. Webern radicalizou o dodecafonismo schoenberguiano, com utilização das formas espelho, caranguejo e retrógrado construindo espelhamentos em todos os sentidos, construindo diamantes musicais, o que levou Herbert Eimert denominá-lo “o arquiteto monádico da forma-espelho” – Poe foi denominado por muitos como o engenheiro dos espelhos. Assim, como o escritor, o compositor buscava montar estruturas simétricas e bipartidas, tanto nas macro como nas micro-estruturas.
É um consenso geral nomear Edgar Allan Poe como o criador dos contos curtos. Para o escritor, cada conto deveria ser lido em “uma sentada”, o que o levou a buscar sempre o máximo de concentração e brevidade. Assim também fez o compositor vienense, compondo obras que duram entre dois e três minutos, com movimentos de poucos segundos, verdadeiros haicais sonoros. Ambos usaram com muita importância tanto o silêncio, quanto o espelhamento geral da estrutura.