• tacet: 01/2010

    29.1.10

    tacet

    appears

    one chair

    where

    one chair

    disappears


    two bodies

    are only

    two bodies

    through the void

    that separates them


    there is one body only by the distance that separates him from all other


    a man is able to read a text in a book just because the white page can separate the black letter against the white page


    sound – to be a wave – is only moved by the silence

    all sounds are ½ sound ½ silence

    all sounds are infused with silence


    film is only possible through the technique of the film camera shutter

    – one that closes between frames of light – in a light box –, thus preventing the entry of light several times per second


    all the sculptures are built through the void

    with a massive block of marble, subtract the mass – adding empty – and creates a man



    (de Paulo Vidal de Castro)

    13.1.10

    Com Villa-Lobos

    “Mas não é disso que diria aqui e sim da desfortuna de constatar que a obra do compositor, tão vasta, quase maior que o Brasil inteiro, é mesquinhamente pouquíssimo conhecida, visitada. Vale o Villa mais que um estandarte? Estardalhaços! Quase só um nome, uma glória (quase feita apenas de desconhecimento de sua obra caudalosa). Glória Nacional. Que foi feito até hoje para que conhecêssemos Villa-Lobos?”
    Willy Corrêa de Oliveira
    ___________________________________________
    Ficha técnica

    Título: Com Villa-Lobos
    Autor: Willy Corrêa de Oliveira
    Pinturas: Enio Squeff
    Produção: Henrique P. Xavier
    Projeto Gráfico e Capa: Henrique P. Xavier
    Imagem da Capa e Cartão: Thais Vilanova & Paulo Vidal de Castro
    Fotos das Pinturas: Ronie Prado
    Tratamento de Imagens: Henrique P. Xavier
    Editoração Eletrônica: Henrique P. Xavier
    Revisão de Provas: Leonardo Ortiz Matos
    Editora: Edusp
    Formato: 16 X 21 cm
    Ano de publicação: 2009
    Preço: R$ 39,00
    ISBN: 8531411998
    ISBN-13: 9788531411991



    Em ensaio, Willy Corrêa revê posição sobre Villa-Lobos

    Leia a íntegra de "Com Villa-Lobos", de Willy Corrêa, grande nome da vanguarda que se opunha aos nacionalistas

     

    Em ensaio publicado no portal Estadao.com.br, o compositor Willy Corrêa de Oliveira analisa a obra de Villa-Lobos e o põe entre os maiores do século 20. É um marco histórico: compositor símbolo do nacionalismo, Villa-Lobos foi alvo de toda uma geração de músicos de vanguarda, entre os quais Willy, que agora rompe um silência de quase 20 anos para, em entrevista ao crítico João Marcos Coelho, comentar esta sua reavaliação. Leia abaixo a íntegra do ensaio.   Prefácio   Enquanto escrevia "Com Villa-Lobos", por pouco mais de duas semanas, quase nunca pisava sobre a Terra: à escrivaninha ensaiava acomodar as palavras, ou dormindo sonhava frases, situações; no mais parecia-me que jamais tocava o chão quando caminhava. Era uma tensão ligeira, constante, amável, como linha tendida, tida entre a mão firme que a retinha e a extremidade acima (laçada à taquara-mestra do papagaio cabriolante no ar exaltado de correntes conflitantes).   Mostrava o "Com Villa-Lobos" para alguns amigos e eles gostavam. Não sei (ao certo) se eles apreciavam a escritura ou se se deixavam contagiar pelo meu estado. O certo é que o Marcelo (Queiroz) e o Maurício (De Bonis) transmitiram minhas garavunhas para o computador, limpas e revisadas cuidadosamente, e que a Thais (Vilanova) e o Paulo (Fernando de Castro) confeccionaram a ilustração que eu previra, com dedicação, astúcia e perícia.   A outro - dentre meus amigos, entreguei-lhe o texto pronto para sua leitura, e aguardei. Pensava - ansioso - que logo me enviaria um cartão (estava ele em viagem) dizendo, efusivo, o quanto o deixara feliz o pequeno trabalho sobre o Villa. Mas: nada. Encontrei-o coisa de um mês depois, na volta da viagem: falou-me das coisas vistas, peripécias curiosas, e nenhuma linha sobre o texto (que ele mesmo insistira em levar na bagagem). Outra ocasião - de passagem - fez (sim) menção ao escrito: e desabafei, eu , dizendo que, com o tempo, me desinteressara, que perdera o encanto, e que nem mais gostaria de publicá-lo.   " - E por quê?". inquiriu sem muita convicção.   "- Porque... bem, qualquer hora dessas eu lhe direi" - falávamos ao telefone.     I   Quando eu era pequeno, Villa-Lobos já era grande. Muito conhecido ele, suas músicas - usualmente - intocadas. Sempre teve fama de músico maior, aclamado no mundo inteiro. Glória máxima do Brasil. Sua figura - no panteão da História Pátria - o charuto pontificando dos lábios, o olhar de quem vira tudo (e sabe coisas), a cabeleira curta, basta, esvoaçante (como assentava a um gênio da era moderna) e não à antiga, distante, inalcançável como a de Carlos Gomes. Tinha de tudo para ser seguido, e eu o segui. Admirava-o como a um gigante, imenso, mas que havia de verdade, até humano.   Segui-lo quer dizer tê-lo como modelo; vibrar, e logo recortar e colecionar suas fotos em jornais, como aquela em que executa um massé (com arte), ou a outra em que aparecia com sua esposa, e cuja legenda dizia: "sua musa, Mindinha". Era de sonho. Acho que ainda encontro algumas destas fotos de papel de jornal amarronzado e quebradiço que se esqueceram em meio a páginas amareladas de antigos álbuns de estudos, de livros velhos depostos no fundo das estantes. Não faz muito, folheando um volume das "Mazurcas" de Chopin, na edição de Attilio Brugnolli, imagine-se, encontrei na página seguinte da "Mazurca op. 59 nº 1", face a face, uma foto de Villa-Lobos recortada de jornal com a célebre estampa de fundo vermelho da Marylin nua.     II   Rememorando aqueles inícios dos anos 50, anos marcados pela presença insopitável de Villa-Lobos em minha sorte, anoto hoje que não havia conhecido então (praticamente) nada do Mestre. Nada. Que me recorde, lembro de haver comprado (com o coração aos saltos, quase escapando-me da boca) a partitura da "Lenda do Caboclo", e que d. Abigail, minha professora de piano, o cenho franzido, pediu-me para guardá-la para muito mais tarde, e que me concentrasse nos exercícios que ela recomendara. Pena. Aquela partitura imponente, da Casa Arthur Napoleão, que me fizera feliz ao sair da loja de música, acrescido de ares de importância, sentindo-me gente grande ao levá-la comigo pelas ruas: a caminho de casa, ainda a vejo se fechar os olhos. Mas de olhos abertos enxergo é que Villa era mais um homem célebre, compositor importante de que suas músicas cultivadas. Quase não se ouvia Villa-Lobos; só falar dele é que se ouvia muito. O que se escutava de "música mais fina" na Rádio Jornal do Comércio - PRL6 ("- Pernambuco falando para o mundo!", re-dizia incessantemente o locutor da Rádio.1) era o "Batuque" de Lorenzo Fernandes, ou então quaisquer das três sonatas de Beethoven, coisas de Chopin (sempre aquelas), Lecuona, Ketelby, o intermezzo da "Lenda do Beijo", uma ou duas das "Rapsódias Húngaras", a mesmíssima do Sarasate, volta e meia voltava. Ah!, sim, e o "Moto Perpétuo" de Paganini, todos os dias, pois que era abertura de programa de rádio muito festejado.   Obrigo-me a mencionar uma música que está indelevelmente selada na memória daqueles tempos: feitiço sempiterno. Para sempre. Era uma pequena valsa que Carmenzinha, ou Marlene, tocaram infinitamente. Eram duas vizinhas de uma casa em que morei algo antes de 1950. Da rua, nos brinquedos com os camaradas, podia-se escutar a pequena valsa melancólica, da noite oculta infinda, velada, aperreada. Só coisa de uns dez anos, contando da pequena valsa para uns amigos músicos, cantarolei-a para eles. "Do Villa", disseram efusivos, radiantes pela revelação: "É como começa o ‘Brinquedo de Roda nº 2, Moda da Carranquinha’. "   E apurar como aquela pequenina valsa se amoldou por todo o meu espírito, circulando em mim como sangue (sem que a gente se importe), natural, como me saber brasileiro e pensar em português do Brasil, e receber aquela tristeza como chamado. Concento recifense: é.   E quando a escrita musical atinge essa cristalização de poesia natural, simples: à perfeição, só um gênio para tê-la fixada.     III     Escreveria agora sobre o pouco que consegui conhecer de Villa-Lobos, posto que não era música muito disponível àquela época, e de como me apaixonei pelas "Cirandas" (que cheguei até a dedilhar, para senti-las melhor), e sobre as impressões (nada seresteiras, muito pelo contrário, seríssimas), portentosas, das execuções de Arnaldo Estrela de peças de Villa-Lobos que tive o destino de ouvir, então. Em mui raras ocasiões, infelizmente. Mas não é disso que diria aqui e sim da desfortuna de constatar que a obra do compositor, tão vasta, quase maior que o Brasil inteiro, é mesquinhamente pouquíssimo conhecida, visitada. Vale o Villa mais que um estandarte? Estardalhaços! Quase só um nome, uma glória (quase feita apenas de desconhecimento de sua obra caudalosa). Glória Nacional. Que foi feito até hoje para que conhecêssemos Villa-Lobos? Para que o estimássemos porque o conhecimento e vivência de sua obra nos impelisse a ser grandes, também? Em que instância da vida brasileira Villa-Lobos foi mais que menções (honrosas), nome de rua, até de shopping, bla-bla-bla, sem música, só bla. Alguns poucos trabalhos apresentados, repetidamente quase sempre os mesmos, sem prejuízos nos programas de recitais de alguns poucos nomes da música de passado mais longínquo, igualmente repetidos ad nauseam. Que se conhece - atuante - de Villa-Lobos? Conhecimento implica freqüentação. De que é feito nosso amor por Villa-Lobos?   Eu, desde aqui do cimo deste escrito ainda o conheço menos do que (talvez) você, mon frère, mon semblable.     IV   Não era possível o estar alheio às discussões. Nos fins dos anos 50, a pendenga entre nacionalistas X vanguardistas era acirrada. Das colunas de jornais às mesas do Amarelinho, do saguão das escolas de música às escadarias do Municipal, em toda parte, no bonde, na praia; em Copacabana, lembro-me de ter participado, com alguns amigos, de quentíssimo bate-boca, mais acalorados os ânimos de que os 40° do Rio, em janeiro.   Os nacionalistas eram contra a vanguarda porque defendiam a identidade nacional, as cores de nossa bandeira, o repúdio às invasões imperialistas, o petróleo que era nosso, e que tínhamos Villa-Lobos e um punhado de brava gente, sem temor servil, mostrando aos gringos e ao mundo que tínhamos música superior, não só bananas, yes! Os vanguardistas apontavam os nacionalistas como reacionários, desdenhavam de seus sambas extemporâneos, revestidos de velhos cacoetes de orquestração alóctone (e do séc. 19), e alheios ao povo (que freqüentava outras rodas de samba).   Em lugar do servilismo dessas mentes tacanhas de colonizados típicos, antepunham uma música de invenção, "exata colocação do realismo: real = homem global". "Compromisso total com o mundo contemporâneo". Os gringos que fossem enfrentados com armas atuais, tecnologicamente perfeitas, sem exotismos de mundos subdesenvolvidos. "Sem forma revolucionária não há arte revolucionária" (Maiakóvski). Para melhor esclarecimento, recomendamos ao(a) caro (a) leitor (a) a ingestão (antes de cada das principais refeições), por três/quatro semanas, de hepatosan, aliado a um diazepínico 2 vezes ao dia. Ao cabo do tratamento preventivo, proceda à leitura (seguida) da "Carta Aberta" e do "Manifesto Música Nova". E, se necessário, pode associar à medicação aconselhada um coadjuvante digestivo de sua predileção.     V   "No interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência". (W. B.)   Aderi, por fim, à vanguarda. Após meses (anos) do embate, convenceram-me os argumentos antagônicos ao nacionalismo musical. Em lugar de servitude ao velho modelo da melodia acompanhada, desacompanhada da vigência de seus postulados teóricos, decrépita (de mais, bem mais, de cem anos), a Segunda Escola de Viena vislumbrava a ânsia pelo objeto sonoro novo, estruturalmente isomórfico com o todo, na mais plena simultaneidade de acontecimentos multi-significativos e justificáveis por suas trocas de informações (como em um organismo vivo).   Os jogos estavam feitos:     De um lado a música nacionalista exibia sua indigência intelectual através de contrafacções repetitivas e mal-arremedadas de padrões da música dos fins do séc. 19, substituindo a força de sua expressão dialética original, já abolida historicamente desde Liszt, Debussy, por melodias e ritmos de origem folclórica. Como misturas de azeite e água. Sinfonias folcloristas, chamava Schoenberg a esses andrajos musicais.   A vanguarda, por seu turno, consciente do desenvolvimento (irreversível) da História: pensava a "nova música" depois de Liszt, Debussy, Scriabine, e mais precisamente a partir de Webern, que levara à última conseqüência as idéias de Schoenberg para a sua escola: em vez da utilização das alturas apenas em sua redução (tonal/modal), em sua só contingência melódica, circunscrita à pequena banda de freqüências, pensar no contínuo sonoro audível como espaço para as alturas; e em possíveis repartições não cromáticas. E é óbvio que desde os aglomerados verticais da "Sagração da Primavera", outras noções que as de acordes (originários da tonalidade) poderiam presidir a concepção das ordenações das sobreposições de freqüências em puro ganho e invenção. E que após as experimentações harmônicas de Liszt, Debussy, Scriabine, Ives, se deveria meditar em novos modos de conduzir seu fluxo horizontal.   E que as durações, pulsos, andamentos, deveriam se libertar do jugo aberrante, onipresente, exangue da atração tonal. Como sucede, de resto, com as músicas precocemente caquéticas do séc. 20, obedientes à tradição de resquícios de tonalidade (carentes de sentido), dentre as quais sobressai em inanição o nacionalismo. E que os timbres não deveriam estar adscritos aos modos de uso sistematizados nos râncidos tratados de orquestração que primavam pelos modelos do séc. 19, com ênfase na melodia acompanhada, nas harmonias distribuídas pelos naipes de cordas a cinco, com os baixos à oitava dos celli. Basta! Já escutamos Debussy, o gamelang, vários ensaios mui portentosos de música concreta. "Ouvimos como nunca músico algum escutou no passado" (Stockhausen). Desde os finais dos anos cinqüenta, em Köln, já sintetizávamos os timbres que sonhássemos.   E que as intensidades não se deixem mais rebocar por sentimentalismos graxos. Cuidemos de ser mais apurados na criação de inter-relações das intensidades como fundamentação estrutural da obra por inteira. A intensidade - em si - pode exprimir tanto quanto uma melodia de Bellini, quanto um encadeamento harmônico de Schubert. Já temos o solfejo necessário para avaliar um som do limiar da dor ao mais sutil pppp.   Somos capazes de apreender um som em sua inteireza à duração de pouco mais de que cinqüentamilissegundos.     VI   E após o turbilhão de latejos de consciência que me assolou às vésperas da década de sessenta, olho para tudo em volta, assustadiço, extenuado, febril, e diviso ao longe um caboclo lendário, o sotaque afrancesado: os rr enrolados a entoar uma brejeirice, ou era um índio de casaca, batucando um xangô rezingado em português carioca da rive gauche? Índio de casaca, que é isso? Índio que vira casaca não é mais índio. Ponto.   No domínio das alturas, colho aqui em baixo na obra de Villa-Lobos infinidades de rebarbativas melodias acompanhadas, como se os instrumentos só se prestassem às repetições de antigas canções. Quase sempre acomodadas - as canções, pobres - a harmonizações flutuantes em detrimento delas mesmas. Ai de nós! Dou um ai, não porque não lhe queira bem mas por exigência das constatações. Constato, penosamente, que é difícil escutar em Villa-Lobos uma melodia que se justifique, que se origine para além da extensão da voz e de uma prática havida em tempo remoto.   Por hábito, ou vício, de só recolhê-las da boca do povo? E até mesmo de, apenas, só conseguir alinhavá-las (quando no seu próprio atelier) segundo modelos do acervo folclorista? Ora, ora, o povo quando canta e faz suas canções: sempre sabe quando cantá-las... e porque as criou.   É preciso saber distinguir as qualidades de uma canção folclórica, dos requisitos da melodia como proposta composicional: sua evolução no campo de tessitura, a organização de suas freqüências, seu dado harmônico virtual, relações de durações/tempo, de intensidades, a realidade de seu espectro, as informações do desígnio de suas contradições com os demais elementos do trabalho em questão.   Em outros momentos da obra do compositor, o que se escuta do jogo das freqüências: são enxurradas de exibições virtuosísticas à maneira (desgastada, previsível) de retardatários retóricos do séc. 19. Com muitas notas, ou com poucas notas, o criador musical deve (sempre) saber por que, como aconselhou Webern, com sabedoria.   E quanto às durações, Villa-Lobos, permitam-me dar outro ai!, ou ele se perde em "chatices intermináveis", ou re-expele mais uma vez os mesmíssimos padrões rítmicos (ditos "brasileiros", seguidamente, fora de contexto), e as indefectíveis síncopas. Mas, afora os ritmos que ele recolheu da música popular, quanto às durações (como fato estrutural), não aflora uma digressão - por mínima - que não mimetize mais uma vez a retórica tonal. Não se pode dizer que não se ouviu estrelas: Debussy, Ives, Schoenberg, Webern. E quanto aos ritmos, temos a idade média, maximamente Machault, sublinhando sutilezas, argúcias; e mais recentes os exemplos de Stravinski, Bartok, Messiaen.   Se pensarmos em timbre, verificamos alguma contribuição do autor de 12 sinfonias, dada a presença de instrumentos de origem popular brasileira, embora não seja o caso da finura e perspicácia com que Mahler e Schoenberg - por exemplo - empregaram o bandolim e a guitarra. Quanto à orquestração, é muito empastada, e é voz corrente que ele escrevia enquanto ouvia chinfrins novelas de rádio. Ah! Esse índio de casaca!   E que dizer da forma que adquirem os amontoados de partes tão distintas entre si, inaglutináveis (ao menos no estado em que se apresentam com a assinatura de Villa-Lobos estampada). Precárias morfologias. Até em pecinhas curtas, não ajunta ele um A a um B que não se manifestem como entidades opostas, sem mais. Uma cantiga qualquer é anexada (a fórceps) a outra sem porquê fecundo. Escapa ao autor do "Guia Prático" a prática de objetividade estrutural; a busca de relações estreitas, causais, entre as partes, a organicidade que qualquer obra de arte deve compreender. Em obras de maior duração (que nem sempre deve ser confundida com o fôlego) acentua-se mais e mais a sensação da masmorrice de suplício interminável. Muitas de suas obras apresentam formas desengonçadas, sobretudo compridezas irritantes e canhestrices pueris. É sabido - todavia - que ele desconhecia a ciência da composição.   Mas há coisas ligeiras, esquisitas, extravagantes, exóticas, sem dúvida exornadas por um talento inegável que teve o Villa, mas não menos por uma ignorância ímpar tão grande quanto o seu gênio que deixou a marca em pequenas obras-primas, sem dúvida. Exagera-se, muitas vezes: exagera-se. Há mais talentos em nosso país. O Brasil é um país descomunal. Temos ouvido Nazareth, Nepomuceno, Fernandes.   Vi um estranho homem de casaca, na calçada do outro lado da Avenida (o céu e o mar ilimitados, como fundo), contornei-o cuidadosamente - sem que ele percebesse - para ver-lhe o rosto (para me certificar), e lá estava ao vento que soprava rijo, sorridente, mordendo o charuto, a cabeleira esvoaçando, não era índio não, era ele mirando o mar. E uma cortina de areia corria leve, mais adiante.     VII   Havíamos combinado uma ida à loja de CDs. No trajeto contei ao Caratinga (Marcus Siqueira) que viera me buscar de carona, o quanto me fascinara a escuta das "Cirandas" de Villa-Lobos, esplendidamente realizadas por Sonia Rubinsky. Impacientava-me por logo chegar à loja, encontrar o disco. Um ou dois dias antes - dizia-lhe eu - (decerto, na ocasião, eu soube o dia certo) quando me dirigia para a USP, o rádio do carro no programa do Tinetti, como de costume, e uma após outra as cirandas, como cascas de cebola iam me envolvendo em camadas de aura, acrisolando-me, e a exaltação a uma demasia (que, extasiado, acostei o carro, desliguei o motor, e deixei que minha alma desse voltas). Caratinga ouvia-me e mergulhava no silêncio, e ensopava-se de dúvidas: ante meu exalçamento, por mim, aquele que sempre desdenhara Villa-Lobos. Só após a última das Cirandas é que me despachei para a USP: cheguei atrasadíssimo na sala de aula.   Desculpei-me como pude, e aquela aula rodopiou como as "Cirandas", e a magnificência de Villa-Lobos, e a oferenda daquela revelação pelas mãos de Sonia Rubinsky. E os alunos perplexos, pois, já lecionava há quase 30 anos, e nunca acolitara o Villa antes desse dia, era a verdade. Em especial em sala de aula: pela obrigação de um bom exemplo. Sempre tratei Villa-Lobos com severidade, cruelmente, pode-se dizer. Toda ocasião em que um coral (de louvores) patriótico cantava maravilhas do autor do "Descobrimento do Brasil", glorificando-o como o músico maior das Américas, eu - por meu turno - sempre exigi que as loas correspondessem à verdade, e o fato é que desde a base das argumentações dos Novos Compositores Seriais, duvidei. Uma ou outra coisa do Villa chegava-me, uma ou outra, mas a responsabilidade da consciência da História me impedia de dizer amém a mais esta glória nacional, de cujo cimo esplendia Rui Barbosa, a Águia de Haia, Marechais diversos de terra mar e ar, e quase uma vintena do Forte, e vocês sabem quantos mais. Assim foi que desde início dos anos sessenta tive que matar Villa-Lobos. Parricídio ou Regicídio. Para que a verdade que se fizera em mim: triunfasse. Pela sua morte, ou sacrifício, consegui sobreviver. Os alunos, aquela tarde, boquiabertos - os queixos amparados pelas mãos - não compreendiam o que se passava (assim repentinamente) e como eu deixara para trás o tema previsto, lógico, para falar de um Villa-Lobos vivo. Vivo.   Já frente à seção correspondente a Villa-Lobos na loja de CDs, eu separava alguns discos, açorado como uma criança na escolha de brinquedos diante dos mostruários assanhantes. E nisso apareceu o Maurício (De Bonis) e ele olhava incrédulo, ora para a fileira de CDs, ora para mim, alternadamente: e fulminou-me com os olhos a pergunta não dita. Respondi-lhe - sereno e com qualquer malícia - Villa-Lobos! E passei-lhe o disco com as "Cirandas", da Sonia Rubinsky. Você precisa ouvi-lo! E Maurício não diz palavra, e incontinenti torna os olhos do disco e encara o Caratinga com o mirar de quem pede socorro.   Alunos, ex-alunos, todos sabiam que eu havia assassinado Villa-Lobos. Nunca escondi de ninguém o fato. Não que isso tivesse importância, em si, mas muitos, muitos concordavam comigo que eu tivera razões, sim, para matá-lo.   Regicídio. O Rei está morto, Viva o Rei!     VIII   E indo em meu caminho, foi factível que se avizinhasse a Cidade Universitária: e subitamente me cercou ali uma música vinda do rádio do carro "- As CIRANDAS de Villa-Lobos, por Sonia Rubinsky", anunciava Gilberto Tinetti.   Estatelado sob as cirandas:   Que adianta toda a ciência, a sabedoria de práticas seculares, se, diante de uma verdade tão inequívoca, irrevocável, como as CIRANDAS, o nó cego das contradições internas dessas peças não pode ser desatado: senão em estado de pânico? Valendo-nos do conhecimento e da técnica: que encontraremos nelas além de postulados formais equívocos? Umas são inconseqüentemente monotemáticas, outras há sem que os diversos temas troquem informações entre si. E qualquer cantiga em lugar de qualquer outra, esta sucedendo àquela (sem razão tangível) até que calhe o final imposto pelo impostor? Sim, porque trabalhos despendidos na elaboração de um "B" que ao mesmo tempo fosse "A" e não "A", isto é: que propusesse contrastes (negação) de "A", e ao mesmo tempo afirmasse "A" (por seus atributos derivados diretamente de "A"), tais operações não são oferecidas na ronda das Cirandas.   E no entanto eu quedava perplexo, enfeitiçado, meus ouvidos como peneira grossa para joeirar grãos escolhidos e o que cirandava eram pedras. Tão preciosas que me atordoavam o espírito. Atônito, só o rádio do carro em movimento. Antes que a série chegasse ao fim, me dava conta, estuporado, do sentido descomunal, copioso, fabulosamente engenhoso dessas obras tão singulares e necessárias quanto os "Prelúdios" de Chopin. E me foi possível receber o significado delas como quem se abre para uma epifania. As teorias da música preconizam modos muito testados, mas antigos, de escrever música, e Villa-Lobos não experimentou necessidades de aproximações desses conhecimentos para a feitura de sua música nova. Não é necessário, creio, escrever aqui que Villa-Lobos é um milagre.   As "Cirandas" são collages e não "ABAs", ou outras quaisquer tipologias morfológicas arroladas com letras do alfabeto latino indexadas em Compêndios de Formas Musicais. Pra outra sorte de escrita, outros signos. E collages: mais pela distinção entre fundo e a figura colada, como o "Le Quotidien" de Braque (no Musée d'Art Moderne, Paris); e, de Picasso, o "Violon et Feuille de Musique" (Musée Picasso, Paris). E collages, sublinho, não tanto no espírito do cubismo; mais relacionável, se possível, com Kurt Schwitters: As cantigas de roda como objets trouvés. Não quero que pareça que estou a emparelhar grandezas, porque o Villa é incomensurável. E as cantigas, como os tickets, etiquetas, velhas gravuras, recortes, retalhos de pano de Schwitters, têm suas próprias estórias; porém não são as estórias das cantigas que o autor das "Cirandas" se põe a narrar. Ou ele estaria, apenas, harmonizando cantos populares: cantando-os a plenos pulmões, por cantar. Mas é evidente que cada cantiga carrega consigo suas vivências e que vivificam a obra do Villa, embora o que ele está a dizer é mais centrado nas collages: tensões estabelecidas, quase tácteis, plásticas, através de novas relações adquiridas pelas justaposições, e sobreposições dos objets trouvés e dos fundos sobre os quais são colados. Nas "Cirandas", em especial, os fundos são geralmente compostos por danças pianísticas para o saracotear dos dedos nas teclas, e não danças de baile, para o corpo. Danças inventadas a partir de combinações de certos ritmos (próprios da música popular brasileira), e variantes (engenhosas) imaginadas com o fito de por o piano a bailar. Já as figuras, as cantigas de roda: em sua origem velhos folguedos infantis, são redimensionadas pelo compositor por mérito das colisões, dos embates entre figura e fundo, trombadas entre figuras e figuras. Choques e entrechoques é que narram as velhas cantigas de novo: cantam as "Cirandas". Collages como forma e conteúdo (a um só tempo).   Também - devido à complexidade e variedade das "Cirandas" - não se deve (mecanicamente) separar em compartimentos estanques, a todo custo, o fundo da figura. A "Ciranda nº 1", por exemplo, quando da entrada da cantiga "Teresinha de Jesus", ela se confunde com o fundo, pois que a cantiga - de certo modo - acerta os passos com a dança (o fundo); e o fundo - por seu turno - embala-se pela cantiga, como sombra sua, mas sombra que modula a cantiga, impõe-se a ela, devolve-lhe o ensombro e ela deixa para trás serenidade, melancolia contida, e desfila aflita. Jamais poderia alguém classificar trabalho assim como harmonização de canto popular, obra folklorista ou de compositor de escola nacionalista...; o que conta esta "Teresinha de Jesus", é a collage. A "Ciranda nº 4" introduz, com rompantes, uma dança agoniada e, em questão de segundos, cola-se a uma allure tremblé (de que é constituída a trama de que é entretecido o fundo), fundindo-se, amoldando-se à cantiga "O Cravo Brigou com a Rosa": deslocando-se no campo de tessitura ao mesmo tempo que a ciranda, como sombreado espesso, tremiculoso, esfumado que percorre o mesmo traçado claro da linha fina, mas contagiando-a a ponto de fazê-la perder a jovialidade de sua origem nos folguedos infantis. Mas nem por tudo isso, deixa de se perfilar como figura e fundo.   Com a "Ciranda nº 6 Passa Passa Gavião", as demarcações entre fundo e figura são nítidos. O fundo é disposto como um moto perpétuo supinamente pianístico, tecla acima, tecla abaixo, e de inopino, com que acuidade é colada a melodia do brinquedo de roda: e instala-se o inaudito na permanência de um instante em brevidade de causar assombro a Schumann.   Dizer de figura e fundo, tais como concebidos por Villa-Lobos, é, forçosamente, focar a polifonia (essa quintessência da música enquanto linguagem) que nosso Cirandeiro Mor concretizou como ninguém, ou pelo menos como poucos: Mahler, Berio, Bach, Monteverdi, Ives, Machault. E não estamos, bem entendido, nos referindo à idéia de contraponto, senão a simultaneidades mais amplas, abrangentes: à polifonia de polifonias (onde até um contraponto intrincado de qualquer espécie pode ser equivalente a uma só das vozes concomitantes). Com essa óptica escutamos a 2ª parte da "Ciranda nº 4", quando do aparecimento do "Sapo Cururu" (em cânone simultâneo à toada que lhe serve de fundo). Que prodígio: "Sapo Cururu" e "O Cravo Brigou com a Rosa".   Mas não um sapo sombrio, nodoso, asqueroso, babando espuma viscosa numa gruta lodosa de pântano fétido, mas sapo simpático, de beira de rio de cristal, azul. A peça em seu todo não atinge dois minutos: de densidade de revelações: de fazer Webern corar.   E mais espantos. No "Pintor de Cannahy" há polifonias de tempos, de propostas harmônicas, de articulações, intensidades, e simultaneidades específicas de acalmia e agitação, tristura e apreensão; e a ciranda ainda a reverberar em contraponto a duas vozes, mas correspondendo a uma só dentre as vozes desta trama de contraposições.   Sutil polifonia moldada com barro das eras mobiliza a melodia estrangeira enunciada no registro médio-grave, concomitante a um material muito móbil (de certa espessura, granulada, a repercutir pelo campo de tessitura), de contrastes assinalados, e por mais um retoque de mistério: cola-se "Fui no Itororó". Da ciranda ao final é evidente que Villa-Lobos recebeu das mãos do Visconde de Sabugosa um punhado suficiente de pirlimpimpim. Verdades e melancolias possíveis (só) em cristalinas histórias de fadas, a gente pode escutá-las sempre ao alcance do anelo, na "Ciranda nº 3 (A Condessa)", e nem se pense ao escutar esse mimo: em choques, figuras, fundos, collages, basta encostar o ouvido no veludo da "Ciranda": vozes veladas, veludosas vozes, soluços ao luar, choros ao vento...   E quando ainda for praticável, tente essa outra página maior da História, na voz do Cirandeiro: "A Pobre Cega (Ciranda nº 5); ... e aguarde, e aguarde que seja suportável (como a um Atlante) aquele canto esquecido numa esquina da ultima thule ("Xô Xô Passarinho da Ciranda nº 7). E quanto à "Ciranda nº 11 Nesta Rua Nesta Rua", epifania lingüística estreme, nela, parece-me que o que figura como figura é que é fundo (até ao fundo), até ao fundo da alma se ela quedasse inalterável límpida.   Vocês, que por acaso estejam percorrendo estas linhas, não acham, decerto, que eu tinha razões sobradas para ficar imobilizado no carro, passado, escutando (em pânico) as "Cirandas"? E com a derradeira delas ouvi - distintamente - uma voz que dizia: "Willy, Willy, por que me persegues? Dura coisa é para ti recalcitrar contra o aguilhão."   E o que se sucedeu, eu já contei em capítulo anterior.     IX   Frente a ele, você é carne, ou é peixe. Eu não daria ouvidos a ninguém que viesse me dizer que você não provou que ele é um gênio avassalador. As duas palavras aglutinadas GÊNIOAVASSALADOR como uma só apontada para ele com dedo (tímido) como de quem mostra estrela estranha assombrosa no céu. Mesmo que me falassem de quem um dia o tenha assassinado no desvairo de um regicídio, ou parricídio, contorno como posso, e insisto na estória de gênio avassalador se antepondo à desapreciação, ou à apreciação, sempre, tanto faz. Impossível imaginar quem quer que seja, no mundo, que seja infenso à "Bachianas nº 4", pelo menos à "Aria" da "Bachianas nº 5", à "Canção do Amor" (da "Floresta do Amazonas"): mesmo que alguém o contraditasse - (sabendo dessas cousas) - teria deixado que escapasse (ao menos) a palavra GÊNIO em meio à enxurrada de vitupérios contra ele. Ah!   1 - A "Bachianas Brasileiras nº 4" revela engenho estrutural, fatura e polimento no manejo da forma (tradicional). Eis exemplo cortante para calar quem diga que Villa-Lobos não tinha a ciência das formas clássicas. No "Prelúdio", o mínimo de material, o máximo de informações. Um motivo (!), variado à outrance, em desenvolvimento permanente, projetando-se como uma espiral de alturas através de quase 10 minutos de música excepcional. De puríssima clareza clássica.   2 - Escutar Villa-Lobos como quem sonha viagem ao Limite do País Fértil, um lugar à janela a mirar a paisagem que passa arrebatamento brandura ímpeto transportes do espírito repasses de prados, eiras, montanhas, arvoredos, rios, as chuvas, curvas em costeios do mar, plantações, princípios de cidades, quintais, fins de cidades. Cochilar, e despertar para a janela sob outra luz. No ensejo: o fim da viagem, pois que a unidade da viagem são as passagens, acessos.   3 - Pedir da música de Villa-Lobos que seja desdobramento da forma ABA, que tenha desenvolvimentos, é querer viajar sem sair de onde se está; flanar nos arredores de seu quarto sem câmbios de paisagens, de ares.   4 - Na música do século XVIII a tonalidade (por ser direcional) sugeria percursos; e a tensificação das modulações de motivos, células, estreitava-se com a noção de desenvolvimento tonal fincado sobre a cadência, com a dialética das imantações a exigir proximidades no campo de tessitura e certa previsibilidade dos encadeamentos. "Ce n’est plus possible de revenir en arrière." (Robert B. Gille)   5 - Há uma estória sobre Debussy que vem a calhar aqui. Conta-se que o artista quando jovem, logo após a apresentação dos temas de uma sinfonia tedesca, em pleno concerto sinfônico, surpreendentemente, levanta-se de sua poltrona e faz sinal para o amigo que o acompanhava, convidando-o para tomar ar puro lá fora. O amigo impacienta-se algo, e Debussy segreda-lhe: "há tempo para fumar um cigarro, dar umas voltas, agora o compositor vai começar a desenvolver..."   6 - Na música de Villa-Lobos, é a movimentação das contradições, dos contrastes, que se afiguram como desenvolvimento. Choques abruptos e suavidades e arestas e lisuras e justaposições chocantes, berrantes, e carinhosas transformações de uma entidade em outra diversa, sempre surpreendentes, mas claras como paisagens passageiras. Viagens têm lógicas que não seduzem um sedentário convicto.   7 - E se durante uma viagem você dorme e sonha, o sonho, o dormitar, em especial o sonho: são idéias cristalizáveis em formas de concatenações musicais para o autor do "Rudepoema", do "Amazonas". Ele pensa a forma, imagino, como quem vê paisagens passando.   8 - Reescutei ontem à noite a "Bachianas nº 4". Ouço o "Choral" como reflexão sobre o "Prelúdio". A "Aria" é também outra sorte de sutilíssima variação do "Prelúdio"; na "Dansa", porém, a variação é mais virtual (como em algumas das "Goldberg", e certas páginas das "Diabelli"). Obra estupendamente coesa. E no entanto é sabido que ele lançou mão de trabalhos já existentes há mais de dez anos. A perícia genial do compositor de juntar coisas, de colar, de calhar.   9 - Quando nos pomos a repassar a obra de Villa-Lobos, várias são as que gostaríamos de ter ouvido sem que houvesse ninguém por perto. Na mais plena solitude. Para não nos avexarmos por ele. Para a conjura de sorrisos amarelos. Trabalhos de gostos duvidosos, espalhafatosamente hollywoodianos, outros a repetir Saint-Saëns, Ipolitov-Ivanov, e mais o que possa haver de pior em Rachmaninoff, em Copland. Acho que começou por aí a mania do avestruz de esconder a cara!   10 - Cornucópia. O catálogo de obras do Villa mais parece o de uma indústria de obras e eventos musicais de que relação de obras de um homem só. Mormente de compositor de música erudita do século XX. Talvez tenha sido assim que ele chegou ao domínio da técnica da escritura. Não teve que apontar lápis e mais lápis em carteiras escolares. Modo seu de chegar aonde chegou? "Vertical aventura, a queda são desequilíbrios de quem se debruça".   A cada um o que salvar da fogueira. Contanto que não se ponha fogo em nada.   11 - Se ele não tivesse escrito mais que as "Cirandas", ou só as "Cirandas" e mais o resto, estou certo de que escreveria esse trabalho - de novo - dada aquela revelação em meu caminho para Damasco, igualmente com espanto e reverência.   12 - Certas obras de Villa-Lobos, como o "Amazonas", "Gênesis", "Alvorada na Floresta Tropical", "Erosão", Chôros nº 10", concentram o predomínio da movimentação de figurações sonoras abstratas elaboradas com maestria de imaginação e execução: a organização das alturas em cabal desobediência da cadência tonal (resultando em informativas transcorrências de polarizações em contínuas deslocações), o emprego do campo de tessitura como dado relevante do discurso, e proliferações de aglomerados sonoros (pulsados ou estáticos) distantes da noção de acordes, pontilhismos surpreendentes, relatos de densidades, de volumes. Invenções polifônicas inusitadas. E em lugar de melodias abrangentes, recordáveis, motivos curtos fazem corpo com as abstrações.   13 - O arrojo de Villa-Lobos na confecção de imagens abstratas em movimento é de tal importe que se pode emparelhá-lo com Schoenberg (maduro), com o último Scriabine, com Debussy, Varèse, e até Webern (sendo o caso). Para gáudio de todos, Villa consta de um programa ideal, possível, focando a música do século XX no que houve de mais criativo, efetivo: em um mundo sem língua musical erudita falada, onde cada voz fosse um testemunho necessário do homem como ser criador, sobrevivendo em ambiente adverso, hostil, agressivo.   14 - Pouquíssimos compositores (no mundo contemporâneo) conseguiram aprisionar o inefável, fixar o indizível para sempre, como os perfeccionistas da melancolia: Satie, Mompou: em cristais de nostalgias puras, em desafio aberto à lógica da Arte da Composição, inoxidavelmente, sem tempos para restrições cronológicas. O autor das "Cirandas" encontrou acordo entre algumas notas e acordes coniventes com a singeleza e banzo da "Mazurca Choro" da "Suíte Popular Brasileira", ou em levidade com a "Valsinha" do "Brinquedo de Roda nº 2", ou em sínteses de extrema arte como nas "Cirandas": "A Condessa, Pobre Cega". Foi grande cultor de melancolias.   15 - de delicadezas, de grosserias, de cantos populares, de cantos impopulares, de fanfarras, de invenções supremas, de banalidades insuportáveis, imponderáveis, carioca e estrangeiro (da Terra do Nunca). Escrever sobre Villa-Lobos é fazer rol de exageros e o único atenuante está em que nunca se exagera o bastante que alcance a magnitude do enredo de sua complexidade. Contradições adoidadas, geniais.   16 - a tal estátua de uma grandeza e altura extraordinária, e a sua vista era espantosa. A cabeça desta estátua era de um ouro finíssimo, porém o peito e os braços eram de prata; já o ventre e as coxas eram de cobre: e as pernas eram de ferro, uma parte dos pés era de ferro, e a outra de barro. A manter-se em pé, eloquentemente uma, apesar da heterogeneidade insólita de sua constituição em espanto impermisto, cristalino. Ouço o Villa como quem se assombra com esta imagem: obra que se perfila firme, assentada sobre a terra, de uma conformidade de causar Temor e Tremor, e solidamente unificada, mana como sangue para as artérias do espírito, sim, a despeito da dessemelhança e fragmentação das partes sucessivas. Só em sonho são possíveis, e no entanto disponíveis para quem tenha os olhos abertos. Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça. Ou peçam aos olhos descerrados que abram os ouvidos.   17 - Villa-Lobos atinou para um dos mais graves problemas da música do século XX: a questão da forma, do encadeamento das idéias no discurso musical. Soube que as formas do passado não viriam em socorro da sintaxe das partes de uma exposição que não mais se justificavam pelo modo de organizar as alturas que geraram aquelas formas. "E ninguém deita remendo de pano novo em vestido velho: porque leva quanto alcança do vestido: e se faz maior a ruptura." Ele encontrou modo de coser as partes, com o cuidado de dar a cada a atenção devida; e que cada parte ajunte ao discurso força e causa de sua participação no conjunto; que se disponha claramente em sua ocorrência (por mais fortuita que possa ser) antes de se dissolver em outra parte, ou que - dramaticamente - seja silenciada pela parte seguinte. Eis a dramaturgia das colagens (collages), a lógica siléptica dos sonhos e o que se poderia ajuntar: como multiplicidade de paisagens no decurso de uma viagem: sua inteiraaventura sendo a remembrança de tudo que ocorreu um seu percurso.   Às partes: insinuar, alvitrar, aventar. "Rudepoema", "Amazonas", "Bachianas Brasileiras nº 7", e... e... e "Nem deitam vinho novo em odres velhos: de outra maneira arrebentam os odres, e se vai o vinho, e se perdem os odres: mas deitam vinho novo em odres novos: e assim ambas as coisas se conservam."     18 - Então será semelhante o prodígio da concatenação das partes, do equilíbrio do TODO, da beleza da movimentação das simultaneidades, ao trabalho gracioso do malabarista de casaca e cocar com suas inumeráveis peloticas enfeitando o ar.     X   De férias no Rio, com pouco mais de dez anos, um casal de tios levou-nos (a mim e à filha deles) para o almoço no Restaurante do Ginástico Português (na Graça Aranha). Estávamos instalados à mesa quando diviso que vêm chegando Villa-Lobos e uma senhora loura, elegante. Levantei-me com ímpeto e, célere, fui ao encontro deles.   Minimamente indaguei se ele era (verdadeiramente) Villa-Lobos. Sim, disse ele com simpatia e eu disse de mim que queria - também - ser músico, e que o admirava muito. Amicíssimos à primeira vista. Com o Maïtre já a cumprimentar o Villa, e ele anuncia-lhe que o garoto partilharia a mesa com eles. No desenlace do momento eu até esquecera que me encontrava ali em companhia de meus tios. Sentamo-nos: e foi a conversa mais animada que já tive com um gênio. Solto, alegre, e eles prazenteiros, complacentes, verdadeiros, animavam-me a falar. Recordo-me de, em alguma hora, haver olhado para trás: onde permaneciam meus tios e a prima, e de que eles me aquiesceram com sorrisos. (E aguardaram firmes, conformados, bom tempo até que eu, o Villa e a Mindinha concluíssemos aquele banquete - quase celestial para mim - mas que eu aceitava com singular naturalidade). Tanto inconfundível e repentino aquele encontro inopinável. Indene. Quando terminamos os doces, à despedida, lembro-me que Villa-Lobos me convidou para assistir a uma apresentação orfeônica que estava para acontecer naquela tarde em um estádio de football: ele iria conduzir centenas de escolares. Me desculpei - a contragosto - porque já estava marcado que eu iria andar de charretes puxadas por bodinhos no Jardim de Alláh, com minha prima, (e apontei para a mesa onde me aguardavam, pacientes); e mais: que eu não saberia andar sozinho pela cidade.   - "O que vocês tanto conversaram?", indagou minha tia. E não atino mais com que respondi...   Anos e anos se passaram e não me ocorre mais nada que Villa-Lobos tenha falado, a não ser o convite para o Estádio. Ficou que eles eram muito bondosos. Nenhuma palavra mais, nada que ele possa ter dito. Ah! Sei - hoje - que eles não tiveram filhos e adoravam crianças. E que sabiam, certamente, fazer criança tagarelar como um gramophone maluco.     XI   A - Pensar Villa-Lobos como compositor nacionalista é reduzi-lo. É pensar tacanho, reacionário: mesquinhamente fim de século XIX. Revela ignorância ou avaliação incorreta de sua obra. Autêntico compositor do século XX, Villa-Lobos foi homem de seu tempo, como Ives, Schoenberg, Stravinsky, Bartók, Webern. Músico que caiba acomodado na estreita classificação de nacionalismo musical - após os feitos da segunda escola de Viena, crendo e rezando por catecismo que substitui a dialética da História da Música por receituário de panacéia anódina, não é o caso de Villa-Lobos.   Não caberia à "Sinfonia nº 6" do autor das "Bachianas", da "Dança dos Mosquitos", do "Rudepoema", a pecha de sinfonia folclorista como descrita no ensaio de Arnold Schoenberg. Com o pecado nada original da ignorância etnológica, compositores nacionalistas desconsideram verdades harmônicas das amostras do folclore musical aprisionando-as com camisas-de-força mal alinhavadas com trapos velhos da música erudita européia, forçando-as a "desenvolvimentos" aplicados outrora no período tonal. Em falsas imitações. "Falsificaram a singeleza e substituíram o sentimento verdadeiro pelo sentimentalismo carente de arte: o que oferecem não é mais que o conceito que um burguês de colarinho duro possa ter sobre um trabalhador assalariado" (Schoenberg). Villa-Lobos soa contraposto a isso. Utilizou o folclore, sim, mas todo mundo sabe que "o folclore sou eu", disse ele. E se, a despeito da História, um ou outro retardatário feitor de "música nacionalista" ainda assim nos é simpático, vem muito em seu socorro certa pobreza de espírito, ingenuidade indisfarçável.   Tampouco é o caso de Villa-Lobos, convenhamos.   B - Ora, no Ocidente não havia senão uma mesma língua e um mesmo modo de falar. Até o século XVIII. Por então a nova ordem do mundo estimava que time is money. Todo o tempo (porque É dinheiro) deveria ser dedicado a ganhar dinheiro: ou para a sobrevivência (os assalariados em penosa subserviência, sem tempo para o espírito), ou para o lucro (em adoração ao bezerro de ouro, igualmente sem tempo para o espírito).   LUCRO: "Benefício livre de despesas que se obtém na exploração de uma atividade econômica".   LUCRO: do latim: lucru; logro: do latim: lucru.   LOGRO: "Engano propositado contra alguém; artifício ou manobra ardilosa para iludir".   LUCRO = logro. Se um lucra, outro fica logrado. O capitalismo é contrário, avesso, nocivo ao espírito e à arte; a arte ainda pode ser tolerável sempre que se deixe passar por mercadoria (e se esgote enquanto mercadoria). Praticamente inviável a arte como forma de conhecimento - com exigências substanciais para sua compreensão - como testemunho do homem como ser criador. Só como mercadoria (e de boa margem de lucros) a arte pode - eventualmente - ser posta em circulação.   Mas a música erudita, dada a sua condição de linguagem, e linguagem não simbólica, bem entendido, e de estranhas equivalências entre sintaxe e semântica - o que a coloca bem distanciada da linguagem verbal - necessita para seu aprendizado da perspicácia de uma consciência penetrante da história, e exige o entrelaçar de conhecimentos que, necessariamente, não são transformáveis em capital. Espécie de investimento sem retorno. E mercadoria, por mais cara que possa custar, como um vestido de Dior, ou uma obra de arte (mercadejável), não pode fazer exigências como a música erudita que necessita do acúmulo de vastos setores do conhecimento para a satisfação de sua peculiar condição de linguagem. E a ciência necessária ao aprendizado dessa língua requer além de prática e freqüentação, a disponibilidade de tempo devotado a largos anos de estudo, e dinheiro indispensável à manutenção do estudante e demais gastos com instrumentos, materiais. Do ponto de vista do contador, eis um investimento do mais alto risco. O capitalismo é corruptor. Ou você corre atrás do dinheiro, ou você corre riscos de ser corroído pela falta de dinheiro. No capitalismo, para que o corpo viva, o espírito deve perecer: a cada cidadão o vício de ser consumidor em tempo integral. Em lugar de solidário, um solitário. Porque o coração deste povo se fez pesado, e os seus ouvidos se fizeram tardos, e eles fecharam seus olhos. E não é à toa que se se procedesse a um censo das almas deste mundo, verificar-se-ia a extinção gradual, a cada dia, desta espécie - necessariamente - rara no mundo globalizado. Somos uma população de corpos esvaziados, condenados ao ar poluído (pelo capitalismo, óbvio), e a comer alimentos envenenados, acondicionados em irisadas embalagens aliciantes.   Os rios já estão mortos como nossos espíritos. Como pretender, em meio a essa barbárie, que a música fosse uma língua viva, corrente, (como os rios de outrora já foram também), à disposição dos ouvintes, dos compositores de nossa época? O capitalismo é avesso, nocivo, contrário ao espírito, à arte. Para ocupar o lugar da arte, sem prejuízo da adoração do bezerro de ouro, a inteligência capitalista já colocou à disposição sua TV (24 horas por dia), sua imprensa, suas "glamorosas" diversões, certames desportivos, 3 tenores, e até igrejas complacentes com a idéia do capital. No mercado tudo que é lucrativo é disponível, e "há lugar para todos": para Deus e para belzebu em altares confeccionados para tomadas-diretas de TV.   "Estranhem o que não for estranho. Tomem por inexplicável o habitual. Sintam-se perplexos ante o cotidiano. Tratem de achar um remédio para o abuso. Mas não se esqueçam de que o abuso é sempre a regra." (bertolt brecht)   C - Paulatinamente, durante o desenvolvimento das relações capitalistas, a arte, o espírito: vão sendo aniquilados pelas urgências do mundo dos negócios. E chega-se ao século XX sem língua musical erudita falada no capitalismo. Mas... "porque o homem sempre é homem", alguns - não obstante a estupidificação reinante, e as dificuldades crescentes, sentem necessidade irrevogável de arte, de música. "Minha obra musical é conseqüência da predestinação", disse Villa-Lobos.   Certo homem se encontra algures neste mundo e inevitavelmente sente o desejo de abolir a insolvência do trato com os outros, mas não mais encontrando língua falada ali, desespera-se. Não há, não há língua falada e ele está obrigado a transmitir um aviso inadiável, e busca, com desesperação, entre restos e vestígios da linguagem que um dia se falou: algumas sobras de palavras, detritos de expressões havidas, memórias avulsas de coisas ditas, e outras mais que ele presume que possam ter sido praticáveis (mas nem sabe mais - ao certo - como pronunciá-las) e repassa gestos, meneios, tiques, sob o encargo irrecusável do aviso que pode lhe custar a vida. Ou à força vestir o hábito dos loucos.   E pensar que, em pleno palco onde se encena esta tragédia, houve quem se dispusesse a escrever "música nacionalista", obedientemente.   D - "Nem a música popular nem qualquer outro material musical não se tornam válidos se tratados por incapazes". (Béla Bartók)     Béla Bartók é um Caso Histórico. Singularíssimo. Musicalmente era um apátrida, embora se fale dele como de um Nacionalista (com documentação exigida por lei). Fez uso de materiais folclóricos: porém o mapa do seu nacionalismo estende-se desde a Hungria até aos Cárpatos, através os mares breves, navega o Mediterrâneo e espalhase pelo ao norte da África, fraternalmente, sem laivos de superioridades nacionais de quaisquer espécies. Para Bela Bartok o folclore foi mais que tudo um imperativo ético: dever diante do estado das coisas, das urgências de um mundo em crise, do capitalismo reinante, modo de se criar uma coluna vertebral; depois, (em amparo da consciência estética) os trabalhos necessários para agenciar tais materiais musicais segundo a complexão dos requerimentos linguísticos da música erudita. Ele fez uso de músicas folclóricas como materiais musicais, sem que se evidencie parentesco com os modos de usar dos escolares das Escolas Nacionalistas. Berio também utilizou canções folclóricas, ora pois. Bartók é antes de tudo um forte. Como Villa-Lobos. E Berio. O autor do "Mandarim Maravilhoso", da "Night Music" (da "Out of Doors"), das "Melodias op. 16", foi um criador capaz de dotar a História da Música de movimentos lentos: dos mais inventivos e plenos de novas emoções. Etno-musicólogo, botânico (com contribuições para a Columbia University) e matemático esmerado, sua vocação científica sempre esteve de mãos dadas com sua predestinação musical. E sua consciência moral impelia-o a abraçar a causa de qualquer nação ameaçada pelo imperialismo (monstruosa aptidão capitalista) em qualquer latitude terrestre. Dentre as duas ou três coisas que se pode dizer dele, que se diga - pelo menos - que foi um poli-nacionalista polimorfo. Internacionalista exímio.   E - É comum aos compositores mais criativos do século XX certa promiscuidade em suas falas. Strawinsky foi neo nos mais diversos estilos, ao longo de sua carreira de libertino musical, de sua obra volúvel: do circo mambembe de lona esfarrapada, à Catedral de Veneza, sob ordens diretas do Papa. Schoenberg compôs música de cabaré, passou a limpo últimas páginas de Wagner, e recebeu uma nova táboa da Lei, abandonando-a para escrever a "Sinfonia de Câmera nº2". Ives produz hinos vulgares, inimagináveis colossos para bandas simultâneas em praças públicas, a "Unanswered Question", algumas canções triviais bem respondidas, e a "Concord Sonata" em desacordo com os ouvintes até hoje. E Krenek lavra: ora um experimento dodecafônico, ora rodopia uma valsa vienense (comme il faut), noutra peça é uma aura tonal fin de siècle que ele expõe. E arrolar como de um só e mesmo Krenek a "Albumblatt op. 228", as "Italian Ballads op. 77b", os "Fünf Lieder op. 82"? E que pensar de Ravel: a mais estapafúrdia Geografia Política de nacionalismos musicais que já se ouviu! E recordar as irreconciliáveis polaridades mahlerianas como coisa natural? E Skalkottas com suas danças gregas e complicadíssimas obras dodecafônicas lado a lado, ano a ano, no mesmo catálogo?; e no corpo de uma mesmíssima peça como a "Mayday Spell", a estranha (e denunciadora) convivência de técnica dos 12 sons, modalismos, livre atonalidade e citações literais de canções folclóricas... E como exibir como de um mesmo compositor com a formação de um Roberto Gerhard, esdrúxulas antinomias, como: "Cancionero de Pedrell", os "Três Impromptus", o "Concert for 8"? E Hanns Eisler enviando obras dodecafônicas para salas de concertos da burguesia, e canções de lutas para as manifestações operárias vermelhas: assinando trabalhos como as "Variações para Piano" (1941), a "Ich hab die nacht geträumet", e as chinesas "14 Maneiras de descrever a chuva"? E imaginar que "September Song", o "Concerto para Violino" e a "2ª Sinfonia", são todas do mesmo autor de vários sucessos da Broadway? Não deixo esta lista sem, pelo menos, o nome de Paul Dessau - compositor de preciosíssimas disparidades (constrangedoramente pouco conhecidas). E vejo (ao mesmo tempo) que seria inconsequente, enfadonho continuar com a lista: tantos os nomes e peças a inventariar, como no livro de juízo assentar, um por um todos os mais extraordinários criadores do século XX, porque fadados a habitar a Terra Devastada (Waste Land). O único - a rigor - mesmo sendo dos mais notáveis, que fica desobrigado de constar da lista é Webern; e em outra clave (também, e não menos): Béla Bartók. Sui generis, Webern, em nenhum momento vacilou na fé sobre as profecias schoenbergianas, mas há a contrabalançar a Síndrome de Stern que o fez sofrer, e ao mesmo tempo mostrar à Terra uma música absoluta que nunca se ouviria - não fora por ele - em nosso planeta.   Por favor, queridos leitores que venceram tanto fastio e chegaram até a esta frase que rabisco agora, não pensem mal de mim, peço. E me explico. Não pensem que eu concluiria a lista sem o nome de Heitor Villa-Lobos. Nunca! Pelo menos hoje digo nunca. A lista foi executada sem outro fito, senão o de conter o nome do autor das "Cirandas". Esta lista foi feita para ele em seu nome. Na tentativa de dizer que ele foi dos maiores entre os maiores que vieram à Terra. Em qualquer época da História da Música. Mas que, como homem do nosso tempo, ele também foi danado a padecer as mesmas penas que sofremos todos sob a ditadura do capital, e sobretudo como músico, e de não haver encontrado uma língua erudita viva, falada por toda a gente.   Como todos os grandes criadores, ele também foi obrigado a fazer de conta que existia uma língua viva através da qual ele se comunicaria. E assim foi que ele lançou mão de tudo que pudesse servir como fonemas, inflexões, entonações de uma língua possível, de se desincumbir de seu aviso: A música de origem folclórica, mesmo a música popular existente no Brasil do início do século passado serviu para um artista quando jovem, sem tradição; o dom da escuta dos sons da natureza dos trópicos exuberantes; a música das cadeiras das mulatas rebolando adoidadas; músicas que escutou em silhuetas de montanhas, arranha-céus; a música erudita francesa de passagem pelo Rio, Strawinsky também; volutas e arestas dos sotaques que ele aceitou como dádiva, Brasil afora; a amizade com Varèse (!); as músicas que passou a escutar pelos mundos em suas viagens; coisas, sons, imagens que só a ele foi dado ouvir: como quem ouve estrelas, em SONHOS, sob as pálpebras, ruídos (inauditos) vários e gotas cristalinas de cantares de contos de fadas; a música de Villa-Lobos serve-se de toda sorte de materiais musicais modulados por inimaginável sublinhar de timbres, intensidades, durações, volumes, densidades, configurações harmônicas, localizações no campo de tessitura. Fora ele um "nacionalista" teria sido atípico. O que ele é, é, como os mais engenhosos compositores de seu tempo: um músico que, não encontrando linguagem universalizante viva, esculpiu com as pedras de seu caminho (das mais diversas formações geológicas), o substituto de falas - que mesmo em sua dureza - valeu para delivrar o aviso, o encargo de sua predestinação.   Ouçam, por exemplo, as portuguesíssimas canções "Confidência" (1908) e a "Canção do Poeta do Século XVIII" (1953), o "Choros nº 1" (extrato de MPB), o "Choros nº 2", a "Sinfonia nº 6", a "Dança dos mosquitos" (de 1920!), o "Rudepoema", e vejam se eu não tenho razão!   Usou em proporções equivalentes, tanto materiais de folclore brasileiro, como imitou materiais encontráveis na História da Música, como inventou novos materiais para a História da Música: não é - por sua obra - o que se poderia chamar de gigante "nacionalista". Universal. E não por tornar saboreável mundialmente elementos do folclore brasileiro, mas pela força de expressão de uma obra múltipla e complexa, testemunho de poder criador do HOMEM, e não como exotismo (como atrativo turístico circunscrito à estreitura de sentido de uma fronteira geográfica).   Villa-Lobos é um trágico, como foram todos os criadores do século XX. O mundo é que é uma Babel! Sem língua universal. Uma Babel construída não de blocos de pedras vultosas para atingir o céu, mas torre danada, erguida pelo acúmulo de inumeráveis (tristes), mas GRANDES (trágicas) torres de marfim.     Coda   Encontro em casa de Thiago (Cury), com Sonia Rubinsky, aquando de sua última visita ao Brasil. Curiosos sobre a gravação (recente) que ela fizera para completar a série dedicada à obra pianística de Villa-Lobos: AMAZONAS, para piano. - "Não consigo entender patavina desta peça, cada vez que arrisco mais uma escuta, não me fica nada. Então existe outra versão que não a orquestral?"   Sonia me informou que a versão para piano, provavelmente não se destinava a execuções, que deve ter sido um registro a dois pentagramas para o trabalho de orquestração da obra! "Há passagens que não são exequíveis, tais como constam", disse por entre um sorriso astucioso. Ela acha que a editora deve ter pedido alguma coisa para piano, e ele, para desincumbir-se, enviou aquela partitura de trabalho. A pianista aquiesceu que tivera, sim, dificuldades quanto ao que dizer com aquela obra.   - "Eu não saberia o que fazer. Não entrevejo, com clareza o que possa ser, ali, cabeça, pés, corpo, que bicho montar com aquilo" disse-lhe eu. Disse Sonia, mais ou menos assim: - "Depois de algum tempo com a peça, me ocorreu pensar um sonho em uma floresta tropical", sorriu com simpatia, e entregou a cópia do CD (ainda inédito) para o Thiago colocá-lo na vitrola.   Na antiguidade, outro ungido, que também havia recebido o dom da INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS, Daniel, com suas revelações removera o que de mais íntimo sustentava Nabucodonosor. Mais recentemente, Freud conseguiu chegar quase perto dos sonhos que ele mesmo sonhara; e Jung, desditoso, não atinou com o que velava seus próprios sonhos, se bem que escancarou uma porta de assombros para a vigília da mais remota das eras. A lógica do sonho se esconde do homem acordado. Villa-Lobos - alquimista - transmutou sonhos em realidades musicais; das peças de sonho confeccionou peças de música - com a lógica, pode-se dizer que escapa ao homem vigilante. Villa-Lobos, mesmo "pre-destinado", era um homem acordado. Mas com o dom de, trabalhando, aportar na noite, e dela receber modos de encadear, de soldar, que em sonhos regem, e de dia assusta-nos. Ou nos afasta.   A Sonia, como Daniel, revelou a AMAZONAS naquele encontro em casa de Thiago, a todos nós que estávamos lá - aparentemente acordados, mas sonhávamos (ao fluxo da música), e não como quem sonha acordado; sim como quem dorme (e aceita do sonho o que o sonho oferece): o estar acordado, quando de pé, mais vigilante ainda de que antes do sonho havido. D'aquilo que do sonho pulsa como sangue no espírito. Mesmo que a mente - com claridade - logre alcançar (quase que somente) o que ocorre de dia.   Acontece que os dias não existem sem suas noites; e quem sabe, talvez, a noite prescinda do dia.   São Paulo, outubro de 2007