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    31.5.25

    continua/Chantal Montellier/W.W.3./métal hurlant/entra

    MÉTAL HURLANT / Collection de 600 pages de récits complets. Mœbius, Druillet, Giger, Forest, Wood, Caro, Chantal Montellier, Breccia, Gimenez, Toth, Gustave Doré et beaucoup, beaucoup d'autres; Chantal Montellier: Métal Hurlant No36bis: W.W.3.; . France: Les Humanoides Associes Presentent, 1978-9.

    continua/Chantal Montellier/Bruxas, minhas irmãs/Sorcières, mes sœurs/sai

    MONTELLIER, Chantal (1947-). Bruxas, minhas irmãs / Sorcières, mes sœurs / Chantal Montellier; prefácio Chantal Montellier; com textos de A Bruxa, de Jules Michelet; tradução Maria Clara Carneiro; 2006. São Paulo: Veneta, 2023.

    Bruxas, minhas irmãs

    Na ldade Média, quando os homens estavam na guerra do Senhor ou nas Cruzadas, todas as mulheres ficavam completamente sós nos campos, isoladas durante meses, meses e meses na floresta, em suas cabanas. É assim, a partir da solidão, de uma solidão inimaginável para nós hoje, que elas começaram a falar com as árvores, as plantas, os animais, os animais selvagens; quer dizer, a entrar, como posso dizer... a reinventar uma relação inteligente com a natureza, a reinventá-la.

    Uma inteligência que, na verdade, tem sua origem na Pré-História. Então foi uma reconexão.

    E essas mulheres foram chamadas de bruxas, e foram queimadas. Dizem que 1 milhão delas. Em toda a ldade Média e no começo do Renascimento. Queimaram as mulheres até o século XVII.

      Essas mulheres que encontramos em filmes e em livros, penso em uma mulher como Nathalie Granger (1972], em Élisabeth Alione em Destruir, Ela Disse [Détruire, dit-elle, 1969], em Vera Baxter em Baxter, Vera Baxter [Les plages de lAtlantique, 1977], será que, de certa maneira, elas não seriam ainda bruxas de Michelet?

    A gente continua nisso, nós, as mulheres... Ainda estamos nisso... Sim, estamos nisso. Não mudou mesmo muito.

    Marguerite Duras*

    Se, do meu ponto de vista, as coisas até que mudaram, acredito, no entanto, que o imaginário e a sexualidade das mulheres continuam a dar medo, sobretudo quando elas gozam de certa liberdade. Medo de não poder controlá-las, dominá-las. Medo do incêndio que elas poderiam provocar.
    A bruxa é desde sempre percebida como uma rebelde incontrolável, acusada de negociar com o Mal e de joga mau-olhado.
    Insolente, ela provoca os poderes e seus representantes: o príncipe, o padre, o médico (cujo saber ele deve muito a ela). Autônoma, ela é perigosa para a ordem estabelecida, pois questiona a autoridade de clérigos e do clericato.
    Jules Michelet**, que consagrou a ela um livro magnífico, corajoso e lúcido, parece, no entanto, crer que a bruxa tinha mesmo um laço com as potências ocultas. Segundo Georges Bataille, ela encarnaria a desordem dos sentidos, a parte maldita.
    Para todos os poderosos e aqueles que os seguem, ela é a cabra expiatória da razão e da modernidade. Em nome da ciência e do progresso, essa figura de alteridade deve ser erradicada sem misericórdia.
    É preciso dizer que ela ofende e disputa o saber oficial ao praticar a medicina das plantas e ao desenvolver uma estranha farmacopeia. Reprovam-Ihe também a sexualidade livre demais, até mesmo desenfreada. Falam da vagina insaciável das bruxas, que têm a reputação de cavalgar os homens e continuar a fazer amor depois da menopausa, prática muito malvista pela lgreja. Em suma, sua sexualidade é subversiva.
    A solução é simples: é preciso queimar essas mulheres! A Inquisição atiça seu fogo contra elas. Por todo canto, padres acendem fogueiras nas quais elas desaparecerão aos milhares. Na Alemanha, na Suíça, na Espanha e, claro, na França, as bruxas perecem nas chamas, da mais humilde feiticeira à mais famosa: Joana dArc, que, isso é esquecido com muita frequência, foi condenada por heresia e bruxaria. Ela transgrediu os costumes esta belecidos, cortou os cabelos, se vestiu como homem, montou a cavalo, segurou a espada. Ela deve então perecer, quaisquer que sejam seus méritos e sua coragem. Aos heróis, as honras; às heroínas, a fogueira.
    Diante dessa sentença atroz e bárbara, a bruxa se encontra só, reunindo, geralmente, todo o consenso contra ela. Protestantes e católicos se aliam contra as infelizes.
    Herdeira dos tempos obscuros, essa terrível repressão perdurou até o Renascimento! Humanistas, de Cornelius Agrippa a Jean Bodin***, farão coro contra a maldita. O que pode suscitar algumas interrogações.
    A bruxa atravessa os tempos, da fogueira à cadeira elétrica, passando pelas chamas revolucionárias em que a mulher Subversiva é, ainda e sempre, identificada com a bruxa. Assim seria Louise Michel, a virgem vermelha****.
    O ano de 1968 vê certa reabilitação dessa figura sulfurosa. A escritora Xavière Gauthier cria até uma revista chamada Sorcières (bruxas ou feiticeiras]. Pena que não durou muito.
    livraria-galeria das mulheres, localizada na rua Saints-Pères [santos pais] em Paris  como é simbólico! , não tardaria a deixar seu lugar para uma loja para gestantes. Outro simbolo.
    A revista feminina Ah! Nana caía, no mesmo movimento, sob os golpes de uma censura exclusivamente masculina. As desenhistas francesas foram condenadas a retornar a Seus lugares, quer dizer, às publicações para crianças (Nicole Claveloux), ou a seus estudos (Trina Robbins e seus livros sobre mulheres desenhistas), ou, a longo prazo, para o uso somente de palavras, como eu mesma fiquei restrita por vários anos a viver de oficinas de texto (e não de artes plásticas). Ou, enfim, à invisibilidade: por onde andam Keleck, Liz Bijl, Marie-Noëlle Pichard...
    A sociedade patriarcal tem reflexos excelentes, pena que servem sobretudo para quebrar os talentos de suas mulheres. Algumas dessa geração conseguiram, com dificuldades, sobreviver por exemplo, Jeanne Puchol, cujo talento cresce em proporção inversa aos benefícios que ela ganha com ele. Outras, mais jovens, se alinharam ao imaginário dominante, ou já estão se apagando, preferindo uma vida legal à batalha incessante. É possível compreendê-las.
    Outras também, como Catel Muller, parecem ter vontade de combater e se esforçam para conciliar a vida profissional exigente com a vida de esposa e mãe. Desejo a Catel boa sorte e lhe digo: Irmã! Olhe com atenção à tua esquerda, irmã! Atenção à tua direita. As fogueiras da Inquisição queimam ainda, mesmo se aqueles que as atiçam guardaram suas máscaras no vestiário e parecem ser dos nossos.
    Chantal Montellier

    * Trechos do documentário Les lieux de Marguerite Duras, realizado por Michell Porte.

    ** O francês Jules Michelet (1798-1874) foi um dos fundadores da historiografia moderna. Sua obra-prima é a monumental Histoire de France (dezenove volumes), mas a publicação dele que a autora cita na abertura dos capítulos deste livro é La Sorcière (A Bruxa, ou A Feiticeira), de 1862.
    *** Heinrich Cornelius Agrippa (1486-1535) foi um teólogo alemão, autor de diversas obras sobre o ocultismo. Jean Bodin (1530-1596) foi jurista, filósofo e também autor de um influente tratado de demonologia.
    **** Louise Michel (1830-1905) foi uma das líderes da Comuna de Paris (1871) e é considerada a grande pioneira do anarcofeminismo.

    Soldados, pajens, valetes amontoados à noite sob duas cúpulas baixas, presos o dia inteiro nas ameias, nos terraços estreitos vivendo um tédio desolador, respiravam e viviam somente pelas escapadas lá embaixo. Não aquelas escapadas para fazer guerras nas terras vizinhas, mas as de caça, de caçada humana. Inúmeras afrontas, ultrajes contra as famílias de servos. Seu senhor sabia bem que tamanha massa de homens sem mulheres só poderia ser pacificada se fosse solta vez ou outra.

    A ideia chocante de um inferno em que Deus emprega almas celeradas, a quem Ele lhes entrega os mais culpados como se fossem brinquedo, um belo dogma da Idade Média, se dava ao pé da letra. O homem sentia a ausência de Deus. A cada incursão se davam provas do reino de Sată, se dava a crer que era a ele a quem se devia dirigir. [...] Havia prazer no ultraje, em espancar e em provocar choro. No século XVII, as senhoras da corte ainda morriam de rir das anedotas contadas pelo Duque de Lorena, sobre como sua tropa, em vilarejos tranquilos, tomava e atormentava todas as mulheres, mesmo as velhas.
    Os ultrajes atingiam principalmente, ao que parece, as famílias relativamente afluentes e distintas dos outros servos; as tais famílias de servos da área administrativa, que surgem já no século XII como chefes do vilarejo. A nobreza os odiava, zombava deles, os arruinava. Não lhes perdoavam sua dignidade moral nascente. Não admitiam que suas mulheres e filhas fossem honestas e sérias. Elas não tinham o direito de serem respeitadas. A honra delas não era delas. Servas de corpo, essa expressão cruel era o tempo todo lançada a elas.
    Jules Michelet
    A Bruxa, Livro Primeiro, Capítulo IV: Tentações

    A lepra é o último nível e o apogeu do flagelo. Mas mil outros males cruéis e menos hediondos assolam todos os cantos. As mais puras e as mais belas foram marcadas por tristes flores, encaradas como evidência do pecado, ou o castigo de Deus. Fez-se, então, o que o amor à vida não conseguira fazer; transgrediu-se as interdições; abandonou-se a velha medicina oficial e a inútil água benta. Recorreu-se à bruxa. Por costume e por temor também, frequentava-se ainda a Igreja; mas a verdadeira Igreja a partir de então era a casa dela, no charco, na floresta, no deserto. Era lá onde os pedidos eram feitos [...] Atitude temerária e condenável que depois se lamentava à noite. É preciso mesmo que ela esteja presente, essa fatalidade nova. Que queime bem esse fogo, que todos os santos percam a força. Mas ora! O processo do Templo e o processo de Bonifácio revelaram a Sodoma escondida sob o altar. Um papa bruxo, amigo do diabo, e carregado pelo diabo, isso muda toda a forma de pensar. Será que foi sem ajuda do demônio que o papa, que não está mais em Roma, mas em sua Avignon, João XXII, filho de um sapateiro de Cahors, conseguiu coletar mais ouro que o imperador e todos os reis? Tal papa, e tal bispo. Guichard, o bispo de Troyes, não teria obtido do diabo a morte das filhas do rei?... Nós não pedimos morte alguma, nós pedimos as coisas mais doces: vida, saúde, beleza, prazer... Coisas de Deus, que Deus nos recusa... O que fazer? E se nós as conseguíssemos pela graça do Príncipe do Mundo?
    Jules Michelet
    A Bruxa, Livro Primeiro, Capítulo IX: Satã médico

    Mas a grande revolução que as bruxas fazem, a maior contestação ao espírito da Idade Média, é o que se poderia chamar de reabilitação do ventre e das funções digestivas. Elas professaram com coragem: Nada de impuro e nada de imundo. O estudo da matéria foi a partir de então ilimitado, libertado. A medicina se tornou possível [...]. Não faltaram injúrias. Chamaram-nas de bruxas sujas, indecentes, despudoradas, imorais. No entanto, seus primeiros passos nessa direção foram, pode-se dizer, uma feliz revolução no que há de mais moral, a bondade, a caridade. Por uma perversão monstruosa, a Idade Média contemplava a carne em sua representante (maldita desde Eva) - a Mulher - como impura. A Virgem, exaltada como virgem, e não como Nossa Senhora, longe de louvar a mulher real, a havia rebaixado, ao colocar o homem no caminho de uma escolástica da pureza mergulhada na falsidade e na astúcia.
    A própria mulher acabou por admitir o preconceito odioso e se acreditou imunda. Ela se escondia para parir. Ela enrubescia por amar e por oferecer felicidade. Ela, geralmente tão sóbria, em comparação ao homem, ela que é praticamente sempre herbívora e frutívora, que toma tão pouco à natureza, ela que, por um regime lácteo, vegetal, tem a pureza dessas tribos inocentes, pedia quase perdão por existir, viver, cumprir as condições de vida. Humilde mártir do pudor, ela se impunha suplícios, ao ponto de querer esconder, anular, quase suprimir esse ventre adorado, três vezes santo, de onde o deus homem nasce, renasce eternamente.
    Jules Michelet
    A Bruxa, Livro Primeiro, Capítulo IX: Satã médico
     
    Imitem, tudo estará bem. Repitam e copiem. Mas seria esse caminho da verdadeira infância, que vivifica o coração do homem, que lhe faria reencontrar as fontes frescas e fecundas. Nesse mundo que faz da infância e juventude meros dos atributos da velhice, vejo apenas astúcia, servidão, impotência. O que é essa literatura comparada aos monumentos sublimes dos gregos e judeus? Ou diante do gênio romano? É precisamente a queda literária que aconteceu na Índia, do bramanismo ao budismo; uma tagarelice pomposa depois de textos que eram da mais alta inspiração. Os livros copiam os livros, as igrejas copiam as igrejas. E, quando não podem mais copiar, roubam umas das outras. Dos mármores arrancados de Ravena, orna-se a Aix-la-Chapelle. Assim é toda sociedade. Tanto o bispo que é rei de uma cidade quanto o bárbaro que é rei de uma tribo copiam os magistrados romanos. Nossos monges, que achamos originais, estão apenas renovando a villa (como diz muito bem Chateaubriand) em seu monastério. Eles não têm nenhuma intenção de fundar uma sociedade nova, nem de transformar a antiga. Imitadores dos monges do Oriente, eles gostariam, em primeiro lugar, que seus serviçais fossem eles também pequenos monges lavradores, um povo estéril. É apesar deles que a família se refaz, refaz o mundo.
    Quando se vê que esses anciãos envelhecem tão rápido, quando, em um século, caímos do sábio monge São Bento ao pedante Bento de Aniane, sentimos mesmo que essas pessoas não tiveram qualquer participação na grande criação popular que floresce sobre as ruínas [...]
    Jules Michelet
    A Bruxa, Livro Primeiro, Capítulo II: Por que a Idade Média se desesperou
     
    Fogo na floresta
    Os dominantes são levados a identificar na personagem da bruxa um protótipo da rebelde absoluta. As elites culturais e sociais impõem pela exclusão ou pela fogueira o respeito às normas, ou pelo menos o medo de transgredi-las” 

    A lgreja a coloca no ponto mais baixo (ela é Eva e o pecado em si). Em casa, ela é espancada; no sabá, imolada; sabe-se de que forma. No fundo, ela não é nem de Satã nem de Jesus. Ela não é nada, não tem nada. Ela morreria em sua criança. Mas é preciso prestar atenção quando se deixa uma criatura tão infeliz, pois, sob essa saraivada de dores, o que não é dor, o que é doçura e ternura, pode reverter-se em frenesi. Eiso horror da ldade Média. Com seu ar bem espiritual ela suscita o submundo das coisas inacreditáveis que ficariam lá; ele vai dragando, escavando os abjetos subterrâneos da alma.
    De resto, a pobre criatura sufocaria tudo isso. Bem diferente da alta senhora, ela só pode pecar por obediência. Seu marido quer, e Satã quer. Ela tem medo, ela chora; nem a consultam. Mas, tão pouco livre que seja, o efeito não é menos terrível para a perversão dos sentidos e da mente. E o inferno aqui embaixo. Ela fica estarrecida, meio enlouquecida de remorso de paixão.
    [...] Estão assustados pelo que podia ser uma tal sociedade, em que a família, tão impura e devastada, caminhava morna e muda, com uma máscara pesada de chumbo, sob o braço de uma autoridade imbecil que não via nada e se crê senhora. Que rebanho! Que ovelhas! Que pastores idiotas! Eles tinham sob seus olhos um monstro de infelicidade, de dor, de pecado. Espetáculo inacreditável antes e depois. Mas olhavam em seus livros, aprendiam, repetiam palavras. Palavras! Palavras! É toda a história deles. Foram uma lingua, no total. Verbo e verbalidade, é tudo. Um nome ficará: Palavra.
    Jules Michelet
    “Notas e esclarecimentos”
     
    “Pode parecer que as grandes e terriveis revoltas do século XIl não influenciaram esses mistérios e essa vida noturna do lobo, essa caça selvagem, como o chamam os barões cruéis. Mas essas revoltas podiam começar com muita frequência nas festas noturnas. As grandes comunhões de revolta entre servos [...] podiam ser celebradas no sabá. A Marselhesa daquele tempo, cantada mais à noite do que durante o dia, era talvez um canto sabático:
    Nous sommes hommes comme ils sont!
    Tout aussi grand cœur nous avons!
    Tout autant souffrir nous pouvons!*
    Mas o túmulo foi fechado em 1200. O papa está sentado em cima, o rei sentado abaixo e, com uma gravidade enorme, isolaram o homem. Teria ele uma vida noturna? Principalmente! As velhas danças pagãs deviam ser mais furiosas na época [...] Assim era o sentido dos sabás antes de 1300. Para que tomassem a forma impressionante de uma guerra declarada ao Deus daquele tempo, é preciso mais ainda, é preciso duas coisas; não somente que se descesse no fundo do desespero, mas que todo respeito fosse perdido.
    Isso só acontece no século XIV, sob o papado de Avignon e durante o Grande Cisma, quando a lgreja de duas cabeças não parece mais a lgreja, quando toda nobreza e o rei, vergonhosamente prisioneiros dos ingleses, exterminam o povo para lhe extorquir seu dinheiro. Os sabás têm então a forma grandiosa e terrível da Missa Negra...”
    Jules Michelet
    A Bruxa, Livro Primeiro, Capitulo Xl: A comunhão de revolta
    * “Somos homens como eles são/ Também temos um grande coração/ E também podemos sofrer como eles!”
     
    De um diabo
    a outro
    De um diabo a outro, de Françonnette a Nassera, do século XVI ao XXI, os mesmos medos da morte, da doença, do estrangeiro e do outro fabricam as mesmas vítimas. Françonnette e Nassera se tornam uma só pessoa. Só o apoio da fantasia destrutiva que as envolve mudou, mas os efeitos são tristemente os mesmos
    [...] Frio, fome, medo, escuridão! [...]
    — [...] Só que a gente morre vivendo!
     
    Nós vivemos uma onda de obscurantismo que nos lembra,como se fosse preciso, que os arcaísmos retornaram em peso. A pandemia e seus efeitos mortíferos têm, evidentemente, bastante culpa nisso. Esses pensamentos e imagens de uma outra época são, com muita frequência, as estrelas da mídia mainstream, assim como das redes sociais mais subterrâneas.
    Os medos ancestrais infiltram-se por todo o corpo social em sofrimento, e às vezes reaparecem na superfície entre fossos da superstição e as florestas primitivas do pensamento mágico. Esse retorno ao obscuro se encontra, é claro, em todas as religiões. Desde há séculos, Roma não para de correr atrás dos humildes mortais para tentar contê-los, intimidá-los e impedir todas as formas de humanização e de verdadeira liberação: a imprensa, Galileu e sua Terra que gira e gira mesmo — e não somente em torno da Santa Sé — Eppur, si muove, a despeito dos inquisidores. Galileu foi condenado, se não para ser queimado vivo, pelo menos para passar o resto de sua vida em residência vigiada.
    O darwinismo e as origens da Humanidade constituíram para a Igreja, igualmente, teses a serem desacreditadas, combate ainda atual, em particular para os criacionistas americanos. Pensilvânia, Kansas, Geórgia... a lista dos Estados submetendo suas crianças ao obscurantismo se alonga e as iniciativas se multiplicam para introduzir a dúvida a respeito da teoria da evolução.
    Já são 55% dos americanos, segundo uma sondagem da CBS de novembro de 2004, que acreditam que “Deus criou os humanos em sua forma atual”! A grande Inquisição nunca parou de trabalhar. Esqueceram de Giordano Bruno, filósofo e frei dominicano, panteísta que precedeu Spinoza e que aqueles “loucos de deus” queimaram vivo em Roma em 1600? Em uma de suas obras, Spaccio de la Bestia Trionfante (Expulsão da besta triunfante), ele criticava com humor as crenças religiosas. Se deu mal. Esqueceram de Joana, a Donzela de Orléans, julgada herética e bruxa por um tribunal eclesiástico presidido por certo bispo Cauchon, que a condenou também à fogueira? Esqueceram das “bruxas” sobre quem este livro se esforça para lembrar a existência e perseguições? “Queimá-las todas, Deus reconhecerá as suas!”
    Restaurando o rigor do dogma, a Inquisição remodelada e rebatizada — sob o nome agora de Congregação para a Doutrina da Fé — volta a guerrear contra os homens e sobretudo as mulheres: abaixo o preservativo, a contracepção, o aborto e o bom uso da genética.
    Esse retorno ao obscuro está em todas as religiões: evangélicos americanos, sectários do Corão, iluminados de todos as pelagens... E seus tentáculos midiáticos abundam. Encontra-se igualmente em curso, na brecha do irracional, o pensamento mágico. Os xamãs pavoneiam enquanto a Razão fica quase sempre abaixo do radar; é a grande feira da astrologia, do paranormal, do esoterismo aos quais a psicanálise é com muita frequência assimilada, mesmo a contragosto.
    A pretensa ultramodernidade e o obscurantismo caminham de mãos dadas. Será tão paradoxal? Frente a esse surto de messias hollywoodianos, minhas irmãs e irmãos ateus, relembrem todos juntos comigo (e com a ajuda do divino Shakespeare): “O céu está vazio, todos os demônios estão aqui, e só restam o espírito e a sabedoria humana para poder combatê-los”.
    Chantal Montellier
    Chantal Montellier
    Satã toma seus dejetos; o que o céu joga fora, ele recolhe. Por exemplo, a Igreja rejeitou a Natureza, como impura e suspeita. Satã se apropriou dela, dela se adorna. Mais ainda, ele a explora e a utiliza, faz jorrar dali artes, aceitando o grande nome com o qual querem enlameá-lo, o de Príncipe do Mundo. [...] A Igreja, que só vê a vida como uma provação, se abstém de prolongá-la. Seu remédio é a resignação, a espera e a esperança da morte. Vasto campo para Satã. Ei-lo médico, curandeiro dos vivos. Mais ainda, consolador; ele tem a generosidade de nos mostrar nossos mortos, de evocar as sombras amadas.
    Outra pequena coisa rejeitada pela Igreja: a Lógica, a Razão livre. Aí está a grande guloseima da qual o outro se apropria avidamente. A Igreja tinha construído a cal e a cimento uma pequena masmorra, estreita, a abóboda baixa, iluminada por alguma fenda. Isso se chamava a Escola. Largavam ali uns poucos, e lhes diziam: ‘Sejam livres’. Todos ficavam estropiados. Trezentos, quatrocentos anos confirmam a paralisia [...] É curioso que se busque aí a origem no Renascimento. Ele, o Renascimento, aconteceu, mas como? Pela empreitada satânica de pessoas que perfuraram a abóboda, pelo esforço dos condenados que queriam ver o céu. E ele aconteceu mais ainda, longe da Escola e dos letrados, na Escola silvestre...”
    Jules Michelet
    A Bruxa, introdução

    Jules Michelet (Paris, 21 de agosto de 1798 – 9 de fevereiro de 1874)

    continua/benjamin/passagens/Das Passagen-Werk/continua

    (...) Quando se descobriu a roda a fim de permitir a continuidade do movimento sobre o solo — não poderia alguém ter dito com certa razão: e agora, além do mais, ainda é redondo e tem forma de roda? Todas as grandes conquistas no domínio das formas não se deram afinal assim, como descobertas técnicas? Começamos apenas recentemente a adivinhar quais formas, que se tomarão determinantes para nossa época, estão ocultas nas máquinas. O quanto no início a velha forma do meio de produção domina sua forma nova ... é demonstrado de maneira talvez mais cabal pela locomotiva que foi experimentada antes da descoberta da locomotiva atual: com efeito, assim como um cavalo, possuía dois pés que eram erguidos um após o outro. Apenas após um melhor desenvolvimento da mecânica e a acumulação de experiências práticas, a forma é inteiramente determinada pelo princípio mecânico, libertando-se de vez da forma corpórea tradicional da ferramenta, que se transmuda em máquina.” (Neste sentido, por exemplo, também na arquitetura o suporte e o peso são “formas corpóreas”.) O trecho encontra-se em Marx, Das Kapital, vol. I, Hamburgo, 1922, p. 347, nota.

    [F 2a, 5]

    [...]

    (...) Assim, A.Gordon, em A Treatise in Elementary Locomotion, queria fazer rodar os “carros a vapor” — como se dizia na época — sobre estradas de granito. Não se acreditava ser possível produzir ferro suficiente para as linhas férreas, então ainda projetadas em escala bem reduzida.

    [F 3, 4]

    É preciso observar que as perspectivas grandiosas que as novas construções em ferro ofereciam sobre as cidades — exemplos excelentes encontram-se em Giedion, Bauen in Frankreich, Leipzig e Berlim, 1928, nas ilustrações 61-63 da ponte de Marselha, a Pont Transbordem — estavam reservadas exclusivamente e por muito tempo aos operários e engenheiros. ■ Marxismo ■ Pois, quem além do engenheiro e do proletário galgava então os degraus que permitiam divisar pela primeira vez o novo, o decisivo: a sensação espacial dessas construções?

    [F 3, 5]

    Em 1791, surge na França a designação “engenheiro” (ingénieur) para os oficiais da arte das fortificações e do assédio. “E nessa mesma época, no mesmo país, começou a manifestar-se de maneira consciente, e logo com o tom de polêmica pessoal, a oposição entre construção’ e ‘arquitetura’. Isto não existiu absolutamente no passado... Entretanto, nos inúmeros ensaios estéticos, que reconduziram a arte francesa a caminhos regulares após as tempestades da revolução, ... os constructeurs se confrontaram com os décorateurs, e imediatamente colocou-se a questão se os ingénieurs, como seus aliados, não deveriam também ocupar socialmente o mesmo campo.” A. G. Meyer, Eisenbauten , Esslingen, 1907, p. 3.

    [F 3, 6]

    “A técnica da arquitetura de pedra é a estereotomia, a da madeira é a tectônica. O que tem a construção em ferro em comum com esta e com aquela?” Alfred Gotthold Meyer: Eisenbauten, Esslingen, 1907, p. 5. “Na pedra, sentimos o espírito natural da massa. O ferro para nós é apenas resistência e tenacidade artificialmente comprimidas.” Op. cit., p. 9. “O ferro possui uma resistência quarenta vezes maior que a da pedra e dez vezes maior que a da madeira; seu peso específico, contudo, é apenas quatro vezes maior que o da pedra e oito vezes maior que o da madeira. Um corpo de ferro possui, portanto, em comparação a um igual volume de pedra, com uma massa quatro vezes maior, uma capacidade de carga quarenta vezes maior.” Op. cit., p. 11.

     [F 3, 7]

    [...]

    Estações como “centros de arte”. “Se Wiertz tivesse tido à sua disposição ... os monumentos públicos da civilização moderna: estações ferroviárias, câmaras legislativas, salas de universidade, mercados, prefeituras ... quem poderia dizer que mundo novo, vivo, dramático, pitoresco ele teria projetado sobre sua tela?” A. J. Wiertz, Œuvres Littéraires, Paris, 1870, pp. 525-526.

    [F 3a, 3]

    O absolutismo técnico que está na base da construção em ferro, em decorrência do próprio material, fica evidente quando nos inteiramos da oposição em que o ferro se encontrava em relação as concepções tradicionais do valor e da utilidade de materiais de construção em geral. “O ferro era visto com uma certa desconfiança, justamente porque não era extraído diretamente da natureza e sim fabricado artificialmente. Esta era apenas uma aplicação particular daquele sentimento geral do Renascimento, que Leo Battista Alberti (De Re Aedificatoria, Paris, 1512, foi. XLIV) expressa com as seguintes palavras: ‘Nam est quidem cujusquis corporis pars indissolubilior, quae a natura concreta et counita est, quam quae hominum manu et arte conjuncta atque, compacta est.”’Œ8 A. G. Meyer, Eisenbauten, Esslingen, 1907, p. 14.

    [F 3a, 4]

    (...) No caso do ferro como material de construção isto já é bem evidente, e talvez pela primeira vez. Pois as “formas básicas, nas quais o ferro aparece como material de construção, são ... por si mesmas parcialmente novas como configurações individuais. E sua especificidade é, em grande medida, resultado e expressão das qualidades naturais do material, porque estas foram desenvolvidas e exploradas técnica e cientificamente justamente para estas formas. Em comparação com os materiais de construção conhecidos até então, o objetivo do processo de trabalho, que transforma a matéria-prima em material de construção imediatamente utilizável, inicia-se com o ferro já em um estágio muito anterior. Entre matéria e material existe aqui naturalmente uma outra relação do que entre pedra bruta e pedra lavrada, entre argila e telha, madeira e viga: no caso do ferro, o material e a forma de construção sao por assim dizer mais homogêneos.” A. G. Meyer, Eisenbauten, Esslingen, 1907, p. 23.

    [F 3a, 5]

    1840-1844. “A construção das fortificações, inspirada por Thiers... Thiers, que pensava que as vias férreas não funcionariam nunca, fez construir portas em Paris, no momento em que a cidade precisava de estações.” Dubech e D’Espezel, Histoire de Paris, Paris, 1926, p. 386.

    [F 3a, 6]

    [...]
    A passagem como construção em ferro fica na fronteira do espaço largo (Breitraum). Esta é uma das razões decisivas de sua aparência “antiquada”. Ela ocupa aqui uma posição híbrida, que tem certa analogia com a da igreja barroca: “a cobertura (Halle) em abóbada, que admite até mesmo as capelas apenas como alargamento do seu próprio espaço, mais largo que nunca. Mas também nesta cobertura barroca prevalece a tendência ‘para o alto’, o êxtase dirigido às alturas, como rejubila nos afrescos do teto. Enquanto os espaços das igrejas pretendem servir a algo mais do que para fins de reunião, enquanto querem abrigar a idéia do eterno, o espaço único e contínuo apenas poderá satisfazê-los se a altura superar a largura.” A. G. Meyer, Eisenbauten , p. 74. Inversamente, pode-se dizer que permanece algo de sagrado, um resquício de nave de igreja, nesta fileira de mercadorias que é a passagem. Do ponto de vista funcional, a passagem já se encontra no domínio do espaço largo, porém, do ponto de vista arquitetônico, ainda está no espaço da antiga “cobertura”.

    [F 4, 5]

     [...]

    Formação histórica do espaço largo: “O castelo dos reis da França toma emprestada ao palácio renascentista italiano a ‘galeria’, a qual — como na ‘Galeria de Apoio’ do Louvre ou na ‘Galeria de Espelhos’ de Versalhes — torna-se símbolo da majestade propriamente dita ... / Seu novo cortejo triunfal no século XIX inicia-se, por sua vez, sob o signo da construção puramente utilitária, com pavilhões que servem de depósito e mercado, oficina e fábrica: o lado voltado à arte é determinado pelas estações de trem — e principalmente pelas exposições. E por toda parte a necessidade de um espaço largo contínuo é tão grande que dificilmente serão suficientes a abóbada de pedra e o teto de madeira... Na arquitetura gótica, as paredes crescem em direção ao teto, nos saguões de ferro do tipo ... da Galerie des Machines de Paris, o teto se transforma sem solução de continuidade em paredes.” A. G. Meyer, Eisenbauten, pp. 74-75.

    [F 4a. 1]

    Nunca a medida do “muito pequeno” teve tanta importância quanto agora. Inclui-se aí também o muito pequeno em quantidade, o “mínimo”. Trata-se de medidas que adquiriram significado para as construções da técnica e da arquitetura muito antes de a literatura se dignar de adaptar-se a elas. Basicamente é a primeira manifestação do princípio de montagem. Sobre a construção da Torre Eiffel: “Aqui a força plástica da imagem silencia em favor de uma enorme tensão de energia espiritual que concentra a energia inorgânica do material nas formas mínimas e mais eficazes, associando-as da maneira mais funcional possível... Cada uma das 12.000 peças de metal é fabricada com exatidão milimétrica, cada um dos 2,5 milhões de arrebites... Neste canteiro de obras não se ouvia nenhum golpe de formão que retira da pedra a sua forma; mesmo ali o pensamento dominava a força muscular, transferindo-a para seguros andaimes e guindastes.” A. G. Meyer, Eisenbauten, p. 93. ■ Precursores ■

    [F 4a. 2]

    “Haussmann não soube ter o que se poderia chamar de uma política das estações ferroviárias... Apesar de uma declaração do imperador, que havia justamente batizado as estações de novas portas de Paris, o desenvolvimento contínuo das vias férreas surpreendeu todo mundo, ultrapassou as previsões. Não se soube sair do empirismo cotidiano.” Dubech e D’Espezel, Histoire de Paris, Paris, 1926, p. 4 19.

    [F 4a, 3]

    Torre Eiffel. Originalmente saudada por um protesto unânime, eia continuou sendo bastante feia, mas foi útil ao estudo da telegrafia sem fio... Disseram que essa Exposição havia marcado o triunfo da construção em ferro. Seria mais justo dizer que marcou sua falência.” Dubech e D’Espezel, Histoire de Paris, Paris, pp. 461-462.

    [F 4a,4]

    Por volta de 1878, acreditou-se encontrar a salvação na arquitetura em ferro; as aspirações verticais, como diz o Sr. Salomon Reinach, a predominância dos vazios sobre os cheios e a leveza da ossatura aparente fizeram esperar que nascesse um estilo que reviveria o essencial do gênio gótico, rejuvenescido por um espírito e materiais novos. Quando os engenheiros ergueram a Galerie des Machines e a Torre Eiffel, em 1 889, perdeu-se a esperança na arte de ferro. Cedo demais, talvez.” Dubech e D’Espezel, op. cit., p. 464.

    [F 4a, 5]

    [...]

    “O caminho que vai da forma da primeira locomotiva, durante o estilo Império, à sua forma atual, perfeita e objetiva, caracteriza uma evolução.” Joseph Aug. Lux, “Maschinenästhetik”, Die Neue Zeit, XXVII, 2, p. 439, Stuttgart, 1909. 

    [F 4a, 7]

    <fase média>
    [...]

    (...) (A verificar: se em uma representação alegórica no Cabinet des Estampes, o quebra-cabeça substitui o caleidoscópio ou vice-versa.)

    [F 6, 2]

    [...]

    Victor-Hugo em Notre-Dame de Paris, sobre o prédio da Bolsa de Valores: “Se existe a regra que a arquitetura de um edifício seja adaptada à sua finalidade ... não seria demais maravilhar-se com um monumento que pode ser indiferentemente um palácio de rei, uma câmara dos comuns, uma prefeitura, um colégio, um picadeiro, uma academia, um entreposto, um tribunal, um museu, uma caserna, um sepulcro, um templo, um teatro. Por enquanto ... é uma Bolsa de Valores... E uma Bolsa na França, como teria sido um templo na Grécia... Tem-se esta colunata que circunda o monumento, e sob a qual, nos grandes dias de solenidade religiosa, pode-se desenvolver majestosamente a teoria dos agentes de câmbio e dos corretores de comércio. Trata-se, sem dúvida, de soberbos monumentos. Acrescentemos a eles ruas muito belas, divertidas e variadas, como a Rue de Rivoli, e não posso deixar de esperar que Paris, vista de um balão, apresente um dia ... esta riqueza de linhas, ... esta diversidade de aspectos, este não sei quê ... de inesperado no belo, que caracteriza um tabuleiro de xadrez.” Victor Hugo, Œuvres Complètes, Romances, vol. III, Notre-Dame de Paris, Paris, 1880, pp. 206-207.

    [F 6a, 1]

    [...]

    O engenheiro Alexis Barrault, que construiu o Palácio da Indústria em 1855, juntamente com Viel, era irmão de Emile Barrault.

    [F 7a, 2]

    Em 1779, foi construída a primeira ponte de ferro fundido (de Coalbrookdale); em 1788, seu construtor15 é agraciado com a medalha de ouro pela Sociedade Inglesa das Artes. “Como, aliás, foi em 1790 que o arquiteto Louis terminava em Paris o vigamento em ferro forjado do Théâtre-Français, é possível dizer que o centenário das construções em metal coincide quase exatamente com o da Revolução Francesa.” A. de Lapparent, Le Siècle du Fer, Paris, 1890, pp. 11-12.

    [F 7a, 3]

    Em Paris, no ano de 1822, uma greve dos carpinteiros.

    [F 7a, 4]

    Sobre o quebra-cabeça chinês, uma litografia: “O Triunfo do caleidoscópio ou o Túmulo do Jogo Chinês.” Um chinês deitado com um quebra-cabeça. Uma figura feminina colocou o pé sobre ele. Numa das mãos, ela carrega um caleidoscópio, na outra um papel ou uma tira com motivos de caleidoscópio. Cabinet des Estampes (datado de 1818).

    [F 7a, 5]

    “A cabeça gira e o coração aperta quando, pela primeira vez, percorre-se essas casas de fadas nas quais o ferro e o cobre resplandecentes, polidos, parecem valer por si mesmos, parecem pensar, querer, enquanto o homem pálido e fraco é o humilde servidor desses gigantes de aço.” J. Michelet, Le Peuple, Paris, 1846, p. 82. O autor não teme que a produção mecânica possa prevalecer. Parece-lhe, ao contrário, ser barrada pelo individualismo do consumidor “Cada homem quer agora ser ele mesmo; conseqüentemente, desprezará muitas vezes produtos fabricados em série, sem individualidade que responda à sua.” Ic p. 78.

    [F 7a, 6]

    <fase tardia>

    “VioIlet-le-Duc (1814-1879) mostra que os arquitetos da Idade Média foram também engenheiros e inventores surpreendentes.” Amédée Ozenfant, “La peinture murale, Encyclopédie Française, vol. XVI, Arts et Littératures dans la Société Contemporaine, tomo I, p. 70, col. 3.

    [F 8, 1]

    [...]

    “Foi em 1783, na construção do Théâtre-Français, que o ferro foi empregado pela primeira vez em grandes dimensões, pelo arquiteto Louis. Talvez nunca se tenha repetido um trabalho tão audacioso. Quando, em 1900, o teatro foi reconstruído depois de um incêndio, utilizou-se para a mesma cobertura um peso de ferro cem vezes superior ao do arquiteto Louis. A construção em ferro propiciou uma série de edifícios, dos quais a Grande Sala de Leitura da Biblioteca Nacional de Labrouste é o primeiro e um dos melhores exemplos... Mas o ferro necessita de uma manutenção dispendiosa... A Exposição de 1889 foi o triunfo do ferro aparente...; na Exposição de 1900, quase todas as armações em ferro estavam recobertas de estafe.” LEncyclopédie Française, vol. XVI, 16-68, pp. 6-7. (Aususte Perret, “Les besoins collectifs et l’architecture”).

    [F 8, 4]

    O “triunfo do ferro aparente” na era do gênero: “Pode se compreender ... a partir do entusiasmo pela técnica das máquinas e da crença na solidez inigualável de seus materiais o fato de que o atributo ‘de bronze’ ou ‘de ferro’ aparece por roda parte ... toda vez que se quer enfatizar a força e a necessidade: de bronze são as leis da natureza, como mais tarde o ‘passo dos batalhões de operários’; ‘de ferro’ é a unificação do Império Alemão ... e de ferro’ é o próprio chanceler.” Dolf Stemberger, Panorama, Hamburgo, 1938, p. 31.16

     

    8 “Pois em cada substância existe uma parte que é confeccionada e reunida pela natureza e que é mais   indissolúvel que a que é produzida e reunida pela mão e pela arte do homem.” (w.b.) 

    15 A ponte de Coalbrookdale, no Shropshire, foi construída em 1779 por T. F. Pritchard. (J.L.)

    16 D. Stemberger, Panorama oder Ansichten vom 19. Jahrhundert. Ver a resenha deste livro por Benjamin, GS III, pp. 572-579. (J.L.) 

    BENJAMIN, Walter (1892-1940). Passagens / Das Passagen-WerkWalter Benjamin; edição alemã de Rolf Tiedemann; organização da edição brasileira Willi Bolle; colaboração na organização da edição brasileira Olgária Chain Féres Matos; tradução do alemão Irene Aron; tradução do francês Cleonice Paes Barreto Mourão; revisão técnica Patrícia de Freitas Camargo; pósfácios Willie Bolle e Olgária Chain Féres Matos; introdução à edição alemã (1982) Rolf Tiedemann. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.

    29.5.25

    continua/Chantal Montellier/Bruxas, minhas irmãs/Sorcières, mes sœurs/continua

    MONTELLIER, Chantal (1947-). Bruxas, minhas irmãs / Sorcières, mes sœurs / Chantal Montellier; prefácio Chantal Montellier; com textos de A Bruxa, de Jules Michelet; tradução Maria Clara Carneiro; 2006. São Paulo: Veneta, 2023.

    Fogo na floresta
    Os dominantes são levados a identificar na personagem da bruxa um protótipo da rebelde absoluta. As elites culturais e sociais impõem pela exclusão ou pela fogueira o respeito às normas, ou pelo menos o medo de transgredi-las” 

    A lgreja a coloca no ponto mais baixo (ela é Eva e o pecado em si). Em casa, ela é espancada; no sabá, imolada; sabe-se de que forma. No fundo, ela não é nem de Satã nem de Jesus. Ela não é nada, não tem nada. Ela morreria em sua criança. Mas é preciso prestar atenção quando se deixa uma criatura tão infeliz, pois, sob essa saraivada de dores, o que não é dor, o que é doçura e ternura, pode reverter-se em frenesi. Eiso horror da ldade Média. Com seu ar bem espiritual ela suscita o submundo das coisas inacreditáveis que ficariam lá; ele vai dragando, escavando os abjetos subterrâneos da alma.
    De resto, a pobre criatura sufocaria tudo isso. Bem diferente da alta senhora, ela só pode pecar por obediência. Seu marido quer, e Satã quer. Ela tem medo, ela chora; nem a consultam. Mas, tão pouco livre que seja, o efeito não é menos terrível para a perversão dos sentidos e da mente. E o inferno aqui embaixo. Ela fica estarrecida, meio enlouquecida de remorso de paixão.
    [...] Estão assustados pelo que podia ser uma tal sociedade, em que a família, tão impura e devastada, caminhava morna e muda, com uma máscara pesada de chumbo, sob o braço de uma autoridade imbecil que não via nada e se crê senhora. Que rebanho! Que ovelhas! Que pastores idiotas! Eles tinham sob seus olhos um monstro de infelicidade, de dor, de pecado. Espetáculo inacreditável antes e depois. Mas olhavam em seus livros, aprendiam, repetiam palavras. Palavras! Palavras! É toda a história deles. Foram uma lingua, no total. Verbo e verbalidade, é tudo. Um nome ficará: Palavra."
    Jules Michelet
    “Notas e esclarecimentos”
     
    “Pode parecer que as grandes e terriveis revoltas do século XIl não influenciaram esses mistérios e essa vida noturna do lobo, essa caça selvagem, como o chamam os barões cruéis. Mas essas revoltas podiam começar com muita frequência nas festas noturnas. As grandes comunhões de revolta entre servos [...] podiam ser celebradas no sabá. A Marselhesa daquele tempo, cantada mais à noite do que durante o dia, era talvez um canto sabático:
    Nous sommes hommes comme ils sont!
    Tout aussi grand cœur nous avons!
    Tout autant souffrir nous pouvons!*
    Mas o túmulo foi fechado em 1200. O papa está sentado em cima, o rei sentado abaixo e, com uma gravidade enorme, isolaram o homem. Teria ele uma vida noturna? Principalmente! As velhas danças pagãs deviam ser mais furiosas na época [...] Assim era o sentido dos sabás antes de 1300. Para que tomassem a forma impressionante de uma guerra declarada ao Deus daquele tempo, é preciso mais ainda, é preciso duas coisas; não somente que se descesse no fundo do desespero, mas que todo respeito fosse perdido.
    Isso só acontece no século XIV, sob o papado de Avignon e durante o Grande Cisma, quando a lgreja de duas cabeças não parece mais a lgreja, quando toda nobreza e o rei, vergonhosamente prisioneiros dos ingleses, exterminam o povo para lhe extorquir seu dinheiro. Os sabás têm então a forma grandiosa e terrível da Missa Negra...”
    Jules Michelet
    A Bruxa, Livro Primeiro, Capitulo Xl: A comunhão de revolta
     
    * “Somos homens como eles são/ Também temos um grande coração/ E também podemos sofrer como eles!”
     
    De um diabo
    a outro
    De um diabo a outro, de Françonnette a Nassera, do século XVI ao XXI, os mesmos medos da morte, da doença, do estrangeiro e do outro fabricam as mesmas vítimas. Françonnette e Nassera se tornam uma só pessoa. Só o apoio da fantasia destrutiva que as envolve mudou, mas os efeitos são tristemente os mesmos
    [...] Frio, fome, medo, escuridão! [...]
    — [...] Só que a gente morre vivendo!

    Chantal Montellier

    28.5.25

    beethoven/op 18/No 3/Quator Hongrois/continua/

    BEETHOVEN, Ludwig van. Complete String Quartets and Grosse Fuge. Ludwig van Beethoven. From The Breitkopf & Härtel Complete Works Edition. Is an unabridged republication of Serie 6 (Volumes 1 and 2): Quartette für 2 Violinen, Bratsche und Violoncell of Ludwig van Beethovens Werke. Vollständige kritisch durchgesehene überall beerechtigte Ausgabe. Mit Genehmigung aller Originalverleger, original published by Breitkopf & Härtel, Leipizig, n.d.  Quartet No3 in D Major, Op.18, No3. New York: Dover Publications, INC, 1970.




    BEETHOVEN, Ludwig van. Quator à cordes en ré majeur, Op18 No3. Ludwig van Beethoven. Quator Hongrois. France: EMI, 1966.

    continua/Chantal Montellier/Bruxas, minhas irmãs/Sorcières, mes sœurs/continua

    MONTELLIER, Chantal (1947-). Bruxas, minhas irmãs / Sorcières, mes sœurs / Chantal Montellier; prefácio Chantal Montellier; com textos de A Bruxa, de Jules Michelet; tradução Maria Clara Carneiro; 2006. São Paulo: Veneta, 2023.

    Soldados, pajens, valetes amontoados à noite sob duas cúpulas baixas, presos o dia inteiro nas ameias, nos terraços estreitos vivendo um tédio desolador, respiravam e viviam somente pelas escapadas lá embaixo. Não aquelas escapadas para fazer guerras nas terras vizinhas, mas as de caça, de caçada humana. Inúmeras afrontas, ultrajes contra as famílias de servos. Seu senhor sabia bem que tamanha massa de homens sem mulheres só poderia ser pacificada se fosse solta vez ou outra.

    A ideia chocante de um inferno em que Deus emprega almas celeradas, a quem Ele lhes entrega os mais culpados como se fossem brinquedo, um belo dogma da Idade Média, se dava ao pé da letra. O homem sentia a ausência de Deus. A cada incursão se davam provas do reino de Sată, se dava a crer que era a ele a quem se devia dirigir. [...] Havia prazer no ultraje, em espancar e em provocar choro. No século XVII, as senhoras da corte ainda morriam de rir das anedotas contadas pelo Duque de Lorena, sobre como sua tropa, em vilarejos tranquilos, tomava e atormentava todas as mulheres, mesmo as velhas.
    Os ultrajes atingiam principalmente, ao que parece, as famílias relativamente afluentes e distintas dos outros servos; as tais famílias de servos da área administrativa, que surgem já no século XII como chefes do vilarejo. A nobreza os odiava, zombava deles, os arruinava. Não lhes perdoavam sua dignidade moral nascente. Não admitiam que suas mulheres e filhas fossem honestas e sérias. Elas não tinham o direito de serem respeitadas. A honra delas não era delas. Servas de corpo, essa expressão cruel era o tempo todo lançada a elas.
     
    Jules Michelet
    A Bruxa, Livro Primeiro, Capítulo IV: Tentações


    "A lepra é o último nível e o apogeu do flagelo. Mas mil outros males cruéis e menos hediondos assolam todos os cantos. As mais puras e as mais belas foram marcadas por tristes flores, encaradas como evidência do pecado, ou o castigo de Deus. Fez-se, então, o que o amor à vida não conseguira fazer; transgrediu-se as interdições; abandonou-se a velha medicina oficial e a inútil água benta. Recorreu-se à bruxa. Por costume e por temor também, frequentava-se ainda a Igreja; mas a verdadeira Igreja a partir de então era a casa dela, no charco, na floresta, no deserto. Era lá onde os pedidos eram feitos [...] Atitude temerária e condenável que depois se lamentava à noite. É preciso mesmo que ela esteja presente, essa fatalidade nova. Que queime bem esse fogo, que todos os santos percam a força. Mas ora! O processo do Templo e o processo de Bonifácio revelaram a Sodoma escondida sob o altar. Um papa bruxo, amigo do diabo, e carregado pelo diabo, isso muda toda a forma de pensar. Será que foi sem ajuda do demônio que o papa, que não está mais em Roma, mas em sua Avignon, João XXII, filho de um sapateiro de Cahors, conseguiu coletar mais ouro que o imperador e todos os reis? Tal papa, e tal bispo. Guichard, o bispo de Troyes, não teria obtido do diabo a morte das filhas do rei?... Nós não pedimos morte alguma, nós pedimos as coisas mais doces: vida, saúde, beleza, prazer... Coisas de Deus, que Deus nos recusa... O que fazer? E se nós as conseguíssemos pela graça do Príncipe do Mundo?"
     
    Jules Michelet
    A Bruxa, Livro Primeiro, Capítulo IX: Satã médico

    "Mas a grande revolução que as bruxas fazem, a maior contestação ao espírito da Idade Média, é o que se poderia chamar de reabilitação do ventre e das funções digestivas. Elas professaram com coragem: 'Nada de impuro e nada de imundo'. O estudo da matéria foi a partir de então ilimitado, libertado. A medicina se tornou possível [...]. Não faltaram injúrias. Chamaram-nas de bruxas sujas, indecentes, despudoradas, imorais. No entanto, seus primeiros passos nessa direção foram, pode-se dizer, uma feliz revolução no que há de mais moral, a bondade, a caridade. Por uma perversão monstruosa, a Idade Média contemplava a carne em sua representante (maldita desde Eva) - a Mulher - como impura. A Virgem, exaltada como virgem, e não como Nossa Senhora, longe de louvar a mulher real, a havia rebaixado, ao colocar o homem no caminho de uma escolástica da pureza mergulhada na falsidade e na astúcia.
    A própria mulher acabou por admitir o preconceito odioso e se acreditou imunda. Ela se escondia para parir. Ela enrubescia por amar e por oferecer felicidade. Ela, geralmente tão sóbria, em comparação ao homem, ela que é praticamente sempre herbívora e frutívora, que toma tão pouco à natureza, ela que,
    por um regime lácteo, vegetal, tem a pureza dessas tribos inocentes, pedia quase perdão por existir, viver, cumprir as condições de vida. Humilde mártir do pudor, ela se impunha suplícios, ao ponto de querer esconder, anular, quase suprimir esse ventre adorado, três vezes santo, de onde o deus homem nasce, renasce eternamente.
     
    Jules Michelet
    A Bruxa, Livro Primeiro, Capítulo IX: Satã médico
     
    'Imitem, tudo estará bem. Repitam e copiem.' Mas seria esse caminho da verdadeira infância, que vivifica o coração do homem, que lhe faria reencontrar as fontes frescas e fecundas. Nesse mundo que faz da infância e juventude meros dos atributos da velhice, vejo apenas astúcia, servidão, impotência. O que é essa literatura comparada aos monumentos sublimes dos gregos e judeus? Ou diante do gênio romano? É precisamente a queda literária que aconteceu na Índia, do bramanismo ao budismo; uma tagarelice pomposa depois de textos que eram da mais alta inspiração. Os livros copiam os livros, as igrejas copiam as igrejas. E, quando não podem mais copiar, roubam umas das outras. Dos mármores arrancados de Ravena, orna-se a Aix-la-Chapelle. Assim é toda sociedade. Tanto o bispo que é rei de uma cidade quanto o bárbaro que é rei de uma tribo copiam os magistrados romanos. Nossos monges, que achamos originais, estão apenas renovando a villa (como diz muito bem Chateaubriand) em seu monastério. Eles não têm nenhuma intenção de fundar uma sociedade nova, nem de transformar a antiga. Imitadores dos monges do Oriente, eles gostariam, em primeiro lugar, que seus serviçais fossem eles também pequenos monges lavradores, um povo estéril. É apesar deles que a família se refaz, refaz o mundo.
    Quando se vê que esses anciãos envelhecem tão rápido, quando, em um século, caímos do sábio monge São Bento ao pedante Bento de Aniane, sentimos mesmo que essas pessoas não tiveram qualquer participação na grande criação popular que floresce sobre as ruínas [...]"
     
    Jules Michelet
    A Bruxa, Livro Primeiro, Capítulo II: Por que a Idade Média se desesperou

    Jules Michelet (Paris, 21 de agosto de 1798 – 9 de fevereiro de 1874)

    Chantal Montellier