continua/benjamin/rua de mão única/infância berlinense: 1900
Numa velha canção infantil aparece a Muhme Rehlen21. Como a palavra ‘Muhme’ não me dizia nada, essa criatura transformou-se para mim num fantasma: a Mummerehlen.
Em boa hora aprendi a me disfarçar nas palavras, que de fato eram nuvens. O dom de reconhecer semelhanças não é mais do que uma fraca reminiscência da primitiva necessidade de nos tornarmos semelhantes e nos comportarmos de modo correspondente. As palavras exerciam sobre mim esse poder. Não aquelas que me tornavam igual às crianças exemplares, mas as que me aproximavam de casas, móveis, peças de roupa. Eu desfigurava- me pela semelhança com tudo o que existia à minha volta. Como um molusco na sua concha, vivia no século XIX, um tempo que agora me parece oco, como uma concha vazia. Levo-a ao ouvido, e que ouço? Não ouço o fragor de artilharia nem a música de baile de Offenbach, nem sequer os cascos dos cavalos na calçada ou as fanfarras da guarda na parada. Não, o que eu ouço é o ruído breve do antracito quando cai do recipiente de folha no fogão de ferro fundido, é o estalo seco que acompanha o acender da chama na camisa do candeeiro a gás, é o zumbir da chaminé no aro de latão da lanterna, quando um carro passa na rua. E há outros ruídos, como o chocalhar das chaves no cesto, as campainhas das portas da frente e das traseiras; e também uma canção infantil.
‘Vou contar-te a história antiga / da Mummerehlen amiga...’ A canção está desfigurada; mas é todo o mundo desfigurado da infância que nela se encontra. A ‘Muhme Rehlen’ que em tempos nela viveu já tinha desaparecido quando me contaram a história pela primeira vez. E a ‘Mummerehlen’ ainda era mais difícil de descobrir. Durante muito tempo ela estava para mim no padrão de losangos do prato fumegante de papas de cevadinha ou de tapioca. Eu ia comendo lentamente, para no fim encontrá- la no fundo do prato. Não sei o que me contaram dela – ou o que me quiseram contar. Ela própria nunca me confiou nada. Talvez quase nem tivesse voz. O seu olhar caía com os flocos indecisos da primeira neve. Se me tivesse atingido uma única vez, isso teria sido uma consolação para toda a vida.
21 Muhme é uma palavra arcaica que significa ‘tia’; Rehlen é nome próprio.”